É o filho mais novo de José Maria Martins, a família que está à frente da fábrica Martins, a maior cutelaria de Palaçoulo, que emprega cerca de meia centena de pessoas. Alberto Martins deixou uma carreira de professor para profissionalizar a gestão da empresa familiar e, em conjunto com os irmãos, fazer crescer a empresa. Eis o seu testemunho.
“Tornámos a empresa mais virada para o futuro”
Chamo-me Alberto Martins, e sou o mais novo dos irmãos que estão aqui à frente da Cutelaria Martins. Este espaço onde hoje acolhemos os nossos clientes era, em tempos, a antiga carpintaria. Era a zona mais inóspita da empresa – com muita poeira, mesmo à entrada, onde se recebiam os visitantes. Mas sempre sonhámos em dar-lhe outra vida.
Queríamos um lugar que contasse a nossa história, que mostrasse o que aqui se faz e que criasse uma nova dinâmica. Assim nasceu este pequeno ateliê, onde fazemos personalizações, exibimos amostras físicas e, por vezes, até fechamos negócios.
Uma navalha exige cerca de 80 operações. Somos pouco mais de 20 pessoas na empresa, o que significa que cada peça passa, em média, quatro vezes pelas mãos de cada um. A mecanização trouxe eficiência, mas o processo continua artesanal
Alberto Martins
Palaçoulo é muito visitado, especialmente entre maio e setembro, altura em que muitos portugueses que vivem no estrangeiro regressam à terra. Há quem venha de Paris só para visitar a nossa loja e comprar as peças que usam nos restaurantes onde trabalham. Recebemos muitos visitantes do Nordeste Transmontano que nos conhecem, passam por cá, partilham histórias.
A origem da cutelaria em Palaçoulo está documentada neste nosso pequeno museu. Segundo a memória coletiva, tudo começou com o senhor José de Castro, um ferreiro que veio para cá trabalhar. Enquanto afilava enxadas e arados, começou também a fazer navalhas para os agricultores. Como dizia o João Serra, nas suas crónicas dos anos 1980, no mundo rural a navalha é como uma terceira mão. Serve para tudo: desde enxertar uma videira até cortar pão à mesa. É uma companheira inseparável — e carregada de valor emocional.
O senhor Castro começou esta atividade uma geração antes do meu pai. Os filhos dele, o Américo e o Horácio, eram contemporâneos do meu pai e também excelentes artesãos. Mantinham um relacionamento próximo e muito saudável com o nosso fundador. Havia, aqui, uma espécie de trilogia de mestres navalheiros.
Para perceber como começou tudo connosco, é preciso recuar a 5 de junho de 1954, quando o meu pai obteve a carta de ferrador na Escola de Medicina Veterinária de Lisboa. Era um jovem resiliente, cheio de vontade de contrariar o impulso de emigrar, que era muito forte na época. Chegou a pensar no Brasil, mas acabou por ficar por cá. Fez estágio com um mestre em Sendim e, depois de obter a carta, começou a trabalhar por conta própria, em Palaçoulo e nas aldeias vizinhas.
Rapidamente percebeu que a ferragem era uma atividade sazonal. Como já dominava bem o tratamento térmico dos metais, começou a fabricar navalhas – e acabou por se dedicar exclusivamente à cutelaria, à medida que a mecanização foi chegando ao campo.
Mais tarde, os meus irmãos, que são mais velhos do que eu, deram continuidade ao negócio. Primeiro vieram as facas, depois os talheres. A grande viragem deu-se em 2008. Antecipámos a crise mundial e fizemos um reposicionamento estratégico. Fizemos um estudo de mercado, redesenhámos os nossos produtos, renovámos a imagem e alargámos os horizontes.
Antes disso, em 1985, já tínhamos dado outro passo importante: começámos a mecanizar o processo. Não deixámos de ser artesãos, mas procurámos um equilíbrio. Uma navalha exige cerca de 80 operações. Somos pouco mais de 20 pessoas na empresa, o que significa que cada peça passa, em média, quatro vezes pelas mãos de cada um. A mecanização trouxe eficiência, mas o processo continua artesanal. Continuamos a aprender, a experimentar e a evoluir.
