Os habitantes de Ferraria de São João, uma pequena povoação do concelho de Penela que integra a rede das Aldeias do Xisto, garantem que não estão longe de nada e que conseguem fazer tudo o que se faz na cidade. Com a vantagem de viverem rodeados de Natureza e ar puro. Tanto os que habitam na aldeia desde sempre como os que acabaram de chegar, os moradores de Ferraria são um exemplo na forma como se organizam, se mobilizam e se protegem.
Ainda não são sete da manhã e Marcelo já está a zurrar que é dia. Foi dele o primeiro som que se ouviu no vale onde se estende a aldeia de Ferraria de São João. Logo depois ouve-se um galo, e ouvem-se pássaros.
O sol nasceu tímido atrás da crista quartzítica que emoldura a aldeia, mas rapidamente ilumina o casario onde pontuam, sobretudo, casas de xisto. A manhã está límpida, é outono; um outubro ameno quase a antecipar o verão de São Martinho.
Na família dos burros já não é só Marcelo que se faz ouvir. Junta-se Lady Zorra, primeiro, junta-se o filhote de ambos, Quico, depois. Os pássaros, esses, andaram por ali, sempre. E mais ao longe já se ouvem as campainhas das cabras e dos bodes.
Nós não moramos longe de nada.
Sandra Mendes
Serão as 25 cabeças de Fátima, dona do maior rebanho da aldeia? Ou serão os pastores contratados pela Associação de Moradores que todos os dias vêm abrir os currais às cinco cabras compradas pela comunidade? Também pode ser D. Isilda a levar os animais – a Branquinha, a Estrelinha, a Gravatinhas e o Xico – a passear. Houve tempos em que havia em Ferraria de São João mais de 1000 cabras e ovelhas. Hoje em dia são incrivelmente menos, mas ainda assim as suficientes para fazerem uma aprazível banda sonora.
É sábado, mas aos animais interessa mais o calendário solar. Ordenha pela manhã, comer a ração, sair dos currais para um pasto de liberdade controlada, regressar aos currais. O dia vai ser mais ou menos igual aos outros. Para os habitantes da aldeia nem por isso. É fim de semana, a azáfama é outra.
Os que trabalham fora da aldeia têm, ao fim de semana, mais tempo para se dedicar a outras lidas e afazeres. Flávio, de 26 anos, que durante a semana trabalha numa fábrica em Penela pôde trazer um amigo da sua idade para subir ao curral e compôr o telhado que pedia substituição há muito. Já José Campos, que até ao fim de semana “anda por aqui e por ali” a despachar as artes que lhe encomendam como marceneiro, teve hoje mais tempo para se dedicar a uma das coisas de que mais gosta: vestir o fato de apicultor e tratar das suas colmeias.
E das 40 casas que tem a aldeia, uma boa parte é ocupada por segundas habitações, gente de outros cantos do país que ali vem procurar refúgio ao fim de semana. Encontra-se, por isso, mais gente nas ruas. Às vezes, muitas vezes, passam também turistas, ora a pé para fazer trilhos, ora de bicicleta – não fosse Ferraria de São João a primeira aldeia portuguesa a ter um centro de BTT e um bikotel.
Isilda Mendes, diz que os turistas são “muito, mas mesmo muito bem-vindos”. Os que ficam na aldeia a dormir, os que a procuram para aprender a fazer queijo e pão, os que vêm fazer os percursos pedestres. “Somos uma aldeia com história, uma aldeia muito antiga e uma aldeia de gente boa, gente amiga de receber toda a gente”, diz Isilda.
Ferraria de São João é uma Aldeia Viva, e esse foi mesmo o batismo dado por profissionais de marketing quando a inseriram na rede das Aldeias do Xisto. E Ferraria é uma aldeia viva de facto, e só não o vê quem andar muito distraído. Sandra Mendes sempre acreditou nisso. Chegou a Ferraria com dois anos, quando os pais que haviam tentado a sorte em Moçambique regressaram a Portugal, assim que a guerra estourou no país.
Sandra tem agora 46 anos, um filho com 15; viu vizinhos e amigos irem embora, procurar vida nas cidades. Ela, que diz ter sido “preguiçosa” porque “só tirou o nono ano”, escolheu nunca deixar a aldeia onde nasceram a mãe e o pai. Às vezes tem emprego, outras não. Mas deixar Ferraria nunca foi opção. Mais ainda quando conheceu o Zé (José Campos, marceneiro a tempo inteiro e apicultor sempre que pode) e o convenceu a sair “da confusão da cidade” de Miranda do Corvo para vir para a aldeia viver com ela e com os pais.
“O meu Zé gosta muito disto, ele adora a serra. Nós estamos aqui bem”, diz Sandra, que rebate todos os argumentos de que nas aldeias não há nada para fazer e ficam longe de tudo. “Nunca concordei com isso. E o meu Daniel, e todos os amigos que me enchem a casa no verão, também não”, sorri. Diz que não tem cama para tanto adolescente que ali gosta de pernoitar, para fazer passeios na serra, nadar na praia fluvial da Louçainha, trepar o passadiço das Fragas de São Simão e andar de bicicleta por trilhos intermináveis.
“Nós não moramos longe de nada. Se quisermos ir a um supermercado ou a algum lado, depressa nos pomos lá. Ainda ontem fui buscar o Daniel à escola, e fui ao centro comercial comprar umas coisas de que precisava. E depressa me pus em casa”, relata.
Daniel frequenta o décimo ano e em Penela, a vila mais próxima, não há ensino secundário. Foi estudar para Coimbra, que fica a 40 km. Levanta-se às 6h30, para se preparar, tomar o pequeno-almoço, ir de boleia com a mãe, ou o pai, até Penela, onde apanha o autocarro às 7h30. O pai, José Campos, diz que ao fim de semana ele pode descansar. A mãe insiste que não moram longe de nada. E revela que quando as colegas da fábrica lhe perguntam onde vive responde: “então não sabem onde é a famosa aldeia de Ferraria de São João?”.
Uma Aldeia do Xisto famosa pela resistência aos incêndios
Ferraria ficou subitamente famosa por causa dos incêndios que assolaram toda a região em 2017. Foi notícia pela sorte de terem um sobreiral centenário que aguentou, heróico, as investidas do fogo dantesco. E pela ousadia que tiveram, depois, de criar uma Zona de Proteção da Aldeia (ZPA) – que está prevista na teoria e nas leis, mas que, na prática, ninguém tinha experimentado fazer. Mas Ferraria de São João devia ser famosa, sempre, e não apenas pelo seu sobreiral. Mais ainda desde que passou a integrar a rede das Aldeias do Xisto, engrossando o exemplar núcleo da Serra da Lousã.
“A aldeia está cheia e eu estou feliz”, resume, embevecida, Sandra, agradecendo aos novos moradores que vieram tirar ao seu Daniel a honra de ser o mais novo da aldeia. “Os novos moradores que chegaram à aldeia vieram trazer muita vida a Ferraria”, avisa. São eles Pedro Pedrosa e Sofia Sampaio, António Zuzarte e Maria Rodrigues. Dois casais, que já deram cinco filhos à aldeia. Pedro e Sofia têm gémeos, com sete anos. A filha mais velha de Maria tem 11 anos, a mais nova tem quase dois.
A presidência da Associação de Moradores da aldeia tem andado a rodar por estes quatro elementos, que chegaram à povoação quase na mesma altura, e foi lá que se conheceram. Foi deles a ideia de avançar com o projeto da Aldeia Viva, de pôr os moradores da aldeia a mostrar a quem os visita como do leite daquelas que andam pela serra se faz queijo, de como aquelas mãos experimentadas continuam a saber fazer pão em fornos de lenha comunitários. “O que é que aproxima as pessoas de um lugar? As experiências que têm, as histórias que ouvem. Se não lhes damos essa oportunidade, a aldeia poderia ser só mais uma paisagem”, explica Maria Rodrigues, a atual presidente da associação.
Maria Rodrigues trocou a cidade de Tomar, onde conheceu o marido António, pela aldeia de Ferraria de São João, onde ele tinha umas ruínas por recuperar, há 12 anos. Vinha grávida da primeira filha e lembra-se de pensar quando ali chegou: “Há aqui uma riqueza tão grande em termos de património natural, paisagem, é tudo tão bonito. As pessoas têm de vir viver isto!”.
E Maria, e a Associação de Moradores, tudo têm feito para o conseguir. Candidataram o projeto ao Turismo de Portugal e, com o apoio da Câmara Municipal de Penela, têm conseguido avançar com uma série de propostas e atividades para a recuperação do património cultural e natural da aldeia. “O intuito é atrair turistas e aproximar as pessoas que vêm visitar das pessoas que vivem aqui, e trazer riqueza para a aldeia”, sintetiza Maria.
E as pessoas que vivem em Ferraria notam, e agradecem. Fátima, que tem hoje o maior rebanho da aldeia, reconhece que essa é uma forma de mostrar aos visitantes o seu saber. “As pessoas gostam de nos ver a fazer queijo. Eu faço queijo todos os dias. Mas na altura em que vendemos os cabritos, as cabras dão muito leite, tenho de ordenhar de manhã e à noite. É muito queijo”, admite Fátima, revelando que já tem um grupo de pessoas conhecidas que passam por casa dela para os comprar.
