Tem 27 anos de idade e diz que fará as maratonas que for preciso. “A vida é feita de maratonas e desafios. Se não for assim, não tem piada”. Ter nascido em Palaçoulo, terra de empreendedores, desenhou-lhe o destino. Com a conclusão do secundário terminou os estudos e começou a ajudar o pai na cutelaria que criou do zero. Não tem irmãos nem sócios, aceito o “mando” que o pai lhe deu. E está apostado em fazer a cutelaria José da Cruz crescer. Eis o seu testemunho.

“O meu pai passou-me o testemunho”
Chamo-me Daniel, tenho 27 anos e estou à frente da empresa familiar de cutelaria que o meu pai fundou. Ele dedicou praticamente toda a vida à cutelaria, trabalhou noutras empresas da área e esteve emigrado na Alemanha durante oito anos, sempre ligado à metalomecânica. Em 2003 começou, em part-time, a fazer as suas navalhas num pequeno espaço aqui em Palaçoulo. Em 2010, dedicou-se a tempo inteiro. No início foi difícil, claro. Entrar no mercado custa sempre.
Entrei na empresa em 2015. Não quis continuar os estudos — fiquei-me pelo 12.º ano — e optei por me dedicar de corpo e alma ao projeto. Desde o início, o meu pai confiou em mim, passou-me o testemunho, deu-me o “mando”, como aqui se diz, mas tive sempre com o apoio dele. Hoje somos sete pessoas a trabalhar, temos mercado em Portugal e também lá fora. As coisas estão a correr bem, felizmente.
É uma aldeia bastante desenvolvida, apesar de pequena. Temos tudo o que precisamos: fibra óptica, comércio, cafés… Não nos falta nada.
Daniel Cruz

Palaçoulo tem uma tradição enorme na cutelaria. A veia empreendedora nasce connosco. Desde os tempos dos ferreiros que aqui se trabalha o ferro e a madeira. A aldeia modernizou-se, adaptou-se aos tempos e hoje é reconhecida internacionalmente pelas facas e navalhas. Quando se fala de Palaçoulo, fala-se de cutelaria. E isso é fruto de muito trabalho ao longo de décadas.
Aqui trabalhamos com vários tipos de madeira, muitos deles da nossa região — como a medronheira, o bucho, a giesta ou a oliveira — e com dois tipos principais de aço: o inoxidável e o carbono. O carbono é mais fácil de afiar e quem gosta, gosta mesmo. Mas escurece com o uso e pode ganhar ferrugem se for mal tratado. O inox é mais limpo e retém o fio mais tempo, por isso é o mais procurado. Ambos cortam bem, mas cada um tem os seus fãs.
A geração mais velha ainda olha para nós, os mais novos, com alguma desconfiança. É normal. Mas com o tempo e com trabalho, ganhámos o nosso espaço. Também sinto que tenho a responsabilidade de continuar a tradição e de ajudar a fixar pessoas aqui. Hoje empregamos jovens da região. O futuro de Palaçoulo passa por aí — criar condições para que as pessoas fiquem, para que haja emprego.
Do que mais gosto, em viver aqui em Palaçoulo, é da paz. É uma aldeia bastante desenvolvida, apesar de pequena. Temos tudo o que precisamos: fibra óptica, comércio, cafés… Não nos falta nada. Ao contrário de outras aldeias vizinhas, onde, às vezes, nem se encontra um sítio para comprar uma caixa de manteiga, aqui há essas pequenas comodidades que fazem toda a diferença no dia a dia. E isso contribui muito para a qualidade de vida.

A vida cultural também está muito presente. Temos uma associação muito ativa — o Carnavónico — que faz um trabalho incrível na preservação das tradições. Promove o folclore, ensina instrumentos tradicionais… Eu próprio toquei gaita de foles. Hoje em dia já não pratico tanto, mas ainda sei tocar. É como andar de bicicleta — nunca se esquece.
A tradição empreendedora de Palaçoulo também me marcou, claro. Essa veia vem de longe. Na altura dos ferreiros, tudo era feito à mão. Com o tempo, a aldeia soube adaptar-se e modernizar-se, mas sem perder a essência. Hoje, Palaçoulo é conhecida no mundo inteiro pelas facas e navalhas. Isso não aconteceu por acaso. É o resultado de muito trabalho, de uma cultura de resiliência e de um espírito empreendedor que continua bem vivo.

