Pai, arquiteto, músico autodidata, é o rosto por trás da oficina de gaitas de foles de Bravães, em Ponte da Barca. Entre aulas, construção de instrumentos e encontros de música tradicional, Rafael promove a cultura local como ferramenta de inclusão e pertença, com raízes fundas no território que o viu nascer. Eis o seu testemunho.
“A preocupação não é formar músicos, é formar pessoas para a cultura”
Chamo-me Rafael Freitas, sou de Bravães. Aprendi a ler aqui mesmo, neste edifício da antiga escola primária da aldeia, como toda a gente desta terra. Quando as escolas foram reagrupadas, este espaço ficou desocupado, e assim esteve durante mais de uma década. Mas, felizmente, voltou a ganhar vida com atividades culturais. São três salas: uma é do grupo folclórico, outra dos Zés Pereiras — os Imparáveis de Bravães — e uma terceira é a nossa oficina de gaitas de foles.
A oficina começou por ser uma iniciativa da Escola de Artes e Ofícios, promovida pela Câmara e que fez uma candidatura onde conseguiu financiamento para equipamentos. O município sugeriu que os artesanatos a recuperar no território fossem a tecelagem e a construção da gaita de foles. Isto surgiu na sequência de umas conferências sobre cultura celta e a ligação do nosso território a esse universo.
Eu sou uma planta autóctone, com pouca resistência a outros climas. Se me transplantam, fico ressequido. Preciso do meu Minho, da humidade.
Rafael Freitas
Dois investigadores de gaitas de foles chamaram a atenção para o facto de ter existido aqui um construtor, o António Emílio de Araújo. E fomos atrás desta personagem. Foi difícil chegar até ele — já era uma figura quase apagada da memória coletiva. Mas conseguimos encontrá-lo no Museu de Etnologia, onde está uma das suas gaitas, recolhida por Ernesto Veiga de Oliveira. E, a partir daí, houve um envolvimento cada vez maior.
Primeiro, começou como uma coisa mais pública. Depois, as pessoas tomaram conta do projeto. Hoje estamos aqui uma série de pessoas que não estivemos na origem, mas que pegámos nisto e levámos para a frente: eu, o Ferreri, o Pedro, e muita gente que se foi juntando — a aprender a construir gaitas, a tocar, a fazer bombos… Porque a gaita de foles, no contexto minhoto, só faz sentido com as caixas e os bombos. Não há memória, nem registo até ao século XIX, da gaita a tocar sozinha por cá. É sempre em conjunto.
Eu próprio tive um percurso atribulado com a gaita. Quando era miúdo, o meu pai era presidente da associação cultural daqui de Bravães. Ele empurrou-me para a música, dizia: “Dava jeito que aprendesses a tocar instrumentos tradicionais.” Juntei-me ao grupo folclórico, fui organista do coro da igreja, fui tocador de concertina nas recriações. Também fui gaiteiro nos Zés Pereiras, mas era uma coisa forçada. Comprámos uma gaita sem saber bem o que fazíamos — era um suplício. Tocava por obrigação, e arrumei aquilo. Depois fui para a universidade, desliguei-me disto tudo.
Até que esta oficina renasceu. E pensei: “Uma oficina de gaitas de foles na minha terra? Logo eu, o único gaiteiro — ainda que fraco — de Bravães, não ia estar ligado a isso?” Inscrevi-me na escola. Comecei a apaixonar-me. E, cinco anos depois, sou o professor de gaita de foles.
Nós estamos no Alto Minho e, normalmente, quando se pensa nesta região, pensa-se na concertina como instrumento rei — ou rainha. A gaita de foles, embora estivesse presente na nossa cultura, parecia exótica. Achava-se que era uma coisa da Galiza, da Escócia. Mas não: existe uma matriz muito antiga de gaitas de foles aqui no Minho, em Portugal, na Península Ibérica e, provavelmente, em todo o Mediterrâneo. Não tem nada que ver com as ilhas britânicas.
Em Bravães, descobrimos que havia registos de antigos gaiteiros. Há gravações feitas pelo Ernesto Veiga de Oliveira de gente a tocar há 60 anos — um deles era o meu bisavô. E havia esse construtor, o António Emílio de Araújo. A gaita dele ficou congelada no tempo no museu, até que nós aparecemos, começámos a estudá-la, e percebemos que não era uma gaita qualquer: era de alguém que sabia o que fazia. A gaita minhota não se ouve sozinha — ouve-se no contexto dos Zés Pereiras. É uma gaita potente, com intencionalidade.
Começámos com um grupo de 11 alunos, à volta do torno, a construir as primeiras gaitas. Depois de feitas, percebemos que não sabíamos tocar. Foi a partir daí que criámos a escola de gaiteiros — no verdadeiro sentido da palavra. Gosto do sufixo “-eiros” porque remete para ofício: pedreiro, carpinteiro, padeiro… E então brinco: nós não somos gaitistas, somos gaiteiros.
A dificuldade maior foi construir um instrumento sem saber como ele funciona. O som depende muito de quem o toca. Às vezes, um instrumento mau, em boas mãos, soa bem. Outras vezes, o contrário. A afinação era um problema. Seguir as medidas do museu não bastava para garantir que soassem bem em conjunto.
