Mudou-se para Ferraria de São João por convicção, foi Presidente da Associação de Moradores, criou um Centro de BTT na aldeia e dinamiza uma acolhedora unidade de turismo rural. Eis o seu testemunho.
“A vida numa aldeia é muito completa e preenchida”
Nasci em 1970, em Coimbra, mas a minha cidade de infância e adolescência foi Leiria, onde vivi até ir para a faculdade. Fui fazer o curso de Engenharia Informática, na Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa. Percebi durante o curso que a informática não seria a minha vida, pensei em mudar, mas acabei por fazer a licenciatura até ao fim.
Sempre estive ligado aos desportos de natureza. Na adolescência, fiz parte do grupo de espeleologia de Leiria, fazia escalada, muito outdoor. A minha vida profissional também acabou por arrancar nessa área. No Inatel havia um programa muito grande de desporto e aventura, e envolvi-me com eles a organizar grupos. Depois, o diretor desportivo convidou-me para coordenar um projeto que foi um marco para mim.
Foi um projeto muito recompensador, porque me deu a conhecer uma zona espetacular do país – vivi dois anos em Linhares da Beira – e me permitiu participar nos primeiros passos de desenvolvimento turístico que hoje se chama turismo em áreas de baixa densidade. Íamos fazer a carta de lazer das aldeias, e acabámos a criar a Grande Rota das Aldeias Históricas.
Entretanto, em 2000, saio do Inatel. Foi quando tive de voltar para a sede em Lisboa e foi, talvez, a única altura da minha vida em que fui obrigado a exercer as minhas funções de engenheiro informático. Ao contrário do que me tinham dito, não continuaram com o projeto das Aldeias Históricas. Foi tal a desilusão, que estava no quadro e despedi-me.
Fui fazer um mestrado na área do ambiente, liguei-me a uma empresa de ex-colegas de engenharia informática que estava a ser incubada lá na Nova, a Ydreams, e a uma empresa norte-americana de tours de bicicleta, a Easy Riders Tours, para quem guiava grupos entre a serra da Arrábida e Sagres. Nessa altura, fui desenhando o projeto de fazer uma empresa vocacionada para o mercado norte-americano, com a marca A2Z Adventure, hoje Portugal A2Z. A ideia era oferecer destinos em Portugal, mas mostrando destinos diferentes dos que já eram oferecidos, como as aldeias históricas.
No meio deste processo, há uma altura em que decido sair de Lisboa porque a minha vida profissional e académica já não passava por lá; e a vida na cidade também já me dizia pouco. Não conhecia quase nada de Ferraria de São João. Passei aqui uma vez de bicicleta, quando visitei a casa de um amigo de Casal de São Simão – essa aldeia sim, conhecia melhor. Mas foi aqui que surgiu a oportunidade de comprar umas ruínas, quando ainda nem pensava muito nisso.
Comprei, e elas aqui ficaram sem eu cá voltar durante uns bons quatro anos. Mas depois alinharam-se as estrelas no céu e percebi que Ferraria de São João podia ser um bom local para viver. Estou a 45 minutos da minha família, em Leiria. Também estou perto da família da Sofia, com quem me juntei nessa altura. E estar relativamente perto dos aeroportos também era importante, porque uma coisa que eu sempre fiz foi viajar.
Não sendo uma pessoa com recursos financeiros ilimitados, aproveitámos os incentivos financeiros que existiam se aqui abríssemos uma valência para o turismo. Fizemos um projeto, desde logo pensado com essa componente. Fizemos a primeira casa como Bed & Breakfast, pelo que nos primeiros tempos recebíamos as pessoas em nossa casa. Depois, numa segunda fase, com os estúdios completamente separados, deixámos de receber em nossa casa, mas mantemos as valências todas.
Já sabia o que era viver numa aldeia, porque tinha as experiências de Linhares da Beira e de Alcongosta. Mas Ferraria tinha características um pouco diferentes. Nomeadamente, não existir um café ou uma loja, não existir vida social. Não havia o hábito de as pessoas se juntarem. Era uma aldeia de famílias, muito cada uma no seu cantinho. E a nossa casa também está num canto da aldeia, o que não ajudou a que nos primeiros tempos se mudasse muita coisa.
Ao contrário do que as pessoas pensam quando cá chegam, a vida aqui é tudo menos monótona e pacata. Há sempre coisas para fazer numa casa de campo: é a relva, são os burros, é a estufa, é a horta…. De repente tens mil e uma coisas para fazer. Não é o mesmo que chegares a um apartamento, tirar os sapatos, pousar a chave e está tudo feito, porque a senhora da limpeza foi lá limpar a casa. Acaba por ser uma vida muito cheia, não no sentido pejorativo. É uma vida muito completa e preenchida.
Mas, por trabalhar em turismo, eu tinha a noção de que, cada vez mais, as pessoas não se deslocam apenas por uma cama e para dormir. Querem experienciar, são atraídas por vivências. E procurar isso aqui apenas connosco é muito redutor, porque apesar de estarmos num ambiente rural, não somos verdadeiramente rurais.
Pressenti que ia haver curiosidade, tanto das pessoas que chegavam e perguntavam como eram as pessoas da aldeia, como a curiosidade dos moradores, que se questionavam o que estes turistas viriam para aqui fazer. Mais do que tentar explicar porquê – que não ia conseguir – pensei em pô-los em conjunto, a falar uns com os outros.
Depois vieram os incêndios de 2017, que tiveram um impacto brutal. Pus em causa tudo. Há tanto sítio no mundo para se viver, porque é que hei de estar a pôr em risco a vida dos meus filhos? Para nós ficou claro, naquela noite: para isto ser viável para habitar, há condições mínimas que têm de ser asseguradas.
Criámos a Zona de Proteção da Aldeia. É um processo que não vai acabar nunca, começou hoje e os nossos filhos ainda vão ter de continuar a fazer. Aqui chegado, mais de três anos depois, ainda não há uma solução definitiva. Mas não me arrependo. Continuo a defender que as pessoas têm mesmo de ver o que é a vida numa aldeia.
Qualquer pessoa que pense, por um minuto que seja, que a cidade, se calhar, não é o melhor sítio para se viver, então devia experimentar durante uma semana tudo o que inclui e implica viver numa aldeia. Não é estar de férias e ir todos os dias aos restaurantes. É cozinhar, interagir com as pessoas, cheirar, ouvir. Tenho a certeza que, se fizerem isso uma vez na vida, vão poder comparar. E perceber a qualidade de vida que existe num sítio destes…
Aqui podemos fazer tudo o que se faz na cidade; mas as rotinas ganham outra amplitude. Mesmo que eu esteja ao computador, quando tiro os olhos do ecrã e olho para cima vejo esta paisagem, ouço os pássaros, respiro ar puro. Ou quando estamos com os nossos filhos e lhes queremos tirar o ipad ou a televisão – que os meus filhos também querem – eu posso pegar neles pela mão e vir para a montanha passear ou ir para a horta, pôr as mãos na terra. Isso não conseguimos na cidade – e não tem preço!
Agora, o que eu gostava era que houvesse mais cinco novos casais a mudarem-se para cá. Gente com energia, com vontade de vir viver num sítio destes, com vontade de estar em comunidade, de partilhar uma vida saudável, sustentável, responsável. As ideias viriam, os projetos viriam, os voluntariados viriam, e a felicidade viria. E a dos nossos filhos também.
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