Tem 78 anos e quase sempre um cigarro entre os dedos. Bebe muito, fuma mais, dorme pouco. Mas não há mãos que lhe tremam quando está a fazer uma das artes de que mais gosta: fazer navalhas. Eliseu Fernandes é um dos últimos artesãos de Palaçoulo, que constrói “navalhinhas” de forma artesanal. Não só talha os troncos para fazer punhos, como pega em ferro velho para fazer lâminas. Só faz navalhas quando lhe apetece – ou quando precisa de dinheiro para tabaco. Eis o seu testemunho.
“Tenho pena de pensar que vou morrer com o conhecimento todo que tenho”
Chamo-me Eliseu, tenho 78 anos e aprendi a trabalhar muito cedo. Deve ser por isso que ando para aqui todo empandeirado das costas, com dores na coluna.
Disseram-me uma vez: “Começaste cedo?” E é verdade. Os meus pais trabalhavam na lavoura, sou filho único, não tinha irmãos, e punham-me a fazer serviços duros. Hoje é proibido, eu sei, mas naquele tempo era assim. Ceifava-se com a foice, atavam-se os molhinhos… Trabalhava-se 12, 14 horas por dia. Começava-se de noite e acabava-se de noite. Ia por trás de quem ceifava e atava os molhinhos. Dobrava-me, levantava-me, andava o dia inteiro nisto.
Eu nunca faço um serviço à pressa. Primeiro penso, depois faço. Quando está bem pensado, sai certo.
Eliseu Fernandes
Cheguei a uma altura em que, se me pusessem no meio de 30 homens, fazia o serviço como qualquer um. É como tudo: quem sabe, sabe. Também me ensinaram, como o meu pai me ensinou. Quem estuda, aprende. E eu estou convencido disso: o que é preciso é ter cabecinha.
Fui parar a Hamburgo, mas antes disso trabalhei num hotel enorme, o Atlântico. A minha sogra arranjou-me um contrato de um ano. Fazíamos serviço para três mil pessoas de uma vez. Três mil! Quando acabou o contrato, fui para a relojoaria. Não estava bem preparado, mas queria aprender. O meu pai não era relojoeiro, fui eu que inventei isso. Sempre fui curioso. Fiz um curso por correspondência, ainda tenho o diploma guardado. Depois, estive com um mestre relojoeiro e aprendi mais.
O chefe espanhol do hotel gostava de mim. Quando fui embora, disse-me: “Fernandes, se não te arranjares bem na relojoaria, volta para nós. As portas estão abertas.” Mas eu queria seguir aquele caminho.
Já com as navalhas, foi outra invenção minha. O meu pai não era ferreiro, trabalhava na terra. Eu queria aprender serralharia, mas ele precisava de mim, não me deixou ir. Mais tarde, aprendi com um primo em Uva — conhecem Uva? Uma aldeia aqui perto. Ele chamava-se César, já morreu. Aprendeu em Sandim e depois casou em Uva. Sabia fazer relhas, enxadas, tudo para a lavoura. Eu só queria saber das navalhas.
Hoje ainda fumo um cigarro quando o serviço não está a sair bem. Sei que faz mal, mas parece que ajuda a puxar pela cabeça.
A navalha artesanal, feita à mão, bem polida… não há fábrica que chegue perto. Tinha uma forja antiga, mas ardeu e tive de mudar. Agora estou sozinho. Vivi 35 anos com a minha mulher, ela ainda me visita, mas já não está aqui.
Se quiser, ainda faço dinheiro a trabalhar. Tenho cabos de madeira que vieram de Moçambique, Angola, América… madeira de todas as cores. Querem ver uma navalha terminada? Tenho uma guardada para um amigo. E até vos posso mostrar o processo todo, do princípio ao fim.
A lâmina é temperada e desbastada. Quando comecei, usávamos aço redondo para fazer as folhinhas. Malhávamos o aço na bigorna até ganhar forma. Tinha uma bigorna de 40 quilos, mandaram-ma quando eu tinha 13 anos.
Hoje já vem tudo na medida certa, mas eu escolho a espessura. Aço com um milímetro e meio. Depois desbasta-se, faz-se o corte, acerta-se no cabo. Antes furava os cabos à mão, mas nunca ficava certo. Agora uso um molde: meto o cabo num buraco, a broca entra e faz o furo certo. Sempre igual. Depois polimos a lâmina.
Tenho pena de pensar que vou morrer com o conhecimento todo que tenho. Isso custa.
O meu filho está na Alemanha, a minha filha é professora em Bragança. Nenhum pegou nisto. E eu penso: “As máquinas, quem as vai usar?” Fiz algumas, inventei outras. Tenho inteligência para isso, mas os meus herdeiros nem sabem quanto custa uma máquina, nem conhecem o caminho para a oficina.
Se o meu filho pegasse nisto… Mas pronto.
Agora veem-me com esta barba. Não gosto, parece descuidado. Tenho ali lâminas novas, logo corto. Há quem diga que me fica bem. Nem por isso. Mas cada um usa como quer.
Há dias que estou mais em baixo, mas noutras alturas, se quisesse, fazia dinheiro para o tabaco e mais. Se vocês me filmassem a trabalhar, ainda ficavam espantados com a rapidez! Aos 78 anos!
Eu nunca faço um serviço à pressa. Primeiro penso, depois faço. Quando está bem pensado, sai certo.
Mais sobre Palaçoulo
Palaçoulo, a aldeia industrial
É uma aldeia industrial. Bastaria esta afirmação para a distinguir de todas as outras. Palaçoulo, em Miranda do Douro, é conhecida internacionalmente pelos produtos que dali seguem para os quatro cantos do mundo. Em pleno planalto mirandês, onde outrora parecia que as estradas não chegavam e o tempo estagnava, uma longa reta – a Avenida da Indústria – acolhe cutelarias e tanoarias, algumas ainda de cariz artesanal. Palaçoulo é também terra de pastores e de pauliteiros. E de monjas.
José Francisco, o pastor de Palaçoulo
Tem uma ou duas preocupações: ver as suas ovelhas sempre bem estimadas e bem vestidas, e saber se os seus amigos de sempre, os que, como ele, não têm família por perto nem gente com quem partilhar a casa, andam bem. Gosta de conversar e conhecer pessoas, e de pagar cafés a quem com ele conversa.
Irmã Giusy Maffini, a Madre Superiora
Está à frente de uma comunidade de 10 monjas, que se mudou de Vitorchiano, em Itália, para Palaçoulo, em Miranda do Douro, para se instalar no primeiro mosteiro trapista construído em Portugal. A expectativa que trouxe foi a de construir uma casa que acolha muitas monjas portuguesas, que floresça como uma comunidade local, alegre, fecunda e “portadora da beleza da vida cristã”. E diz que há qualquer coisa especial em Palaçoulo. A começar pelo céu.
Maria Buendía e Xavier Rodrigues, os Caramonicos
Ele é presidente da Lérias – Associação Cultural, ela da Associação Cultural dos Caramonicos, a que pertencem os Pauliteiros de Palaçoulo. Xavier Rodrigues é de Palaçoulo, Maria Buendía é de Múrcia e ambos são um casal à espera da primeira filha em comum. São os grandes dinamizadores da vida cultural da aldeia. E pais da próxima criança a nascer.
Altino Martins, o mirandês
Começou a trabalhar na oficina do pai ainda miúdo, teria uns dez anos. passava os verões a trabalhar. Lembra-se da primeira tarefa que lhe deram ( grosar o cabo de uma navalha) e da primeira cicatriz que ganhou (a lâmina desprendeu-se e fez-lhe um golpe no braço). Mas todo o tipo de marcas e tatuagens que a vida lhe foi deixando sempre lhe aumentou a “proua” de ser mirandês. E o orgulho de ser de Palaçoulo. Altino é, também, um exímio contador de histórias.
Manuel Gonçalves, o tanoeiro
Está à frente de uma empresa que tem duas atividades bem distintas: a construção civil e a tanoaria. Manuel Gonçalves, filho e neto de tanoeiros, quis seguir as pisadas familiares e manter um negócio que tem conseguido fazer prosperar. As barricas da Tacopal tanto servem para armazenar vinho em França como no Japão.
Daniel Cruz, o jovem cuteleiro
Tem 27 anos de idade e diz que fará as maratonas que for preciso. “A vida é feita de maratonas e desafios. Se não for assim, não tem piada”. Ter nascido em Palaçoulo, terra de empreendedores, desenhou-lhe o destino. Com a conclusão do secundário terminou os estudos e começou a ajudar o pai na cutelaria que criou do zero. Não tem irmãos nem sócios, aceito o “mando” que o pai lhe deu. E está apostado em fazer a cutelaria José da Cruz crescer.
Alberto Martins, o gestor
É o filho mais novo de José Maria Martins, a família que está à frente da fábrica Martins, a maior cutelaria de Palaçoulo, que emprega cerca de meia centena de pessoas. Alberto Martins deixou uma carreira de professor para profissionalizar a gestão da empresa familiar e, em conjunto com os irmãos, fazer crescer a empresa.
Francisco Cangueiro, o cuteleiro escultor
O gosto e o talento para esculpir começaram numa fábrica de marcenaria, mas cedo chegou às facas. Francisco Cangueiro começou a trabalhar numa das fábricas da aldeia, mas acabou por sair e por se dedicar às peças de coleção, já há 41 anos. O processo não tem nada de industrial. E tem tudo de artístico. Já vendeu falcatas a valer mais de 2.500 euros.
Felismina Gonçalves, a tanoeira
Filha e neta de tanoeiros, esposa e nora de cuteleiros, pôde escolher em que indústria trabalhar. Experimentou as duas, mas foi na indústria da tanoaria que escolheu fazer caminho, e partilha com os irmãos a gestão da maior empresa de tanoaria de Portugal. Viveu em França, foge das cidades e da vida apressada.
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