Aprendeu com o pai. Foi com ele que viu como se punham e tiravam as bobines, se cuidava que a película não fosse projetada de pernas para o ar. Foi a última pessoa a projetar uma sessão de cinema no antigo Cineteatro da Mina de São Domingos, um edifício que foi restaurado para agora ser um espaço polivalente, inclusive um museu. Tem muita nostalgia com os momentos do passado, mas faz o que pode para viver intensamente o presente. Eis o seu testemunho.
“Também tivemos um Cinema Paraíso na Mina de São Domingos”
Chamo-me Nuno Martins, tenho 69 anos, e ontem, quando andava a fazer a caminhada de fim do dia com a minha mulher, tive um desabafo: gostava de que no dia em que eu morresse pudesse haver um pôr do sol bonito, como aquele que eu vi ontem.
Não, eu não ando a pensar nisso, a minha mulher até me deu logo para trás, disse-me para ganhar juízo. Mas ninguém cá fica, esse dia vai chegar. E eu gostava que fosse assim num dia de pôr do sol bonito como o de ontem. Não tenho pressa, que eu gosto de cá andar, gosto de estar com a mulher e os filhos, gosto de estar com o meu neto, de o ver a tomar banho na tapada. Ele só tem quatro anos, mas é importante que comece a afeiçoar-se mais e mais a isto. Porque vão ser eles a manter isto. A mina já deu o que tinha a dar. A parte mineira, claro. Porque a aldeia cá está. E nós, os que cá estamos, vivemos sobretudo das recordações. A gente junta-se, fala, comenta. Vivemos das memórias.
Essas coisas velhas que para aí estão, eu lembro-me de ver isto a trabalhar. Sempre que passo no malacate, na achada, tenho uma certa nostalgia. Quando éramos miúdos, éramos corridos de lá… chegava a Polícia e gritava “que andam aqui fazendo?”. Nós éramos muito curiosos. Dizíamos que andávamos a ver… E o polícia respondia, vamos dizer ao teu pai… ui, isso é que é mau. Aí já ficávamos cheios de medo…
Foi com o meu pai que eu aprendi este ofício de projetar. Ele dizia que chegou a ver aqui cinema mudo, filmes do Charlie Chaplin e assim. Nessa altura a Mina tinha uma banda de música, e enquanto o filme decorria eles iam tocando. Ainda me lembro de lá em baixo na sala serem bancos corridos de madeira. E de a malta se apertar. Cabe sempre mais um.
Primeiro, eu estava aqui com o meu pai. Depois, comecei eu a fazer a projeção dos filmes. Vinha mais cedo, para ensaiar o filme, para o montar como deve ser. O meu pai já fazia isso também. Não dava para mostrar o filme de cabeça para baixo, não é? Mas houve uma vez que o filme estava mesmo de patas para o ar, e eu gritei ao meu pai lá de baixo: “ponha a bobine do intervalo!”
Eu passava aqui horas com o meu pai, cada um sentado no seu banquinho. Era daqui que víamos os filmes. Aqui ao lado era a casinha dos bombeiros. As bobines eram de celulose, podia dar-se o caso de haver um incêndio.
Eu gostava muito disto. Gosto muito de cinema. Não gosto de todos os filmes! Mas quando recebíamos um filme, líamos o argumento, e dizíamos logo é isto, é aquilo. E havia filmes em que tinha mesmo interesse em estar a ver. Mas, às vezes, com a preocupação de estar atento a isto ou àquilo, distraía-me do filme. Era engraçado, eu passava nesta cabine bons momentos.
Nem lhe sei dizer qual é o meu filme preferido. Vi tantos. Em miúdo gostava de ver aqueles filmes da Marisol, e do Joselito… Eram em espanhol, a gente compreendia espanhol. E mais tarde, gostava daqueles filmes de cowboys… isso é que nós gostávamos. Depois íamos para a rua, e um era o xerife, outro era o não-sei-quantos, e outro era o bandido. E andávamos correndo por esses eucaliptais todos…
E o Cinema Paraíso? Há coisas nesse filme que me fazem lembrar as coisas que a gente fazia aqui. Por exemplo, aquela história de os miúdos a escorregar por uma barreira, e a ficarem com as calças esfoladas nos joelhos… A gente fazia isso… Havia aí um bocado de terra, a gente chamava-lhe a terra carrada, que estava com uma inclinação muito grande. Havia para ali uns pedaços de ferro que eles tinham abandonado (nem sabíamos para que é que aquilo tinha servido) e a gente punha-se em cima daquilo e escorregava por ali abaixo. Já estávamos a ver durante o caminho que ia dar em trambolhão. Havia coisas engraçadas, andávamos sempre uns com os outros. E no verão o principal era a Tapada.
Aqui na Mina de São Domingos havia muitas coletividades, muitas atividades, muitas coisas. Faziam-se récitas, de teatro e tudo. Mas isso já nem era bem no meu tempo, que comigo já a mina estava em decadência. Até que acabou mesmo em 1966. Os ingleses acharam que já não era rentável, deixaram de pagar a luz, inundaram tudo. E as pessoas tiveram de se virar. Muitos foram para o estrangeiro, e iam trabalhar para minas de carvão. Uns iam ceifar, outros iam mondar, outros iam buscar lenha para vender às padeiras que faziam pão aí nos fornos comunitários, outros faziam contrabando, iam levar café a Espanha, e quando voltavam recebiam o dinheirinho. Se perdiam a carga do caminho, não recebiam nada.
Eram vidas difíceis. Mas todos tinham uma hortinha, ou um porquinho para matar na altura, para comer durante uns tempos. Uns iam à pesca. As represas tinham muito peixe. Diziam que não gostavam do peixe da tapada. Mesmo que não gostassem, tinham de o comer. Porque havia muita dificuldade. Mas também havia muita coisa para as pessoas se entreterem. Havia um centro republicano, chamavam-lhe o Clube dos Ricos, havia o Musical, o clube do São Domingos. E havia muitas tabernas.
Eu também arranjei emprego fora, mas fazia sempre de tudo para voltar. Vinha cá todos os fins de semana, pelo menos. Estive a trabalhar numa empresa da Shell, depois fui para uma empresa de celuloses. Andava a fazer um levantamento pelo país, a analisar a floresta. A gente tinha de atingir uma meta todos os dias. Como estava fora de casa, essa meta era sempre ultrapassada. O que eu queria era vir mais cedo para casa.
O que me atrai aqui nesta aldeia? Eu nasci aqui, aprendi a nadar aqui, aprendi a andar de bicicleta aqui. Brinquei aqui, andei aqui na escola. Os meus amigos eram todos daqui. Parece que não, mas a gente cria raízes. E a tapada? Quem é que me tira a tapada?
Agora há poucas coisas para fazer. No ano passado ainda fiz parte de um projeto de teatro, em que entrou muita gente aqui da mina, novos e velhos, misturados com artistas a sério. O projeto chamava-se Malacate. E foi gratificante porque nós tínhamos uma ocupação. Todos os dias, ou quase todos os dias, tínhamos um ensaio… E eles eram todos muito simpáticos. Nunca estava nada mal para eles, estava sempre tudo bem. É pena não haver mais iniciativas destas.
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Trabalha na Fundação Serrão Martins há quase 20 anos. Conhece como poucos as histórias, aventuras e desventuras das muitas famílias que viveram na Mina de São Domingos. Do passado da aldeia onde cresceu, a brincar nas ruas e a aprender na telescola, guarda um entusiasmo particular e uma curiosidade incessante. Vasculha os registos da atividade mineira, procura reconstruir as vidas de muitas famílias como a dos seus antepassados.
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