Como sou arquiteto e trabalho com desenho e 3D, peguei nas medidas da gaita do museu, fiz um modelo digital e transformei-o num ficheiro para impressão 3D. Hoje, em 24 horas, temos uma gaita impressa e afinadíssima. Claro que não foi à primeira — andámos em testes até chegar à versão final. Agora, temos um ficheiro open source: qualquer pessoa pode pedir e imprimir uma gaita de Bravães na China, por exemplo.
Hoje temos aulas de gaita e percussão. Já passaram pela escola dezenas de pessoas — talvez uma centena. Temos cerca de 15 alunos ativos: uma turma juvenil às quartas-feiras, com miúdos entre os 11 e os 13 anos, alunos desde o início, que já tocam peças complexas, e iniciantes adultos. Temos até um aluno sem todos os dedos, e adaptámos o ensino para ele.
Este é um projeto social. A nossa preocupação não é formar músicos, é formar pessoas para a cultura. Não vemos o instrumento como algo isolado. Queremos mostrar o contexto. Mostrar a floresta, mesmo quando estamos a falar de uma só árvore.
Foi por isso que criámos o “Anda à Varanda” — um encontro de música tradicional que começou por ser nacional e agora já é ibérico. Convidamos músicos da Galiza e de outras zonas de Espanha, sejam construtores, executantes ou investigadores. Há sempre um lado performativo. O Pedro Mestre, por exemplo, veio falar da viola campaniça — mas também tocou. Quem não entende uma palavra, percebe tudo quando ouve.
Tenho dois filhos. A primeira coisa que sou é pai — isso dá um trabalhão do caraças. Sou arquiteto à segunda e à terça, tenho uma empresa de estruturas metálicas. Mas percebi que não conseguia ser bom arquiteto se não tivesse este escape. As solicitações com os gaiteiros, com a escola, com o agrupamento… tudo somado, dava mais do que um dia de trabalho. Organizei-me: atiro um dia da semana para o “devaneio” de ser professor de música.
Custa-me dizer que sou músico — tenho muito respeito por quem estudou. Eu não tenho formação. Tudo vem da experiência com os grupos. Hoje é fácil saber o que é um dó ou uma afinação — está tudo na Internet. Mas ainda me custa, às vezes, dizer a um músico formado o que estou a fazer. Se calhar não sou o melhor professor do mundo, mas sei tocar as pessoas — talvez melhor do que os instrumentos.
O projeto de que mais me orgulho é o grupo da APPACDM. Estamos a recuperar uma tipologia típica de Zés Pereiras — com gaita de foles, caixa, bombo e pratos, sem concertinas, com trajes de linho, faixa e gorro vermelho. E, ao mesmo tempo, damos a estes miúdos com deficiência uma oportunidade real de participação e inclusão. Eles são pagos, a performance tem qualidade. Não é condescendente — é verdadeiro.
E é por tudo isto que continuo aqui. Eu sou uma planta autóctone, com pouca resistência a outros climas. Se me transplantam, fico ressequido. Preciso do meu Minho, da humidade. E a minha mulher, que é de Coimbra, também gosta disto — isso ajudou. Aqui é fácil fazer a diferença com pouco. Pintar a porta de uma capela ou fazer uma romaria já é um acontecimento.
Mais sobre Bravães
Bravães, a aldeia dos gaiteiros
Em Bravães, freguesia do concelho de Ponte da Barca, a história continua a escrever-se com o som do sino, o cheiro do alecrim e a vontade firme de manter vivas as tradições. A romaria de São Gregório, a bênção dos instrumentos musicais, as gaitas de foles e os ensaios improvisados no átrio da antiga escola fazem parte de um calendário afetivo onde fé, cultura e comunidade se cruzam. Entre os que sempre cá estiveram e os que escolheram ficar, há um lugar que se renova sem se esquecer de quem é.
Stephanie Loison, a imigrante
Francesa de origem e herbalista por vocação, Stephanie Loison trocou a agitação de Londres pela serenidade da aldeia de Bravães, onde vive desde 2020. Atraída pela natureza e pelo ritmo mais lento da vida, integrou-se na comunidade através da música, das plantas e do yoga. Encontrou nas tradições locais e nas pessoas que a acolheram um novo sentido de pertença. “É aqui que quero estar”, diz, com a certeza de quem reencontrou o seu lugar no mundo.
Jaime Ferreri, o professor
Professor, autodidata, contador de histórias e homem de mil ofícios, Jaime Ferreri nasceu em Bravães há quase 80 anos e por ali ficou — entre a paixão pelo ensino, a memória da guerra colonial e o amor pelas tradições da terra. Vive só, mas nunca quieto: escreve peças, toca caixa, organiza encenações populares e edita livros.
Celeste Silva, a artesã do linho
Nasceu e cresceu na aldeia de Bravães, habituou-se à lida no campo e tem saudades dos tempos em que o trabalho do linho era, também, uma festa. Hoje em dia, a festa só existe em recriações, mas, no seu dia a dia, o linho está sempre presente. Gosta, sobretudo, de partilhar tudo o que viveu e o tanto que sabe.
Com o apoio de: