Está à frente de uma comunidade de 10 monjas, que se mudou de Vitorchiano, em Itália, para Palaçoulo, em Miranda do Douro, para se instalar no primeiro mosteiro trapista construído em Portugal. A expectativa que trouxe foi a de construir uma casa que acolha muitas monjas portuguesas, que floresça como uma comunidade local, alegre, fecunda e “portadora da beleza da vida cristã”. E diz que há qualquer coisa especial em Palaçoulo. A começar pelo céu. Eis o seu testemunho.
“O nosso objetivo é permitir que este lugar se torne um espaço de testemunho espiritual”
Chamo-me Guisy Maffini, e sou a responsável por esta comunidade de monjas trapistas que se instalou em Palaçoulo. Nasci em Itália, e era monja no Mosteiro Trapista de Nossa Senhora de São José, em Vitorchiano, perto de Roma. Viemos para Portugal em 2019.
Não fomos nós que escolhemos Palaçoulo — Palaçoulo é que nos escolheu. A nossa comunidade-mãe, em Itália, desejava fundar uma nova casa em Portugal, mas não tinha qualquer contacto com bispos ou dioceses. Foi através de um monge beneditino que conhecemos Dom José Cordeiro, então bispo de Bragança-Miranda. Quando nos visitou em Vitorchiano, entusiasmou-se com a ideia e comprometeu-se a encontrar um lugar na sua diocese. Caso não conseguisse, propôs apresentar o projeto à Conferência Episcopal Portuguesa.
Acabou por nos sugerir várias opções dentro da sua diocese, e esta foi a que nos pareceu mais adequada — tanto pela beleza do lugar como pelo seu caráter isolado, ideal para a vida contemplativa. Houve outras propostas, como uma antiga casa franciscana em Vinhais, mas essa não se prestava ao nosso modo de vida. Hoje em dia, é mais simples construir de raiz do que adaptar edifícios antigos a uma vida monástica.
Hoje em dia, é mais simples construir de raiz do que adaptar edifícios antigos a uma vida monástica.
Irmã Giusy Maffini
O nosso projeto é simples: viver plenamente a vida monástica trapista, segundo a regra de São Bento, na sua forma reformada pelos Cistercienses. Procuramos enraizar-nos aqui, criar as condições para que esta comunidade se torne portuguesa e possa testemunhar a beleza e a atualidade da vida monástica no seio da Igreja portuguesa. Quando partimos de Vitorchiano, éramos oitenta monjas — dez vieram para dar início a esta nova aventura e abrir espaço para novas vocações.
A nossa maior expectativa é que esta casa acolha muitas monjas portuguesas, que floresça como uma comunidade local, alegre, fecunda, portadora da beleza da vida cristã. Para mim, esse é o maior objetivo: dar glória a Deus e permitir que este lugar se torne um espaço de testemunho espiritual.
Portugal tem-me surpreendido. Há ainda um “substrato cristão” muito forte, um desejo de Deus verdadeiro que noto mesmo entre os jovens. Fala-se de paz, de tranquilidade… mas muitas vezes é um desejo de Deus que se revela por detrás dessas palavras.
Temos sido bem acolhidas tanto em Palaçoulo como em Miranda do Douro. As pessoas foram discretas, mas disponíveis. Quando, por exemplo, houve um incêndio no ano passado, muitos vieram ajudar, inclusive trabalhadores da obra da hospedaria. E depois há gestos pequenos, mas significativos: o pastor que nos ofereceu uma toalha de mesa, os legumes que nos trouxeram antes de termos a nossa horta. É uma relação de vizinhança generosa e respeitosa.
A nossa vida quotidiana é ritmada pela oração e pelo trabalho. De manhã cedo, até cerca das nove horas, dedicamo-nos à oração, à leitura divina e à missa. Depois, começamos os trabalhos manuais: produzimos terços, biscoitos, compotas, tratamos da horta e do amendoal. Trabalhamos até ao meio-dia e meia, hora da oração de Sexta, seguida do almoço e de um breve descanso. Às duas e meia rezamos a hora de Noa e retomamos o trabalho até às cinco. Depois vêm as Vésperas, o jantar, a oração das Completas, e o recolhimento.
A nossa igreja está aberta aos hóspedes que queiram rezar connosco. Há dois espaços próprios junto ao presbitério, e há também a hospedaria, pensada segundo as palavras de São Bento: “os hóspedes sejam acolhidos como Cristo”. Não damos retiros nem fazemos conferências, mas acolhemos quem quiser partilhar da nossa experiência, rezar em silêncio, descansar.
Às vezes, oferecemos tempos de reflexão vocacional para jovens, mesmo que não tenham como objetivo entrar para a nossa comunidade — são momentos de partilha, de escuta.
Começámos com dez italianas, mas hoje já temos quatro portuguesas — três são noviças, com diferentes tempos de permanência, e outra chegou mais recentemente. O português, por ser uma língua neolatina, tem familiaridades com o italiano, mas também muitos falsos amigos que nos atrapalham. Ainda assim, é bem mais acessível do que o checo, por exemplo — a nossa fundação anterior foi na República Checa, e foi muito mais difícil.
As obras do mosteiro estão praticamente concluídas. Há uma parte para a vida comum das monjas, outra para os trabalhos e a produção, e a hospedaria, que também inclui uma loja com os nossos produtos.
Vendemos em algumas lojas por Portugal, e colaboramos com entidades como o Santuário do Bom Jesus ou o Santuário de São Bento da Porta Aberta, além de parcerias com a Sogrape, por exemplo.
