Filha e neta de tanoeiros, esposa e nora de cuteleiros, pôde escolher em que indústria trabalhar. Experimentou as duas, mas foi na indústria da tanoaria que escolheu fazer caminho, e partilha com os irmãos a gestão da maior empresa de tanoaria de Portugal. Viveu em França, foge das cidades e da vida apressada. Eis o seu testemunho.
“Chegámos a sítios onde nem sequer sonhávamos”
Sou Felismina Gonçalves e uma das sócias-gerentes da Tanoaria J. M. Gonçalves. Nasci aqui em Palaçoulo há 68 anos. Crescer aqui foi igual, com certeza, a crescer noutra aldeia qualquer. Era o tempo da escola cheia de miúdos, onde se aprendia e se brincava. Mas não havia luz, não havia água canalizada, não havia nada.
Palaçoulo não era uma aldeia diferente das outras, nem era uma aldeia industrial. O meu avô já fazia umas barricas que depois ia vender às feiras. O meu pai aprendeu com ele, também fazia carpintaria e outras coisas… Depois emigrou para França, e foi aí que ele aprendeu mais. Dois dos meus irmãos nasceram em França.
Tem sido tudo desafiante. Mas o mais gratificante são as conquistas: ver que chegámos a sítios onde nem sequer sonhávamos, como vender para o mundo inteiro, fazer um produto de excelência, sermos certificados, sermos reconhecidos.
Felismina Gonçalves
Quando o meu pai já tinha juntado algum, voltou para Portugal e começou a trabalhar sozinho. Não criou a empresa do zero, porque o meu avô já fazia este trabalho, mas trouxe outro savoir-faire, como dizem os franceses. Veio com outra visão. O meu irmão mais velho aprendeu com ele. Nessa altura já havia eletricidade, compraram-se as primeiras máquinas, e o meu pai fez a primeira tanoaria. Depois a segunda. E nós, os irmãos, fizemos a terceira.
Somos seis irmãos. Já não estamos todos na empresa — o mais velho reformou-se, cedeu as cotas aos filhos — mas os outros ainda estamos. Assisti e participei no crescimento da empresa. Tem sido tudo desafiante. Mas o mais gratificante são as conquistas: ver que chegámos a sítios onde nem sequer sonhávamos, como vender para o mundo inteiro, fazer um produto de excelência, sermos certificados, sermos reconhecidos.
Hoje o nosso mercado é mundial. Temos um grande mercado nos Estados Unidos, na Europa — Portugal, Espanha, França, Alemanha… Estamos presentes em muitos lados.
Dizem que estamos no fim do mundo, mas eu digo que estamos à porta da Europa. Estamos a 20 e poucos quilómetros da fronteira de Espanha, talvez a 600 ou 700 da fronteira com França. Portanto, não estamos no fim do mundo.
Estar aqui, em Palaçoulo, tem vantagens. A qualidade do ar, a qualidade de vida. Vivemos mais à vontade, estamos mais tranquilos. Isto depois de sair do trabalho. Porque enquanto estamos aqui, a trabalhar, o ritmo é igual ao de uma grande cidade. É sempre a rodar.
Mas sabe o que lhe digo? Que aqui conseguimos trabalhar muito mais. Porque na cidade gasta-se metade do tempo à espera de alguma coisa: à espera que o outro passe, à espera que o semáforo abra, à espera na bicha para pagar. E nós aqui não esperamos por nada. É sempre a rodar, sempre a trabalhar.
Não trabalhei sempre aqui. Quando casei, fui trabalhar com o meu marido e com os irmãos, e com o meu sogro, na cutelaria Filmam. Trabalhei lá pouco tempo, até ficar grávida. Depois fiz uma pausa, criei o meu filho até aos 3 anos, e achei que podia ser uma mais-valia para ajudar o meu pai. Foi aí que me juntei à tanoaria.
Na altura em que começámos, Palaçoulo não era uma aldeia com tanta indústria. Agora já se distingue um bocadinho das outras, e acho que é melhor. Há cafés, restaurantes, supermercados… Isso tem que ver com a indústria. Porque se não houvesse indústria, não havia nada disto. Quando uma empresa se instala e começa a crescer, incentiva outras a crescerem também.
Os desafios são muitos, claro. É difícil arranjar trabalhadores, sobretudo trabalhadores qualificados. Já melhoraram as vias de comunicação, mas antes era muito difícil localizar Palaçoulo.
Aqui em casa não se falava mirandês, mas a minha mãe falava — falava quando saía de casa, porque o meu pai não era daqui, era de Caçarelhos, e lá não se falava. O meu avô também não falava mirandês, nem a minha avó. Eu aprendi um bocadinho, e o meu neto até já sabe falar um pouco. Agora aprende-se mirandês na escola, desde o pré-escolar.
Antigamente, se fossemos a Miranda, não podíamos falar mirandês. Éramos considerados os “parolos”. Hoje já é diferente. Hoje é chique.