No fundo, é uma missão. Fazer navalhas é um processo longo, com muitas voltas. Há muito que não se vê no produto final, mas que está lá. Desde a lâmina à madeira, do rebite à afiação, tudo exige atenção. E há beleza nisso: transformar uma chapa de aço numa peça única. E poder criar algo novo, ver nascer um modelo nosso, é o que mais gosto de fazer. A tradição continua. Mas com identidade própria.
Mais sobre Palaçoulo
Palaçoulo, a aldeia industrial
É uma aldeia industrial. Bastaria esta afirmação para a distinguir de todas as outras. Palaçoulo, em Miranda do Douro, é conhecida internacionalmente pelos produtos que dali seguem para os quatro cantos do mundo. Em pleno planalto mirandês, onde outrora parecia que as estradas não chegavam e o tempo estagnava, uma longa reta – a Avenida da Indústria – acolhe cutelarias e tanoarias, algumas ainda de cariz artesanal. Palaçoulo é também terra de pastores e de pauliteiros. E de monjas.
José Francisco, o pastor de Palaçoulo
Tem uma ou duas preocupações: ver as suas ovelhas sempre bem estimadas e bem vestidas, e saber se os seus amigos de sempre, os que, como ele, não têm família por perto nem gente com quem partilhar a casa, andam bem. Gosta de conversar e conhecer pessoas, e de pagar cafés a quem com ele conversa.
Irmã Giusy Maffini, a Madre Superiora
Está à frente de uma comunidade de 10 monjas, que se mudou de Vitorchiano, em Itália, para Palaçoulo, em Miranda do Douro, para se instalar no primeiro mosteiro trapista construído em Portugal. A expectativa que trouxe foi a de construir uma casa que acolha muitas monjas portuguesas, que floresça como uma comunidade local, alegre, fecunda e “portadora da beleza da vida cristã”. E diz que há qualquer coisa especial em Palaçoulo. A começar pelo céu.
Maria Buendía e Xavier Rodrigues, os Caramonicos
Ele é presidente da Lérias – Associação Cultural, ela da Associação Cultural dos Caramonicos, a que pertencem os Pauliteiros de Palaçoulo. Xavier Rodrigues é de Palaçoulo, Maria Buendía é de Múrcia e ambos são um casal à espera da primeira filha em comum. São os grandes dinamizadores da vida cultural da aldeia. E pais da próxima criança a nascer.
Altino Martins, o mirandês
Começou a trabalhar na oficina do pai ainda miúdo, teria uns dez anos. passava os verões a trabalhar. Lembra-se da primeira tarefa que lhe deram ( grosar o cabo de uma navalha) e da primeira cicatriz que ganhou (a lâmina desprendeu-se e fez-lhe um golpe no braço). Mas todo o tipo de marcas e tatuagens que a vida lhe foi deixando sempre lhe aumentou a “proua” de ser mirandês. E o orgulho de ser de Palaçoulo. Altino é, também, um exímio contador de histórias.
Manuel Gonçalves, o tanoeiro
Está à frente de uma empresa que tem duas atividades bem distintas: a construção civil e a tanoaria. Manuel Gonçalves, filho e neto de tanoeiros, quis seguir as pisadas familiares e manter um negócio que tem conseguido fazer prosperar. As barricas da Tacopal tanto servem para armazenar vinho em França como no Japão.
Eliseu Fernandes, o velho artesão
Tem 78 anos e quase sempre um cigarro entre os dedos. Bebe muito, fuma mais, dorme pouco. Mas não há mãos que lhe tremam quando está a fazer uma das artes de que mais gosta: fazer navalhas. Eliseu Fernandes é um dos últimos artesãos de Palaçoulo, que constrói “navalhinhas” de forma artesanal. Não só talha os troncos para fazer punhos, como pega em ferro velho para fazer lâminas. Só faz navalhas quando lhe apetece – ou quando precisa de dinheiro para tabaco.
Alberto Martins, o gestor
É o filho mais novo de José Maria Martins, a família que está à frente da fábrica Martins, a maior cutelaria de Palaçoulo, que emprega cerca de meia centena de pessoas. Alberto Martins deixou uma carreira de professor para profissionalizar a gestão da empresa familiar e, em conjunto com os irmãos, fazer crescer a empresa.
Francisco Cangueiro, o cuteleiro escultor
O gosto e o talento para esculpir começaram numa fábrica de marcenaria, mas cedo chegou às facas. Francisco Cangueiro começou a trabalhar numa das fábricas da aldeia, mas acabou por sair e por se dedicar às peças de coleção, já há 41 anos. O processo não tem nada de industrial. E tem tudo de artístico. Já vendeu falcatas a valer mais de 2.500 euros.
Felismina Gonçalves, a tanoeira
Filha e neta de tanoeiros, esposa e nora de cuteleiros, pôde escolher em que indústria trabalhar. Experimentou as duas, mas foi na indústria da tanoaria que escolheu fazer caminho, e partilha com os irmãos a gestão da maior empresa de tanoaria de Portugal. Viveu em França, foge das cidades e da vida apressada.
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