Hoje, os nossos produtos chegam a destinos impensáveis. Uma cantora australiana usa os nossos talheres como merchandising. Um designer do Quebec incorporou uma das nossas navalhas num acessório de moda. Muitos arquitetos e designers estrangeiros incluem a nossa navalhinha estilizada como símbolo de portugalidade. Provavelmente, são filhos de turistas que, anos antes, passaram por cá e levaram um produto nosso como lembrança.
Outro segmento que temos vindo a desenvolver é o dos brindes. Tornou-se o nosso core business. Trabalhamos com instituições de ensino, empresas nacionais e internacionais. Procuramos sempre adaptar-nos, oferecendo algo único, com identidade.
A minha história de vida tem algumas voltas. Fiz o ensino secundário aqui na região, o bacharelato em Bragança e depois a licenciatura em Lisboa. Trabalhei 15 anos no ensino superior. Mas, em 2008, com a transformação da empresa, decidi regressar. Falei com os meus irmãos – somos quatro, dois rapazes e duas raparigas – e entrei para o negócio familiar. Hoje, somos os quatro sócios-gerentes. Trabalhamos juntos por vocação e por herança.
Claro que o regresso teve os seus desafios. As nossas formas de pensar eram diferentes. Mas foi uma oportunidade de enriquecimento mútuo. Trouxe a minha experiência em gestão e juntos consolidámos a empresa, tornámo-la mais dinâmica e virada para o futuro.
Costumo dizer que não nos distinguimos dos outros pela diferença em si, mas pela paixão com que trabalhamos. A nossa assinatura, “Pura Paixão Cutileira”, não é apenas um slogan — é uma realidade. Cada peça que fazemos leva o nosso empenho. Se não está melhor, é porque ainda não conseguimos. Mas tentamos, todos os dias.
Os nossos nichos de mercado surgiram a partir da análise que fizemos em 2008. Até aí, vendíamos sobretudo em feiras. Compreendemos que era preciso mudar. Reformulámos as peças, criámos novos produtos, começámos a vendê-los em locais improváveis – livrarias, papelarias – e valorizámos a informação que acompanha cada produto. Não queremos apenas vender um objeto. Queremos vender memória, identidade, história.
Um exemplo disto é o nosso kit merendeiro. Nasceu da tradição transmontana. O agricultor levava sempre uma tábua para o campo, onde cortava um pedaço de queijo, de chouriço, talvez uma cebola ou um tomate. Inspirámo-nos nisso e criámos uma tábua com íman para fixar a faca, com o formato de uma garrafa — por causa da “pinga” que sempre acompanhou a merenda.
É um produto que só podia nascer aqui. A nossa ligação ao território é profunda. É aqui que está o cluster. É aqui que faz sentido criar. As várias iniciativas locais ajudam a manter essa coesão, esse espírito comunitário, essa qualidade.
Na Cutelaria Martins, a prioridade é sempre a valorização das pessoas. Não nos passa pela cabeça substituir um trabalhador por um robô se houver forma de manter esse posto de trabalho. Não é só uma questão empresarial, é uma questão social. Aqui, despedir um colaborador significaria, muitas vezes, despedir um vizinho, um amigo, um familiar. E isso, para nós, é impensável.
Ter uma peça Martins nas mãos é segurar um pedaço da nossa história. É ter o nosso trabalho, o nosso empenho, o nosso envolvimento diário, a nossa determinação e a resiliência que nos foi transmitida pelas gerações anteriores.
Estamos no Nordeste Transmontano. Isso traz desafios. Não temos o mesmo acesso a técnicos e conhecimento especializado. Muitas vezes temos de produzir os próprios componentes. Mas isso obriga-nos a ser mais criativos. E, acima de tudo, dá-nos uma agilidade que empresas maiores não têm. Há quem veja uma empresa com 20 pessoas como pequena demais. Eu vejo-a como uma estrutura capaz de responder com flexibilidade, de inovar com autenticidade, e de continuar – com paixão – a fazer cutelaria como quem escreve uma história com as mãos.
Mais sobre Palaçoulo
Palaçoulo, a aldeia industrial
É uma aldeia industrial. Bastaria esta afirmação para a distinguir de todas as outras. Palaçoulo, em Miranda do Douro, é conhecida internacionalmente pelos produtos que dali seguem para os quatro cantos do mundo. Em pleno planalto mirandês, onde outrora parecia que as estradas não chegavam e o tempo estagnava, uma longa reta – a Avenida da Indústria – acolhe cutelarias e tanoarias, algumas ainda de cariz artesanal. Palaçoulo é também terra de pastores e de pauliteiros. E de monjas.