Mais sobre Palaçoulo
Palaçoulo, a aldeia industrial
É uma aldeia industrial. Bastaria esta afirmação para a distinguir de todas as outras. Palaçoulo, em Miranda do Douro, é conhecida internacionalmente pelos produtos que dali seguem para os quatro cantos do mundo. Em pleno planalto mirandês, onde outrora parecia que as estradas não chegavam e o tempo estagnava, uma longa reta – a Avenida da Indústria – acolhe cutelarias e tanoarias, algumas ainda de cariz artesanal. Palaçoulo é também terra de pastores e de pauliteiros. E de monjas.
José Francisco, o pastor de Palaçoulo
Tem uma ou duas preocupações: ver as suas ovelhas sempre bem estimadas e bem vestidas, e saber se os seus amigos de sempre, os que, como ele, não têm família por perto nem gente com quem partilhar a casa, andam bem. Gosta de conversar e conhecer pessoas, e de pagar cafés a quem com ele conversa.
Irmã Giusy Maffini, a Madre Superiora
Está à frente de uma comunidade de 10 monjas, que se mudou de Vitorchiano, em Itália, para Palaçoulo, em Miranda do Douro, para se instalar no primeiro mosteiro trapista construído em Portugal. A expectativa que trouxe foi a de construir uma casa que acolha muitas monjas portuguesas, que floresça como uma comunidade local, alegre, fecunda e “portadora da beleza da vida cristã”. E diz que há qualquer coisa especial em Palaçoulo. A começar pelo céu.
Maria Buendía e Xavier Rodrigues, os Caramonicos
Ele é presidente da Lérias – Associação Cultural, ela da Associação Cultural dos Caramonicos, a que pertencem os Pauliteiros de Palaçoulo. Xavier Rodrigues é de Palaçoulo, Maria Buendía é de Múrcia e ambos são um casal à espera da primeira filha em comum. São os grandes dinamizadores da vida cultural da aldeia. E pais da próxima criança a nascer.
Altino Martins, o mirandês
Começou a trabalhar na oficina do pai ainda miúdo, teria uns dez anos. passava os verões a trabalhar. Lembra-se da primeira tarefa que lhe deram ( grosar o cabo de uma navalha) e da primeira cicatriz que ganhou (a lâmina desprendeu-se e fez-lhe um golpe no braço). Mas todo o tipo de marcas e tatuagens que a vida lhe foi deixando sempre lhe aumentou a “proua” de ser mirandês. E o orgulho de ser de Palaçoulo. Altino é, também, um exímio contador de histórias.
Manuel Gonçalves, o tanoeiro
Está à frente de uma empresa que tem duas atividades bem distintas: a construção civil e a tanoaria. Manuel Gonçalves, filho e neto de tanoeiros, quis seguir as pisadas familiares e manter um negócio que tem conseguido fazer prosperar. As barricas da Tacopal tanto servem para armazenar vinho em França como no Japão.
Daniel Cruz, o jovem cuteleiro
Tem 27 anos de idade e diz que fará as maratonas que for preciso. “A vida é feita de maratonas e desafios. Se não for assim, não tem piada”. Ter nascido em Palaçoulo, terra de empreendedores, desenhou-lhe o destino. Com a conclusão do secundário terminou os estudos e começou a ajudar o pai na cutelaria que criou do zero. Não tem irmãos nem sócios, aceito o “mando” que o pai lhe deu. E está apostado em fazer a cutelaria José da Cruz crescer.
Eliseu Fernandes, o velho artesão
Tem 78 anos e quase sempre um cigarro entre os dedos. Bebe muito, fuma mais, dorme pouco. Mas não há mãos que lhe tremam quando está a fazer uma das artes de que mais gosta: fazer navalhas. Eliseu Fernandes é um dos últimos artesãos de Palaçoulo, que constrói “navalhinhas” de forma artesanal. Não só talha os troncos para fazer punhos, como pega em ferro velho para fazer lâminas. Só faz navalhas quando lhe apetece – ou quando precisa de dinheiro para tabaco.
Alberto Martins, o gestor
É o filho mais novo de José Maria Martins, a família que está à frente da fábrica Martins, a maior cutelaria de Palaçoulo, que emprega cerca de meia centena de pessoas. Alberto Martins deixou uma carreira de professor para profissionalizar a gestão da empresa familiar e, em conjunto com os irmãos, fazer crescer a empresa.
Francisco Cangueiro, o cuteleiro escultor
O gosto e o talento para esculpir começaram numa fábrica de marcenaria, mas cedo chegou às facas. Francisco Cangueiro começou a trabalhar numa das fábricas da aldeia, mas acabou por sair e por se dedicar às peças de coleção, já há 41 anos. O processo não tem nada de industrial. E tem tudo de artístico. Já vendeu falcatas a valer mais de 2.500 euros.
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