Nasceu e cresceu na aldeia de Bravães, habituou-se à lida no campo e tem saudades dos tempos em que o trabalho do linho era, também, uma festa. Hoje em dia, a festa só existe em recriações, mas, no seu dia a dia, o linho está sempre presente. Gosta, sobretudo, de partilhar tudo o que viveu e o tanto que sabe. Eis o seu testemunho.
“O ciclo do linho dá muito trabalho, mas é uma delícia. É como a vida.”
Chamo-me Celeste Silva e sou daqui, de Bravães. Nasci, fui batizada aqui, fiz a primeira comunhão, tudo. Casei cá também e batizei todos os meus filhos. Foi tudo ali no mosteiro. Gosto muito da minha terra. Gosto da nossa gente. Somos unidos. Aqui, basta abrir a boca para pedir ajuda, aparece logo alguém.
Nunca emigrei. Só fui a França ver o meu marido, que teve um acidente, mas vim-me embora logo. Chorava todos os dias. Não estava lá bem. Ele foi para lá para ganhar um dinheirinho, para fazermos uma casinha, quando ainda não morávamos aqui. Mas pronto, cá estamos, na paz do Senhor. Não se deve nada a ninguém. A gente governa-se com o pouco e o tareco.
Somos unidos. Aqui, basta abrir a boca para pedir ajuda, aparece logo alguém.
Celeste Silva
Temos seis filhos. Uma está em Andorra, os outros estão por cá, mais ou menos. Já estão todos criados. Agora estou eu, velhota, e o meu marido a precisar muito de mim. Não o posso deixar sozinho.
Gosto muito do trabalho do linho. E gosto sempre de falar sobre ele e de mostrar como se fazia. Dá muito trabalho, é verdade. Ainda há quem faça, mas já só por gosto. Já não é uma atividade económica como antes foi.
Aliás, a agricultura está a desaparecer aqui da aldeia. Antes também fazíamos sementeiras de milho. Mas agora já quase ninguém cultiva como dantes. Nem milho, nem nada. Há umas famílias que ainda fazem alguma coisa, mas muito pouco. Cada um tem a sua vida. Já não é como antes.
Hoje em dia, o linho que se vê é mais em paninhos, camisas, cortinas. Mas nós, cá, usávamos camisas de linho para os dias de festa.
Houve uma vez, em 1994, em que fizemos aqui uma recriação histórica, o Linhar. Ainda tenho a página do Jornal de Notícias e fico sempre contente de olhar para ela — na fotografia aparece a minha avó, a mãe da minha mãe.
A apanha do linho era sempre um momento de festa. Havia concertina. Alegria. Aproveitava-se o trabalho para fazer a festa. As concertinas começaram a aparecer quando vieram os ranchos folclóricos. Aqui em Bravães só havia uma pessoa a tocar.
Foi por essa altura que fiz a primeira entrevista, com a Maria Cerqueira, para a RTP. Havia a Feira do Linho em Ponte da Barca, que se manteve durante muitos anos. Premiavam-se os produtores, o melhor produto. Era uma coisa a sério.
Uma vez, convidaram-me na escola, ali à beira do mosteiro, para mostrar às crianças como se fazia. Levei-as ao caminho onde tenho terreno. Mostrei-lhes como se fazia a sementeira. Isto foi nos anos 90. Aliás, as professoras e os alunos vieram cá muitas vezes, quiseram acompanhar o processo. Tiraram fotos e escreveram tudo. Depois deram-me, como se fosse um livrinho. E eu guardo tudo, com muito amor.
Primeiro, lançavam-se as sementes à terra. Levávamos as sementes no regaço, dentro do avental. Depois, mexia-se a terra com o engaço, para cobrir. O linho cresce, dá flor, depois seca. Fazem-se os molhinhos e espadela-se. A estopa cai para o chão e apanha-se — nada se desperdiça.
O arranque é feito depois de muita monda e muita rega. Quando se arranca o linho da terra, separa-se logo a semente da planta, que nós chamamos de baganha — uma bolinha da semente, que é a que vai à terra outra vez. Fazemos essa separação no repanso, isto é, num crivo. Depois a planta seca. Quando seca, vai para o engenho, ali no rio. Era macerada. A planta era partida e separavam-se as partes mais duras da fibra.
Os homens faziam essa parte, porque tinham mais força. Depois enfeixava-se o linho e levava-se para a água, em molhos maiores. Ficava ali, numa poça, a curtir uns oito dias.
Depois vem a fase de bater o linho, antes de fazer o fio. É um processo de limpar as impurezas, para as mulheres poderem fiar. Chamava-se “limpar a vareja”. Este aqui é o sadeiro, para fazer a espadela. A espadela já deixava o linho limpinho. Passava-se no pente e já estava pronto para fiar, com a roca e o fuso. Enrolava-se no fuso, fazia-se a maçaroca, ia ao sarilho, faziam-se as meadas. E, por fim, à dobadoura, para se fazerem os novelos. E estava pronto para depois ser usado no tear.
A gente também fazia o tecido cá. Havia casas com teares. As raparigas faziam o seu pano, porque o tecido não abundava. Com o linho fazia-se a roupa de trabalho. Havia o linho mais fino e o mais grosso — este último, para os sacos e para as coisas mais rudes.
Nas festas do concelho, no cortejo de São Bartolomeu, a freguesia de Bravães representava sempre o ciclo do linho. É o que mais nos identifica. Começámos a levar carros, muita gente. Representávamos tudo: lançar a semente, arrancar, espadelar, fiar, tecer.
O ciclo do linho dá muito trabalho, sim. É preciso semear, tratar, colher. Mas é uma delícia. É como a vida. É preciso ter a terra pronta e um bom coração. E as coisas florescem. Agora são mais as recordações. Mas elas estão bem vivas na minha memória.
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