José Francisco, o pastor de Palaçoulo
Tem uma ou duas preocupações: ver as suas ovelhas sempre bem estimadas e bem vestidas, e saber se os seus amigos de sempre, os que, como ele, não têm família por perto nem gente com quem partilhar a casa, andam bem. Gosta de conversar e conhecer pessoas, e de pagar cafés a quem com ele conversa.
Irmã Giusy Maffini, a Madre Superiora
Está à frente de uma comunidade de 10 monjas, que se mudou de Vitorchiano, em Itália, para Palaçoulo, em Miranda do Douro, para se instalar no primeiro mosteiro trapista construído em Portugal. A expectativa que trouxe foi a de construir uma casa que acolha muitas monjas portuguesas, que floresça como uma comunidade local, alegre, fecunda e “portadora da beleza da vida cristã”. E diz que há qualquer coisa especial em Palaçoulo. A começar pelo céu.
Maria Buendía e Xavier Rodrigues, os Caramonicos
Ele é presidente da Lérias – Associação Cultural, ela da Associação Cultural dos Caramonicos, a que pertencem os Pauliteiros de Palaçoulo. Xavier Rodrigues é de Palaçoulo, Maria Buendía é de Múrcia e ambos são um casal à espera da primeira filha em comum. São os grandes dinamizadores da vida cultural da aldeia. E pais da próxima criança a nascer.
Altino Martins, o mirandês
Começou a trabalhar na oficina do pai ainda miúdo, teria uns dez anos. passava os verões a trabalhar. Lembra-se da primeira tarefa que lhe deram ( grosar o cabo de uma navalha) e da primeira cicatriz que ganhou (a lâmina desprendeu-se e fez-lhe um golpe no braço). Mas todo o tipo de marcas e tatuagens que a vida lhe foi deixando sempre lhe aumentou a “proua” de ser mirandês. E o orgulho de ser de Palaçoulo. Altino é, também, um exímio contador de histórias.
Manuel Gonçalves, o tanoeiro
Está à frente de uma empresa que tem duas atividades bem distintas: a construção civil e a tanoaria. Manuel Gonçalves, filho e neto de tanoeiros, quis seguir as pisadas familiares e manter um negócio que tem conseguido fazer prosperar. As barricas da Tacopal tanto servem para armazenar vinho em França como no Japão.
Daniel Cruz, o jovem cuteleiro
Tem 27 anos de idade e diz que fará as maratonas que for preciso. “A vida é feita de maratonas e desafios. Se não for assim, não tem piada”. Ter nascido em Palaçoulo, terra de empreendedores, desenhou-lhe o destino. Com a conclusão do secundário terminou os estudos e começou a ajudar o pai na cutelaria que criou do zero. Não tem irmãos nem sócios, aceito o “mando” que o pai lhe deu. E está apostado em fazer a cutelaria José da Cruz crescer.
Eliseu Fernandes, o velho artesão
Tem 78 anos e quase sempre um cigarro entre os dedos. Bebe muito, fuma mais, dorme pouco. Mas não há mãos que lhe tremam quando está a fazer uma das artes de que mais gosta: fazer navalhas. Eliseu Fernandes é um dos últimos artesãos de Palaçoulo, que constrói “navalhinhas” de forma artesanal. Não só talha os troncos para fazer punhos, como pega em ferro velho para fazer lâminas. Só faz navalhas quando lhe apetece – ou quando precisa de dinheiro para tabaco.
Francisco Cangueiro, o cuteleiro escultor
O gosto e o talento para esculpir começaram numa fábrica de marcenaria, mas cedo chegou às facas. Francisco Cangueiro começou a trabalhar numa das fábricas da aldeia, mas acabou por sair e por se dedicar às peças de coleção, já há 41 anos. O processo não tem nada de industrial. E tem tudo de artístico. Já vendeu falcatas a valer mais de 2.500 euros.
Felismina Gonçalves, a tanoeira
Filha e neta de tanoeiros, esposa e nora de cuteleiros, pôde escolher em que indústria trabalhar. Experimentou as duas, mas foi na indústria da tanoaria que escolheu fazer caminho, e partilha com os irmãos a gestão da maior empresa de tanoaria de Portugal. Viveu em França, foge das cidades e da vida apressada.
Com o apoio de: