Nasceu em França, mas cresceu em Pitões das Júnias, fez a primária e andou com as cabras na serra até aos 18 anos. Ainda tentou a vida de emigrante em Paris, mas decidiu regressar, já com três filhos pequenos, para abrir uma padaria em plena aldeia de montanha. Reabriu o forno comunitário, aprendeu com o trabalho e com os erros. Está à frente da Padaria de Pitões, um caso de sucesso empresarial, e é uma das mais entusiastas divulgadores das tradições da região. Eis o seu testemunho.
“Sou uma mulher feliz porque vivo no cantinho de que realmente gosto”
Chamo-me Gracinda Marinho, nome roubado ao marido, porque eu era Rodrigues Leite. O meu marido é um minhoto que conheci em França, mas a quem dei um chazinho para convencer a vir comigo para a serra.
Por onde é que eu começo a contar a minha vida? Talvez pelo nascimento. Foi em França. Os meus pais emigraram para a Bretanha. Mas quando tinha seis anos eles quiseram voltar à terra deles e vir viver outra vez para Pitões, para a agricultura. O meu pai era carpinteiro, marceneiro, mas não se adaptou lá em França. E depois, ao princípio, foi um bocadinho difícil para nós a ideia de vir para aqui, porque conhecemos o bom. Já tínhamos uma casinha com bastante conforto, casa de banho e tudo. Como minha mãe tinha 10 filhos, recebia muitas ajudas. E depois viemos para aqui para uma casa em que não havia nada. Mas pronto, adaptámo-nos.
Éramos dez irmãos, eu era a mais nova. Os mais velhos ficaram em França. Eu fiquei aqui, com meus pais e mais três irmãos. Fui para a escola, e quando acabei a escola primária o meu magistrado foram as cabrinhas na Serra. Fui pastora durante oito anos.
Ajudava a minha mãe no campo e a cozer num forno comunitário. Muita vezes acontecia termos de cozer durante a noite, porque aquilo era à roda, era consoante calhava a nossa vez. Aprendi a fazer muita coisinha. A trabalhar a lã de ovelha, a fazer as minhas meias, a tecer. Quando cheguei aos 18 anos, quis mudar de vida. Eu tenho sobrinhas da minha idade, e outras mais velhas, e via-as vir sempre no verão, todas bem vestidinhas e temos aquela ilusão de…. querer mudar de vida. E então lá fui para França. Mas para mim foi um choque. Custou-me. Não me habituei. Mas ainda acabei por ficar lá uns aninhos, conheci o meu marido, tive os meus três filhos lá.
Quando vinha de férias a Portugal, era sempre muito complicado largar a gente da minha terra. Quando chegava aqui a Pitões das Júnias, o meu marido parava ali no largo junto ao café do Preto, já me largava, e eu ficava ali a falar com toda a gente.
Depois pensámos que era o momento de virmos viver para a terra, enquanto os filhos não crescessem muito. Nessa altura só havia padeiro uma vez por semana, a gente tinha de congelar o pão. E dissemos um para o outro: ‘olha, porque não abrir uma padaria?’ Assim nasceu a ideia, e lá abrimos. Com muito trabalho, entreguei-me a isto de corpo e alma. Não foi nada fácil porque eu tinha algumas luzes de como se trabalhava o pão de centeio, mas tudo o que eram massas brancas não. Aprendi com os erros, a fazer e a errar.
Lá fomos andando, pouquinho a pouquinho. Começámos a ter cada vez mais clientes, tínhamos a distribuição, e aqui o lado galego também começou a vir, começaram a gostar muito do nosso pão. Quando a padaria começou a funcionar bem, pensei em dar a vida ao forno do povo. Eu cresci a dois passos do forno do povo. Era lá que nos juntávamos… e quando aquela gente partia um pedaço de pão com açúcar e azeite, tínhamos ali o nosso docinho.
O forno do povo já estava parado há mais de 18 anos. Porque as pessoas começaram a fazer fornos pequenos em casa e ninguém usava aquele.
Quando comecei a ir para lá, muita gente da aldeia se juntou para me ajudar a aquecer o forno. Aquele era um forno que levava muito pão, demorava muito a aquecer. Mesmo para as pessoas mais antigas da aldeia também foi um reviver, um regressar aos tempos de antigamente… iam até lá levar-me o rodo e a pá…
Durante cinco anos, estive lá a cozer todos os dias e tive lá muitas visitas. Na verdade, acho mesmo que foi o forno do povo que deu muito nome à padaria. Todos os dias ia lá fazer duas e três fornadas. Cozia tudo que era pão de dois quilos, a broa grande, a broa de centeio, era tudo feito no forno do povo. E as pessoas gostam de ver o que é o antigo, não é?
E para mim é um grande orgulho saber que vêm pessoas por aí acima e eu poder mostrar-lhes como era o tempo antigo. E nessas alturas eu falava muito também da minha vida, da minha história de pastora, das tradições da aldeia. E eu gosto de fazer isso, e continuo a fazê-lo sempre que há eventos. No Entrudo, que é uma festa muito linda aqui na nossa aldeia, lá estarei outra vez.
Continuo a gostar muito de falar sobre como era a nossa vida aqui na aldeia. Falo da vezeira, que havia desde o primeiro de maio ao primeiro de outubro. Dizer que se juntava a vezeira, quer dizer que juntavam as cabras todas da aldeia. E vamos supor, se eu tivesse 80 cabeças de cabra ia 8 dias, quem tivesse 100 ia 10 dias… Durante o verão era assim. Chegava o primeiro dia de outubro, começava a vir o frio e apartava-se a vezeira… Quer dizer, cada um tinha que ir com a sua rês. E o que é que acontecia às pessoas já de idade, que não aguentavam ir para a serra? Davam-nos dinheiro, pagavam-nos para lhes guardarmos as cabrinhas durante o Inverno. E nós lá íamos, a pensar em ganhar algum para podermos comprar uma roupa nova para ir à festa de São João. Éramos muitas raparigas… íamos todas.
Quando acabei a escola primária tinha de ir para Montalegre para continuar a estudar. Mas a mentalidade então era a de que as raparigas se podiam perder, tinham de dormir na residência. Então, os rapazes ainda iam estudar, mas as raparigas não tinham hipótese. Já se sabia que ficavam na serra com as cabras.
Tivemos dias mais complicados, como quando nos aparecia o lobo, por exemplo, que tinha fome e procurava o que lhe faz falta; ou quando chegava o momento das cabras parirem. Às vezes tinham muitos cabritos, e para os trazer da serra não era nada fácil.
Era uma vida difícil, mas éramos felizes. Ao domingo à noite, os rapazes faziam-nos o fiadeiro, levavam um gravador a cassetes. No meu tempo já nem era para fiar muito, como antigamente; era mesmo bailarico, para abanar o capacete, com música pimba e tudo. Não se saía daqui, mas convivíamos muito. Andávamos sempre todos juntos, para qualquer trabalho, fosse a malhada do centeio, ou a cegada… era sempre bandos de gente a cantar, sempre em brincadeira, mesmo no monte.
Foi isso que me custou quando fui para França. Ser criada como fui, com a gente aqui toda da aldeia, para mim foi muito, muito, muito complicado. Mas também havia aquela ideia do emigrante, trabalhar, trabalhar, trabalhar para regressar à terra e construir a casinha…
Fui para Paris aos 18 anos, e ainda lá estive 12 anos. Trabalhava nas limpezas, era a femme à ménage. Mas a verdade é que cada vez me custava mais. O trabalho, graças a Deus, nunca me pôs medo. Mas agarramos a vir embora, com três crianças pequenas. O Leonel, veio com sete anos. O Tiago veio com três aninhos, e a Marina tinha para aí uns 18 meses. Os meus irmãos diziam “ai Jesus, tu vens com três crianças pequeninas abrir uma Padaria em Pitões? Tu vais desgraçar a tua vida, vais-te arrepender”.
A intenção também não era ficar rica. O meu marido é de Celorico de Basto, se fosse questão de dinheiro abria num sítio com mais movimento. Eu queria era estar na minha terrinha, fazer alguma coisa que me desse para viver. Eu vim mesmo para uma aldeia de montanha, porque era isso mesmo que eu queria. O sossego a natureza. E já lá vão 21 anos. Têm sido duas décadas de muito, muito trabalho. Mas é aquilo que eu gosto.
Na padaria sabe-se a hora a que se entra, mas nunca se sabe a hora a que se sai. É um ramo que dá muito trabalho, tem que se gostar mesmo. E é um trabalho em que tem sempre de se trabalhar ao fim de semana, que é quando vem mais gente visitar a aldeia.
Tenho os meus filhos a trabalhar comigo, por escolha deles. Ao princípio até dizia que não queria para eles uma vida assim, com tanta hora de trabalho. A Marina esteve dois anos no Porto, ainda a estudar. Eu pensei “pronto, já não vem mais para aqui”. E acabou por vir. O meu Leonel já esteve em Roma, já esteve aqui em vários sítios, e veio cair aqui outra vez à padaria. O Tiago também. Eu digo sempre que os filhos têm que ir à vida deles, nunca lhes diria “tens de ficar na padaria”. Claro que para mim é um orgulho eles darem continuação, mas a escolha é mesmo deles. Tenho os meus filhos, e já tive muita gente que esteve cá e foi embora. Agora tenho o Ivan, brasileiro, que é um rapaz de muito trabalho. E tenho outras guerreiras, como a Helena e a Françoise. A Helena trabalha aqui de noite, e de manhã vai com as vacas para o monte.