O edifício foi projetado por um arquiteto lisboeta com quem colaborámos de perto. Ele mergulhou no espírito da arquitetura cisterciense, visitou mosteiros pela Europa, escutou as nossas necessidades e criou algo profundamente português.
A planta do mosteiro segue a tradição cisterciense: um claustro quadrado, uma igreja em cruz latina, e os espaços de vida comunitária em torno do claustro. A conceção da hospedaria parece a de uma aldeia de Trás-os-Montes — o mosteiro integra-se no lugar, e o lugar abraça o mosteiro.
Para mim, Portugal é uma esperança. Ganhou um mosteiro novo, algo que há muito não acontecia, e apesar de tantos edifícios religiosos se tornarem hotéis ou monumentos, a fé permanece viva.
Uma das coisas que mais me têm impressionado em Palaçoulo é a beleza dos céus. De verão, de inverno, o nascer do sol, o pôr do sol… as cores…. O céu em Palaçoulo é muito bonito. Há algo de belo nesta terra que merece ser cuidado. Nossa Senhora, tenho a certeza, cuidará de nós.
Mais sobre Palaçoulo
Palaçoulo, a aldeia industrial
É uma aldeia industrial. Bastaria esta afirmação para a distinguir de todas as outras. Palaçoulo, em Miranda do Douro, é conhecida internacionalmente pelos produtos que dali seguem para os quatro cantos do mundo. Em pleno planalto mirandês, onde outrora parecia que as estradas não chegavam e o tempo estagnava, uma longa reta – a Avenida da Indústria – acolhe cutelarias e tanoarias, algumas ainda de cariz artesanal. Palaçoulo é também terra de pastores e de pauliteiros. E de monjas.
José Francisco, o pastor de Palaçoulo
Tem uma ou duas preocupações: ver as suas ovelhas sempre bem estimadas e bem vestidas, e saber se os seus amigos de sempre, os que, como ele, não têm família por perto nem gente com quem partilhar a casa, andam bem. Gosta de conversar e conhecer pessoas, e de pagar cafés a quem com ele conversa.
Maria Buendía e Xavier Rodrigues, os Caramonicos
Ele é presidente da Lérias – Associação Cultural, ela da Associação Cultural dos Caramonicos, a que pertencem os Pauliteiros de Palaçoulo. Xavier Rodrigues é de Palaçoulo, Maria Buendía é de Múrcia e ambos são um casal à espera da primeira filha em comum. São os grandes dinamizadores da vida cultural da aldeia. E pais da próxima criança a nascer.
Altino Martins, o mirandês
Começou a trabalhar na oficina do pai ainda miúdo, teria uns dez anos. passava os verões a trabalhar. Lembra-se da primeira tarefa que lhe deram ( grosar o cabo de uma navalha) e da primeira cicatriz que ganhou (a lâmina desprendeu-se e fez-lhe um golpe no braço). Mas todo o tipo de marcas e tatuagens que a vida lhe foi deixando sempre lhe aumentou a “proua” de ser mirandês. E o orgulho de ser de Palaçoulo. Altino é, também, um exímio contador de histórias.
Manuel Gonçalves, o tanoeiro
Está à frente de uma empresa que tem duas atividades bem distintas: a construção civil e a tanoaria. Manuel Gonçalves, filho e neto de tanoeiros, quis seguir as pisadas familiares e manter um negócio que tem conseguido fazer prosperar. As barricas da Tacopal tanto servem para armazenar vinho em França como no Japão.
Daniel Cruz, o jovem cuteleiro
Tem 27 anos de idade e diz que fará as maratonas que for preciso. “A vida é feita de maratonas e desafios. Se não for assim, não tem piada”. Ter nascido em Palaçoulo, terra de empreendedores, desenhou-lhe o destino. Com a conclusão do secundário terminou os estudos e começou a ajudar o pai na cutelaria que criou do zero. Não tem irmãos nem sócios, aceito o “mando” que o pai lhe deu. E está apostado em fazer a cutelaria José da Cruz crescer.
Eliseu Fernandes, o velho artesão
Tem 78 anos e quase sempre um cigarro entre os dedos. Bebe muito, fuma mais, dorme pouco. Mas não há mãos que lhe tremam quando está a fazer uma das artes de que mais gosta: fazer navalhas. Eliseu Fernandes é um dos últimos artesãos de Palaçoulo, que constrói “navalhinhas” de forma artesanal. Não só talha os troncos para fazer punhos, como pega em ferro velho para fazer lâminas. Só faz navalhas quando lhe apetece – ou quando precisa de dinheiro para tabaco.
Alberto Martins, o gestor
É o filho mais novo de José Maria Martins, a família que está à frente da fábrica Martins, a maior cutelaria de Palaçoulo, que emprega cerca de meia centena de pessoas. Alberto Martins deixou uma carreira de professor para profissionalizar a gestão da empresa familiar e, em conjunto com os irmãos, fazer crescer a empresa.
Francisco Cangueiro, o cuteleiro escultor
O gosto e o talento para esculpir começaram numa fábrica de marcenaria, mas cedo chegou às facas. Francisco Cangueiro começou a trabalhar numa das fábricas da aldeia, mas acabou por sair e por se dedicar às peças de coleção, já há 41 anos. O processo não tem nada de industrial. E tem tudo de artístico. Já vendeu falcatas a valer mais de 2.500 euros.
Felismina Gonçalves, a tanoeira
Filha e neta de tanoeiros, esposa e nora de cuteleiros, pôde escolher em que indústria trabalhar. Experimentou as duas, mas foi na indústria da tanoaria que escolheu fazer caminho, e partilha com os irmãos a gestão da maior empresa de tanoaria de Portugal. Viveu em França, foge das cidades e da vida apressada.
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