Professor, autodidata, contador de histórias e homem de mil ofícios, Jaime Ferreri nasceu em Bravães há quase 80 anos e por ali ficou — entre a paixão pelo ensino, a memória da guerra colonial e o amor pelas tradições da terra. Vive só, mas nunca quieto: escreve peças, toca caixa, organiza encenações populares e edita livros. Eis o seu testemunho.
“Gosto de recolher as histórias e de ensinar o que sei”
Chamo-me Jaime Ferreri, tenho 79 anos e a minha família está por cá desde, pelo menos, 1420 — vem tudo no Livro de Ouro da Nobreza. Fui um rapazito nascido aqui, em Bravães. Fui para a escola, e o primeiro arrepio que apanhei foi por bondade. A professora das raparigas foi buscar-me à escola dos rapazes. Fazia perguntas às raparigas e elas não sabiam. Fez-me uma pergunta a mim e eu acertei. Ela passou-me uma régua para a mão e disse: “Agora dá seis bolos em cada uma delas.” Quando cheguei à primeira, ela disse: “Não é assim!” E deu-me seis bojardas nas mãos. Estive para fugir pela porta fora, mas a minha mãe apanharia um desgosto. Aguentei. Pedi ao professor para não me mandar mais, que eu não estava para aquilo.
O meu pai estava no Brasil. Eu, de pequenito, já sabia que havia lá uma segunda família. Não me restava outra hipótese. O professor disse ao padre: “Este rapazinho tinha de estudar.” A única alternativa era o seminário. Não me apetecia muito, mas fui. Aguentei três anos. Ao fim de três anos, fugi. Os que foram atrás de mim também vieram embora. Os pais diziam que eu era fino, mas doido e desencaminhador de inocentes. E, efetivamente, só um chegou a padre.
Andava no quarto ano, quando apareceu um indivíduo que queria que o filho estudasse, mas não queria gastar muito dinheiro. Veio ter comigo: “Ouça lá, dizem que você é fino. É capaz de ensinar o primeiro e segundo anos do liceu ao meu filho?” Disse que sim. “Dou-lhe 150 escudos por mês.” Passei a ganhar metade da propina do externato dos Arcos. Aí ficou-me esse vício de professor.
Sou um homem intranquilo por natureza. Se é preciso arranjar o trator, arranjo. Se é preciso sulfatar, sulfato. Se é preciso enxertar a vinha, enxerto. Gosto de fazer.
Jaime Ferreri
Fui trabalhar para o Porto. A tropa estava em cima de mim. Disse: tenho de fazer o sétimo ano do liceu. Saí da empresa onde estava, mas o patrão tentou subornar-me: de 600 escudos passou-me para dois contos. Ainda fiquei mais um bocado, fazia-lhe cartas à noite. Era uma agência que dava informações sobre quem queria comprar a prestações frigoríficos, máquinas de lavar, etc.
Fiz o sétimo ano num só ano. Dispensei da aptidão. Fui-me matricular em Coimbra. Fiz um papel para a bolsa, mas não pedi o adiamento da tropa. Azar: calhou-me a tropa. Andei por Anás e Caifás: Mafra, Vendas Novas, Elvas. Fui à guerra. Moçambique. Rebentei uma mina anticarro. Regressei todo escaqueirado: com o calcâneo esquerdo desfeito, o quinto metatarso direito, três vértebras lombares, cinco costelas, o crânio e o braço direito. Sou o tal homem em que o braço esquerdo é direito. Mas estou aqui a viver e a contar. Mandaram-me embora da tropa e comecei logo a trabalhar como professor.
Apareceu a Matemática Moderna. Um amigo meu disse que a professora da filha não sabia conjuntos. Eu disse: “Isso é fácil.” Comprei os livros, estudei de trás para a frente, expliquei à miúda, ela tirou uma nota fabulosa. O padre do seminário, que dava Matemática e Física, foi para Lisboa. O diretor ouviu dizer que eu sabia daquilo. Fui dar aulas ao segundo ano. Estreei-me como professor num exame do ciclo, com um aluno a tirar 20 valores a Matemática e a abrir-me caminho para ser contratado como docente.
Desisti de Direito. Fui para a Universidade do Minho, onde tive um professor extraordinário, o Altamiro Machado, o homem do Projeto Minerva. Foi ele que me foi buscar para esse projeto. Andei a lançar computadores pelo Parque Nacional da Peneda-Gerês. Nunca mais me fugiu esse gosto de mexer.