Eu pertenço à natureza. A minha vida é mesmo a terra. É mesmo tendo aqui a padaria, tenho que ter os meus legumes. Eu semeio de tudo, não trabalho assim grandes terrenos, mas tenho as minhas coisas e isso faz-me falta. O que mais gosto é de ainda poder ir para a serra, mochila às costas com a minha merenda, e mesmo tendo problemas nos pés (já fiz três cirurgias) ainda faço caminhadas de 20 ou 30 quilómetros. Faz-me falta isso. E quanto mais difícil for o caminho mais força me dá para caminhar. Em caminhos bons, tenho dificuldades em andar, mas na serra sou como as cabrinhas. É a serra mesmo. O próprio cheiro traz-me uma paz…
Também já percebi que pertenço ao inverno, gosto mais do frio do que do calor. A natureza liberta outros cheirinhos, há qualquer coisa com que me enquadro mais. Claro que gosto do verão, mas já não é a mesma coisa.
Mas o melhor, o melhor de Pitões das Júnias acho mesmo que somos nós, a gente que cá vive. Nós é que fazemos à aldeia, nós é que somos as pessoas que nunca deixam acabar as tradições. Somos todos uma família, um povo muito unido. Continua a ser comunitário, ajudamo-nos muito uns aos outros. E eu pelo menos nisso, acho que sou uma mulher rica – em amizades.
Tenho sempre gente pronta para me ajudar. Agora já tenho uma netinha e é uma riqueza, ao entrar em casa já há vida. Sou uma mulher feliz porque vivo no cantinho que realmente gosto. E nem toda a gente pode dizer isso, não é?
Mais sobre Pitões das Júnias
Pitões das Júnias, as muitas faces da vida na montanha
Terra de pastores, terra de lobos, terra de fronteira, terra de montanha. Pitões das Júnias é a aldeia mais visitada do Parque Natural da Peneda-Gerês, não só por causa da riqueza natural e da beleza das paisagens mas porque soube equilibrar, de forma sustentada, os interesses do turismo com os interesses da população. Pitões é uma aldeia viva o ano todo, uma aldeia onde os turistas chegam para fazer trilhos e conhecer o icónico Mosteiro de Pitões das Júnias e a sua cascata, mas ficam rendidos também à beleza da aldeia e à hospitalidade dos seus habitantes. É uma aldeia onde há pão, há arte e há comunidade. Poesia, portanto.
Ler Artigo Pitões das Júnias, as muitas faces da vida na montanha
António Pires, o Patorro
Na aldeia, todos o conhecem por Patorro. Era a alcunha de família a que nunca renunciou. Nasceu e cresceu em Pitões, aos seis anos já andava com o gado, aos 16 já fazia contrabando. Experimentou emigrar, mas não aguentou muito tempo. O amor à terra e à serra trouxeram-no de volta. Tem 60 anos é pastor e agricultor, faz algumas obras de construção e é um verdadeiro embaixador da sua terra. Gosta de acolher e de conversar.
Margarida Paiva, a dinamizadora cultural
Nasceu em Gaia, gosta e precisa do mar. Numa das caminhadas que fazia pela serra apaixonou-se por Pitões das Júnias. Professora de filosofia, aceitou o desafio, num ano em que não ficou colocada, de ficar atrás do balcão numa taberna no centro da aldeia. Esteve na Taberna Terra Celta dez anos, já voltou a dar aulas mas não consegue largar a procura, e a descoberta, das tradições de Pitões das Júnias. Ajuda a organizar muitos dos eventos culturais que já fazem parte do calendário da aldeia.
Cátia e Cascais, o casal improvável
Ela nasceu em São Paulo, no Brasil, filha de dois emigrantes pitoenses. Aos 21 anos quis vir estudar para a Europa e veio para Portugal. Ele nasceu e cresceu em Pitões, estudou num seminário, foi ordenado padre e esteve sete anos à frente de várias paróquias. “Só fazia missas de funerais e missas para os defuntos. Não consegui mudar a vida de ninguém”, explica ele. Mudaram a vida deles. Contra todas as probabilidades, assumiram uma relação. Casaram, tiveram um filho, têm uma vacaria e têm um restaurante. A Taberna do Caskais serve para alimentar quem passa, e para os donos se alimentarem espiritualmente de quem os visita.
Alcina Leite, a “Sapateira”
O nome artístico é uma homenagem à mãe. Alcina Leite faz muitas coisas com as mãos, mas entre elas não estão sapatos. Estão pinturas, em telas e em pedra, estão esculturas, estão várias peças de artesanato. Gosta de pintar desde que se lembra, mas só há quatro anos é que se aventurou a assumir a arte, a mostrar o trabalho, a vender em nome próprio. Tem um atelier no meio da aldeia de Pitões das Júnias, e diz que não conseguiria ser artista em mais lado nenhum. É a natureza que inspira a sua arte.
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