Filha de mineiro e contrabandista, foi a terceira de 11 irmãos. Ficou traumatizada com as famílias numerosas, só quis ter dois filhos. Trabalhou muito, trabalhou sempre, em casa de ricos e de reis. Agora, com 78 anos continua a trabalhar, a lavar pratos e a fazer o que for preciso no restaurante gerido pela prima. Porque não sabe estar quieta, não gosta de estar quieta. Gostava de ver o Presidente da República a visitar a Mina. Eis o seu testemunho.
“Não tenho saudades da vida de outros tempos”
Chamo-me Camila Duarte, tenho 78 anos. O meu pai era mineiro. E a minha mãe contrabandista. Nasci aqui na Mina de São Domingos. Ali junto à tapada pequena. A casa da minha mãe dava para a tapada pequena. A minha mãe chamava-se Maria Carolina, mas toda a gente lhe chamava Maria Calheguinhas. E ela teve muitos, muitos filhos.
Eu sou a terceira. A mais velha morreu. Fiquei eu e a minha irmã Maria. Depois veio a Tereza, a Ana, a Julieta, a Fernanda, a Augusta, o Plácido, o Blei…. E já nem me lembro dos nomes todos. Esses moços são todos os meus irmãos. Antigamente não se ensinavam as mulheres a evitar os filhos. Nasceram muitos. Alguns morreram. Ficámos 11.
Desde pequeninas que a gente fazia coisas, as mais velhas tomavam conta dos mais novos. A minha mãe sempre foi mulher de nos pôr a trabalhar. Ela ia muitas vezes de contrabando para a Espanha.
O que é certo é que quando acabávamos a quarta classe, e chegávamos aos 11 ou 12 anos, a gente abalava daqui para fora. Ia ganhar dinheiro, governar a vida. Eu fui para o Algarve. Depois do Algarve, fui para Madrid. Estive a trabalhar para o rei de Espanha. Sabe aquele miúdo que está casado com a Letizia? Andei com ele ao colo, quando era bebé! Trabalhei muito. A vida toda. Depois de trabalhar para o rei de Espanha, fui trabalhar para a Quinta da Marinha.
Foi quando estava em Lisboa que conheci o meu marido – que ele não é daqui da Mina. Mas gostava muito disto. Tanto que foi para aqui que quis vir quando se reformou. Ele era de Castelo Branco, de uma aldeia chamada Soalheira. Mas trabalhava lá no Estoril, numa oficina de automóveis. Um dia, eu fui ao pão e ele saiu da oficina para me atropelar. Eu fiquei tão zangada que, olhe, até vou falar mal: “Então meu paneleiro, tu não tens vergonha, que agora ias-me matando?”. E ele respondeu: “Não te vou matar, não. Que tu vais ser a mãe dos meus filhos”. E eu disse, “era só o que me faltava, que eu não quero casar”. E ele dizia “ai vais casar comigo, vais!”. E a verdade é que casei mesmo com ele. Casámos na igreja de Santo António do Estoril. Mas eu trabalhava na mesma.
Trabalhei sempre em casa de senhores. Lavava a roupa, fazia a comida, tratava dos garotos… Arrumava as casas e limpava o pó, limpava o chão e os amarelos. Os amarelos são coisas em metal, uma cafeteira, por exemplo. É preciso poli-los. Na Quinta da Marinha trabalhava para um senhor que tinha o Hotel Tivoli.
Também trabalhei na residência do primeiro-ministro, e cruzei-me muitas vezes com o Marcelo, o presidente. Na casa dele nunca trabalhei. Mas encontrava-nos na bomba da Repsol, onde ele ia tomar café. E foi sempre muito simpático comigo. Uma vez, deixou-me uma prenda. O que eu mais queria era um dia vê-lo aqui na Mina de São Domingos. Ele vai a todo o lado, mas acho que aqui nunca veio.
Trabalhei sempre muito. Tive o meu filho mais velho, e ele depois que começou a falar andava sempre a pedir um mano. Eu dizia-lhe que não, nem pensar. Eu desde pequena dizia que só queria um moço, ou uma moça, o que viesse. Mas não queria muitos filhos, que bem via como era a vida com a minha mãe. E eu não queria. Éramos muitos, punham-nos logo a trabalhar. A minha mãe parecia que não nos queria ver sentados, nem a brincar. Eu não queria isso. Mas o meu filho estava sempre a dizer que queria um mano. E o mano lá veio.
Vivemos sempre lá no Estoril, mas quando nos reformámos, o meu marido quis vir para aqui. Não quis ir para a Soalheira, a terra dele. E minha sogra até tinha lá uma boa casa. Mas ele gostava da Mina, por isso quis vir para aqui. E nós comprámos a casinha, onde agora estou a viver. Aqui a malta é toda porreira e gostavam dele. Começou a cantar no rancho e tudo. Mas, infelizmente, ele não durou muito mais tempo. Faleceu logo. E eu sou viúva para aí há uns dez anos. Às vezes metem-se comigo, a perguntar se não caso outra vez. Nem pensar!
Mas fiquei muito contente por o meu Ângelo querer vir aqui para a Mina. Ele gostava muito disto, e eu gosto ainda mais. Como não? Então, se a gente é daqui! O sítio de que eu mais gosto é a Tapada Pequena, perto do sítio onde nasci. Mas também gosto da Tapada Grande. O meu pai tinha uma horta lá na tapada grande, lá ao fundo dos Nascedios. Era para aí que a gente ia. Dormíamos lá e tudo.
O meu pai ia para a horta, a minha mãe lavava a roupa…. E aos domingos até ficávamos lá a dormir, que o meu pai tinha de trabalhar na segunda-feira na mina. Umas vezes entrava às 7 da manhã, outras vezes era da parte da tarde também, até às 3 ou 4 horas da tarde. Trabalhavam muito, mas não ganhavam muito. Os ingleses que estavam a tomar conta disso não pagavam muito. Mas aqui ia toda a gente trabalhar para a mina. Viviam mais de três mil pessoas aqui na aldeia, havia tudo, comboio, hospital. Mas depois acabou-se tudo, ponto final. Muita gente foi-se embora, muitos já morreram, por isso estamos cá poucos.
Eu tive aqueles irmãos todos. Mas agora só estou cá eu e mais dois a viver. Dos meus filhos, tenho um a viver aqui comigo e tenho outro a viver nos Açores. O filho que vive comigo deu-me o meu único netinho, que é a luz da minha alma. Estou deserta que ele me venha cá visitar. Vive em Lisboa com a mãe. Mas também gosta de vir para aqui. Ter com o pai. E comigo.
Às vezes fico muito admirada com a quantidade de gente que vem aqui para a Mina. O que é que a mina tem para eles virem para aqui? Antes não vinha ninguém, era só a malta daqui da Mina! Mas é melhor assim. Sim, a gente acha que sim, somos mais velhas, já sabemos que é melhor. Quando éramos pequenininhas não queríamos cá ninguém. A gente dizia assim: “Olha lá, já cá está outro parvalhão”. O que é que eles vêm fazer para a mina?
Eles vêm para a mina por causa da Tapada. Isto agora no verão tem sempre muita gente. Eu farto-me de trabalhar ali no restaurante com as raparigas. Gosto muito delas, da Vera e da Sara. A Sara ainda é minha prima. Elas estão a tomar conta do café da Associação dos Antigos Mineiros, e têm muito serviço com as refeições. E eu, se hei-de estar enfiada em casa, ou sentada a falar da vida dos outros, venho para aqui ajudá-las. E gosto muito. Às vezes é uma barrigada de riso, com elas. Estou a lavar a louça e a rir-me. Eu não gosto de estar quieta.
A maior parte das pessoas daqui é boa gente. E eu sou boa para toda a gente. Eu quero mesmo ser boa para toda a gente. Mesmo se algumas pessoas não são boas, não valem um corno, está a perceber? Mas eu faço como fazia na cidade, desvio-me delas. Que não me batam e não me façam mal e está tudo bem. Não tenho saudades da vida de outros tempos. Saudades, só tenho do meu marido, que era muito bom homem. Mas o dono do meu coração é o meu netinho, o João Pedro. Já tem para aí uns 16 ou 17 anos. Eu adoro aquele moço.
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Sara Ribeiro, a respigadora
Trabalha na Fundação Serrão Martins há quase 20 anos. Conhece como poucos as histórias, aventuras e desventuras das muitas famílias que viveram na Mina de São Domingos. Do passado da aldeia onde cresceu, a brincar nas ruas e a aprender na telescola, guarda um entusiasmo particular e uma curiosidade incessante. Vasculha os registos da atividade mineira, procura reconstruir as vidas de muitas famílias como a dos seus antepassados.
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Aprendeu com o pai. Foi com ele que viu como se punham e tiravam as bobines, se cuidava que a película não fosse projetada de pernas para o ar. Foi a última pessoa a projetar uma sessão de cinema no antigo Cineteatro da Mina de São Domingos, um edifício que foi restaurado para agora ser um espaço polivalente, inclusive um museu. Tem muita nostalgia com os momentos do passado, mas faz o que pode para viver intensamente o presente.