Isilda também aprecia o dinheiro extra que consegue encaixar quando faz os workshops a pedido da Associação de Moradores. Ela, com mais alegria ainda, por voltar a entrar na casa onde nasceu e viveu até aos dez anos – a antiga ruína, que foi do seu pai, foi recuperada para ser sede da associação, num projeto que contou com o apoio dos EEA Grants e teve mãos de artesãos noruegueses a contribuir na reconstrução. “Quando fazemos os workshops sempre ganhamos mais algum dinheiro. Mas o que gosto mesmo é de conhecer pessoas, e contar-lhes tudo o que sei fazer, claro, mas sobretudo gosto de falar com elas. Já fiz workshops para pessoas de todo o mundo”, revela, orgulhosa.
Veja também o guia prático com o que fazer em Ferraria de São João.
A força da Associação de Moradores de Ferraria de São João
Desde os incêndios de 2017 que a atividade da associação é mais intensa, tanto no que diz respeito à manutenção do sobreiral centenário – que, acreditam todos, lhes salvou a vida -, como no objetivo de construir a ZPA, de forma a evitar a repetição do pesadelo. O sobreiral foi a única mancha que restou verde naqueles dias de inferno; tem mais de uma centena de frondosas árvores, o incêndio chegou a atingir duas, mas não conseguiu passar para a aldeia. A Associação de Moradores comprou as quase cem árvores que o mais idoso habitante da aldeia – José Vaz, 83 anos, há três a residir num lar – tinha posto à venda e está a tentar assegurar a compra das restantes.
Para tal, lançaram um programa de adoção de sobreiros, onde cada padrinho terá, por nove anos, direito de opção sobre 50% do valor da venda da cortiça. Mais importante do que isso, está a contribuir para a gestão e manutenção do sobreiral. E ainda há alguns sobreiros candidatos à adoção.
Foi esta mobilização dos habitantes de Ferraria que a tornaram, também, a eleita para receber a construção de um abrigo contra incêndios – que se quer que seja um projeto-piloto a nível internacional. Prometido há quase dois anos, a construção ainda não avançou, pelo que o terreno onde vai surgir é ainda pasto para as cabras da associação. Mas os moradores sonham com ele, sobretudo por causa da zona de convívio que vai trazer à aldeia; uma vez que, por agora, não há por lá um café ou uma lojinha onde as pessoas se possam sentar a conversar.
Por enquanto é o sobreiral que continua a merecer o estatuto de sala de convívio da aldeia. E é-o, todos os anos, no piquenique anual que junta todos os padrinhos. Para Sofia Sampaio é o lugar mais bonito da aldeia. E os filhos, que chegam repentinamente com os amigos, filhos de Maria e António, parecem concordar. Vão, pela enésima vez, resolver o geocaching que foi preparado por Sofia e Pedro para ser mais uma atividade que permite aos hóspedes do seu turismo rural, as Vale do Ninho Nature Houses, descobrirem a aldeia.
Pedro Pedrosa não quer atrair apenas hóspedes para a descoberta da aldeia. O que ele gostava mesmo era de saber que contribuiu para que mais pessoas tenham a experiência que ele próprio viveu. E vive. “Há pessoas para quem a vida na cidade é tudo. Mas, se tiverem um por cento de ideia de que, se calhar, a cidade não é o melhor sítio para se viver, então passem uma semana a viver numa aldeia como Ferraria de São João, com tudo o que isso inclui e implica”, apela.
Ou seja, não é estar de férias e ir todos os dias aos restaurantes. É cozinhar, interagir com as pessoas, cheirar, ouvir. “Tenho a certeza que se fizerem isso uma vez na vida vão poder comparar. E perceber a qualidade de vida que há num sítio destes”, avisa Pedrosa.
Há o mesmo que na cidade: escola e trabalhos de casa, reuniões e videoconferências, televisões e tablets. Mas há mais motivos para tirar o nariz dos ecrãs, pôr os pés no chão e as mãos na terra. Para regar a horta, apanhar maçãs, passear na serra, dar uma corrida com os cães, brincar com os gatos, ir dar palha aos burros.
De que qualidade de vida fala o Pedro? “Desde logo uma coisa muito simples que é o silêncio, o ar puro, o ouvir os passarinhos”. Neste caso, também, ouvir Marcelo, que acaba de zurrar outra vez.
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Pedro Pedrosa, o empreendedor turístico
Mudou-se para Ferraria de São João por convicção, foi Presidente da Associação de Moradores, criou um Centro de BTT na aldeia e dinamiza uma acolhedora unidade de turismo rural.
Isilda Mendes, a queijeira
Isilda Mendes tem 61 anos e vive desde sempre em Ferraria de São João, no distrito de Coimbra. Faz workshops de queijo com o leite das suas cabras e ensina a fazer pão nas instalações da Associação de Moradores.