Sou um homem intranquilo por natureza. Se é preciso arranjar o trator, arranjo. Se é preciso sulfatar, sulfato. Se é preciso enxertar a vinha, enxerto. Gosto de fazer. Um dia desafiei a minha gente para fazermos uma peça de teatro. Fizemos A Dolorosa Paixão. Como esse ano a Páscoa era altíssima, disse: “Está na altura de cumprir o meu sonho.”Há três mosteiros, desafiei a Junta de Crasto e de Vila Nova. Escrevi O Sermão da Montanha — sou fã do Pier Paolo Pasolini —, fizemos essa peça extraordinária na véspera do Domingo de Ramos. Depois A Dolorosa Paixão, depois A Ressurreição, em Crasto. Este ano faz 24 anos seguidos que fazemos A Dolorosa Paixão.
E não é só isso. Também estamos ligados ao Anda à Varanda, que se faz aqui no sábado antes de Santo Amaro, cuja festa é a 15 de janeiro. É uma alegria. Costumo tocar caixa. Estou ligado ao grupo dos canários e das gaitas de foles.
Depois temos a Senhora da Pegadinha. Toda a gente diz assim: “É a Senhora da Pegadinha.” Eu fiz a lenda numa peça de teatro. Temos aqui o documento de 1708 que diz: “Nossa Senhora da Anunciação da Pegada.” É a mesma. A imagem principal da igreja de Bravães é uma Senhora da Anunciação. Apareceu, segundo a lenda, a uma pastora de Brusende. Um dia, o bispo pediu-me para encenar essa lenda num encontro de catequistas. Eu disse que sim, mas queria um pagamento simbólico: um penedo. E lá está o penedo no adro da capela, com a explicação da lenda.
Vivo sozinho há quinze anos. Tenho um filho, duas noras, cinco netos e dois bisnetos. Tenho tempo para estas coisas todas. Estamos agora a editar, na Aquileio Edições, editora da família, um livro de um antepassado nosso, Alfredo Cró Ferreri, que foi governador de Moçambique.
Quer em Bravães, quer no concelho de Ponte da Barca, gosto de recolher as histórias e de ensinar o que sei. Fui à guerra, felizmente a mina só me tocou o corpo, mas não a mona. Por cá estou. Sobrevivi. E digo sempre: a nossa sorte aqui foi o feijão. Foi a única forma de termos proteína.
Cada um de nós é único. E quem duvida, que me arranje duas pupilas iguais, impressões digitais iguais ou as linhas das mãos iguais. Lutamos pela liberdade porque somos diferentes. Essa é a minha divisa de vida.
Mais sobre Bravães
Bravães, a aldeia dos gaiteiros
Em Bravães, freguesia do concelho de Ponte da Barca, a história continua a escrever-se com o som do sino, o cheiro do alecrim e a vontade firme de manter vivas as tradições. A romaria de São Gregório, a bênção dos instrumentos musicais, as gaitas de foles e os ensaios improvisados no átrio da antiga escola fazem parte de um calendário afetivo onde fé, cultura e comunidade se cruzam. Entre os que sempre cá estiveram e os que escolheram ficar, há um lugar que se renova sem se esquecer de quem é.
Rafael Freitas, o arquiteto gaiteiro
Pai, arquiteto, músico autodidata, é o rosto por trás da oficina de gaitas de foles de Bravães, em Ponte da Barca. Entre aulas, construção de instrumentos e encontros de música tradicional, Rafael promove a cultura local como ferramenta de inclusão e pertença, com raízes fundas no território que o viu nascer.
Stephanie Loison, a imigrante
Francesa de origem e herbalista por vocação, Stephanie Loison trocou a agitação de Londres pela serenidade da aldeia de Bravães, onde vive desde 2020. Atraída pela natureza e pelo ritmo mais lento da vida, integrou-se na comunidade através da música, das plantas e do yoga. Encontrou nas tradições locais e nas pessoas que a acolheram um novo sentido de pertença. “É aqui que quero estar”, diz, com a certeza de quem reencontrou o seu lugar no mundo.
Celeste Silva, a artesã do linho
Nasceu e cresceu na aldeia de Bravães, habituou-se à lida no campo e tem saudades dos tempos em que o trabalho do linho era, também, uma festa. Hoje em dia, a festa só existe em recriações, mas, no seu dia a dia, o linho está sempre presente. Gosta, sobretudo, de partilhar tudo o que viveu e o tanto que sabe.
Com o apoio de: