Quase 60 anos depois do encerramento da mina de São Domingos, um pioneiro complexo industrial que lhe escavou as entranhas e deixou esta localidade raiana do concelho de Mértola com uma paisagem quase apocalíptica, hoje Mina de São Domingos é antes nome de aldeia com praias de bandeira azul e habitada pelos descendentes de irredutíveis mineiros. Ainda faz sentido falar de passado, e desfolhar o álbum de memórias, porque continua a ser essa herança industrial o principal recurso de uma comunidade que procura reinventar-se.
Na sala de ensaios do Grupo Coral da Mina de São Domingos, localizada no piso superior da antiga escola primária da aldeia, e onde agora funciona a Associação dos Reformados da Mina, é José Vaz Alexandre quem arranca a cantar os primeiros versos:
“Das profundezas da terra
O Homem espreita a sua sorte
Para dar vida aos ingleses
Nesta mina antiga
Muitos acharam a morte”.
Já há quase 60 anos que não se desce às profundezas da terra nem se espreita a sorte na Mina de São Domingos. A riqueza que se dava aos ingleses esfumou-se numa declaração de falência da empresa Mason and Barry, que a explorou durante um século, em junho de 1968.
À primeira estrofe cantada por José Vaz Alexandre, juntam-se mais vozes. Neste ensaio não estão todas as outras 20 que integram o Grupo Coral da Mina de São Domingos. Mas estão mais de uma dezena.
Ó Mina de São Domingos
Quando daqui eu abalei
Com florinhas à janela
E com saudade,
Uma rosa eu desfolhei.
A saudade, essa sim, é uma palavra e um sentimento sempre atual. E a memória e a homenagem também. José Vaz Alexandre homenageia com a sua voz o trabalho que o seu pai teve, décadas antes, quando era ensaiador do grupo coral que então existia. O grupo desapareceu com o encerramento da mina, ressuscitou em 1995. Em 2013 teve uma nova vida, e foi nessa que José Vaz Alexandre embarcou, agora com Jose Brás na liderança.
As semelhanças curriculares entre os atuais ponto e ensaiador do grupo coral são gritantes. Ambos nasceram e cresceram na Mina de São Domingos, ambos abalaram para norte, para a periferia de Lisboa, à procura de vida e de sustento. Ambos foram parar na Marinha, nos fuzileiros. Nem tudo são coincidências.
Quase todos os 21 elementos do grupo coral da Mina de São Domingos têm histórias destas, mais ou menos parecidas. Tiveram pais ou avós a trabalhar na mina, e os que não trabalhavam na extração do minério tinham ofícios relacionados com o seu funcionamento: foram carpinteiros, serralheiros, latoeiros, fresadores. Foi uma geração que saiu da aldeia para ir trabalhar. Mas, chegada a altura da reforma, foi para a aldeia da Mina de São Domingos que quiseram voltar.
A Mina de São Domingos começou por ser um registo feito em junho de 1854 pela Câmara Municipal de Mértola em nome de Nicolau Biava, como descobridor legal daquela terra onde se esperava poder extrair muito minério. Italiano, engenheiro de minas a trabalhar na mina de Thiarsa, em Espanha, Biava acreditava que também no cerro de São Domingos ia conseguir extrair minério.
Afinal, já os romanos por ali tinham andado a extrair ouro, e Biava apostou no seu instinto e na sua sorte. Abriu uma empresa, com o nome de La Sabina, com o objetivo de explorar as minas portuguesas e, particularmente, São Domingos. E ali foi aberto o primeiro poço.
Nessa altura não havia nada, ou quase nada, por aqueles montes raianos que distavam quase 20 quilómetros de Mértola. Mas foi ali, no coração do Baixo Alentejo eminentemente rural que havia de surgir aquela que foi uma das mais importantes explorações mineiras. Menos de uma década depois, James Mason, o principal responsável pela revolução industrial que acabou por ter aquela localidade como palco, chegava à aldeia com a primeira locomotiva para levar minério. A Mina de São Domingos podia parecer longe de tudo, mas estava em plena faixa piritosa, uma das principais regiões mineiras da Europa. Ainda hoje.
A aldeia prosperou. Foi a primeira aldeia do país a ter luz elétrica, foi a primeira a ter um caminho de ferro privativo entre a Mina de São Domingos e o cais fluvial do Pomarão, de onde foram exportadas milhões de toneladas de materiais; a linha de caminho de ferro tinha 17 quilómetros. A aldeia tinha hospital, banda de música, teatro, grupo de cante, sociedades recreativas e culturais. Teve um sindicato. Chegaram a trabalhar quase três mil funcionários na Mason and Barry, a empresa que fez a exploração mineira. A aldeia chegou a ter quase nove mil habitantes.
A Mina de São Domingos prosperou tanto que os proprietários se deram ao luxo de destruir a aldeia que existia e de construírem uma nova. Foi quando descobriram que era mais rápido e mais rentável a lavra a céu aberto. Os trabalhos de desmonte iniciaram-se em 1868 e no espaço de cinco anos toda a aldeia foi arrasada. Apenas resistiu o cemitério inglês, o hospital e algumas construções adjacentes. A profundidade desta corta atingiu os 122 metros – e eles são visíveis na lagoa de águas ácidas, de visual tão deslumbrante quanto tóxico que ainda hoje é possível visitar junto à aldeia.
A Mina de São Domingos explorou cobre, zinco, chumbo e produziu enxofre. Até que fechou tudo. A mina faliu, as fábricas fecharam, o caminho de ferro foi desmantelado. No Censos 2021, em toda a Corte de Pinto, a freguesia a que pertence a Mina de São Domingos, foram registados 735 habitantes.
“Hoje em dia vivemos mais de memórias”, admite Nuno Martins, filho de um antigo eletricista da Mina, e que foi também o responsável por pôr a funcionar o projetor que tantas horas de cinema deu aos habitantes da Mina. O Cine Teatro da Mina de São Domingos é uma construção do tempo em que ainda não existia cinema sonoro. Enquanto a mina se manteve ativa, houve projeção cinematográfica periódica.
Atualmente, o Cine Teatro é ainda usado para projeções ocasionais mas é sobretudo utilizado como espaço expositivo. Nuno passou grandes temporadas da sua infância dentro da “cabine mágica”, a aprender com o pai. Até que acabou a substituí-lo, e foi mesmo a última pessoa a usar a máquina de projeção.
Nuno, com 69 anos, perdeu a conta aos filmes que viu e às películas que projetou. Sara Ribeiro dá uma ajuda com os números: “Só entre 1965 e 1967, em cerca de dois anos e meio, estiveram 173 filmes em cartaz”. Sara sabe-o, porque os digitalizou a todos.
Sara é funcionária da Fundação Serrão Martins, a instituição criada pela Câmara Municipal de Mértola e pela La Sabina, a empresa proprietária de todos os terrenos que compõem a mina e que dinamiza o edifício do Cine Teatro agora como espaço expositivo.
A Fundação Serrão Martins é uma instituição sem fins lucrativos cujo objetivo é proteger, conservar, valorizar e divulgar os valores patrimoniais da Mina de São Domingos e do seu complexo mineiro. Assim como promover as potencialidades destes valores patrimoniais e a sua utilização em prol do desenvolvimento das populações locais. Porque o passado industrial que construiu e quase destruiu a aldeia é também a herança que lhe permite ter algum desenvolvimento.
Sara Ribeiro é uma das pessoas que mais contribuíram para que a memória da Mina continue a ser perscrutada e respeitada. Com 46 anos, Sara trabalha na Fundação Serrão Martins praticamente desde o seu início, em 2004. São já 20 anos a desempenhar muitas funções – a maior das quais tem sido a organizar todo o património, sobretudo o imaterial, que resultou da laboração da mina. No período de verão, altura em que mais visitantes procuram a Mina, o posto de trabalho da Sara pode ser no Cine Teatro, ou na Casa do Mineiro. Nos períodos mais calmos, regressa ao Centro de Documentação, para organizar, digitalizar, procurar, cruzar informação sobre cada um dos mineiros e outros funcionários da Mason and Barry que viveram na Mina de São Domingos e suas respetivas famílias.
É por isso que fazer uma visita guiada à mina acompanhada de Sara Ribeiro é ter a certeza de que se vai mergulhar em muito mais do que um livro de histórias e memórias. Porque a forma como Sara fala do que pesquisou, do que descobriu, do que leu – e também do que viu e sentiu – não pode ser encerrado numa leitura de livro.
As visitas guiadas podem incidir no circuito urbano: e passar pelo Cine Teatro, pelo Jardim e Bairro dos Ingleses, onde viviam os engenheiros e altas patentes da mina; pelos Bairros Operários e pelas Latrinas que existiam em cada rua; pela sede do Musical, uma das coletividades culturais promovidas pelos donos da empresa; pelo Cemitério dos Ingleses, onde ainda repousam os restos mortais dos anglicanos que, dizem, até a terra trouxeram da Inglaterra natal; pela Casa do Mineiro, recuperada para dar a conhecer aos visitantes o que seria viver com uma família numerosa em apenas 16 metros quadrados; pela Igreja de S. Domingos, construída por duas vezes, e onde só há missas a cada 15 dias; e pela Praia da Tapada Grande, o ex-líbris da aldeia e chamariz para turistas de todas as proveniências.
Fora do circuito urbano, também há visitas guiadas pelo Circuito Industrial: pela Corta da Mina e pelo antigo Cais do Minério onde, com a ajuda de uma corda sem fim, subia o minério que era extraído do fundo da Mina; pelo Malacate ( a estrutura que servia para bombear a água do interior da mina); pelas oficinas ferroviárias onde se construíram locomotivas e se dava manutenção ao primeiro caminho de ferro privado; ou pela Achada do Gamo, onde funcionou a fábrica de enxofre e que é hoje em dia uma cinematográfica ruína.
Em cada um destes pontos há histórias para contar. Sara é uma respigadora. Nos 20 anos que leva de trabalho na Fundação já teve oportunidade de ir vasculhar o que muitos deitavam fora nos trabalhos de demolição e reconstrução das casas. “E as pessoas não sabem as muitas histórias que podemos contar com um objeto”.
Desde 1996 que, após um contrato entre o Governo Português, a Câmara Municipal de Mértola e a La Sabina, as antigas casas dos mineiros (propriedade da empresa) foram sendo vendidas aos seus habitantes (mineiros e descendentes). Em contrapartida a administração pública obriga-se a construir as infraestruturas necessárias (abastecimento e tratamento de água, estradas e arruamentos, espaços verdes, etc). O bairro operário, com mais de 30 ruas, foi sendo paulatinamente recuperado. E os descendentes foram gradualmente voltando.
O Centro de Documentação está instalado no mesmo edifício onde Sara andou na escola primária. Dos tempos áureos em que os edifícios escolares estavam repletos de crianças Sara viu apenas fotografias – porque foi também na Mina de São Domingos que surgiu o que pode ter sido o primeiro estúdio fotográfico privado; porque a Mason and Barry sabia a importância do que ali estava a construir, e quis documentar todas as fases de crescimento da Mina.
Na infância de Sara, aliás, o edifício da escola primária já servia para os cada vez menos alunos que a frequentavam assistirem à telescola. Um desses edifícios é hoje o Centro de Documentação. O outro é a sede da Associação de Reformados da Mina de São Domingos, onde ensaia o Grupo Coral, no primeiro andar, e onde, no rés-do-chão, funciona um dinâmico café, que serve refeições não apenas aos associados.
É lá que Camila Duarte, de 78 anos, passa algumas horas do seu dia, a ajudar as duas jovens que decidiram arregaçar as mangas e explorar o café muito frequentado. “Uma delas ainda é minha prima. É uma barrigada de riso estar ali com elas. E tudo é melhor do que estar enfiada em casa, ou então sentada à porta a ouvir falar da vida dos outros”, diz Camila. Apesar da idade avançada, Camila continua a trabalhar. Mesmo depois de ter trabalhado muito, a vida toda. “Não sei fazer mais nada”, diz. E não custa acreditar – o sorriso franco, confirma-o.
Camila é filha de mineiro e a sua história de família ajuda a perceber melhor outras histórias que podem ser multiplicadas por centenas e esclarecem o papel que as mulheres tinham naquela sociedade. O pai trabalhava na contramina, para conseguir o sustento. A mãe tratava dos filhos. E tinha muitos – a Maria Calheguinhas teve 12 filhos.
“O meu pai gostava muito de xeringar e a minha mãe tinha de estar sempre disponível para ele. E estava”, conta Camila, relembrando que não havia privacidade numa casa de 16 metros quadrados, onde todos viviam. “Nós quando a víamos de cu empinado já sabíamos: vem aí mais um moço”. E vinha. Camila conta, também, que muitas vezes a mãe se viu obrigada a “ir ao contrabando”, e para isso atravessar a Ribeira de Chança, até Espanha. “Andou muita gente ao contrabando, porque as pessoas não tinham o que comer”, avisa. De Portugal levavam café; de Espanha traziam sabão. E alpercatas.
Camila não tem travão na língua, fala de tudo com a naturalidade de quem nada tem a temer e de quem só quer ser “boa pessoa para toda a gente”. Saiu da Mina de São Domingos para servir em casa de senhores, a “tratar dos moços” e a “esfregar os amarelos”, referindo-se ao polimento das peças de prata e cobre que abundavam em casa dos mais afortunados. Trabalhou para muitos, até para casas reais. Diz que andou com o Rei de Espanha ao colo – “Aquele que casou com a Letízia” – diz, dando mais importância e significado à princesa plebeia que agora é rainha consorte do que ao próprio Rei de Espanha. E agora só suspira por uma visita do Presidente Marcelo.
Camila não se lembra de Marcelo Rebelo de Sousa na Mina de São Domingos. Mas sabe que o Presidente “vai a todo o lado” e que está disponível para todas as visitas. “Um dia haverá de vir à Mina”, suspira Camila. E quando esse dia chegar não lhe faltará o que visitar. Aliás, se for no verão terá muita concorrência, que um dos principais motivos que leva turistas de todas as proveniências à Mina de São Domingos é a sua praia fluvial, que tem honras de Bandeira Azul.
Os mesmos ingleses que deixaram ao abandono uma exploração industrial permitindo que a corta da mina ficasse inundada com águas tóxicas, como é hoje em dia visível numa lagoa cujo impacto negativo só a intervenção do Estado (mais concretamente da Empresa de Desenvolvimento Mineiro) conseguiu conter, foram os mesmos ingleses que dotaram a aldeia de barragens de águas límpidas que se tornaram cobiçadas estâncias de veraneio. E quem teve o privilégio de nascer e crescer na Mina de São Domingos, e de ter aprendido a nadar nas águas da Tapada Grande ou da Tapada Pequena, é sempre àquelas margens que quer voltar.
Visitar a Mina de São Domingos nos meses de verão pode significar ter dificuldade em arranjar alojamento. Os moradores do ano todo queixam-se da falta de dinheiro no ATM, de filas para abastecer na mercearia. Mas hoje em dia já há três restaurantes na aldeia, uma mercearia e um supermercado, meia dúzia de alojamentos, desde arrendamentos no Alojamento Local, passando por pensões e até hotéis de 4 estrelas.
No início deste ano, em fevereiro de 2024, morreu o último mineiro que ainda vivia na aldeia e que tinha tido a experiência de descer às entranhas da Terra. António Assunção morreu com 94 anos, depois de mais de 20 a trabalhar na mina de São Domingos, e depois de ter passado, também, pelas minas de carvão na Bélgica.
O filho, homónimo, está no Grupo Coral da Mina de São Domingos. “Revitalizar este grupo coral é também uma forma de garantir que há alguma coisa para fazer o ano todo, que se fazem uns passeios para ir cantar aqui e ali, que se mantém uma tradição e se homenageiam os nossos antepassados e a nossa cultura”, diz José Brás.
Eu sou filho do cantar
Neto de quem cantou bem
O mesmo que me ensinou
Não ensina mais ninguém.
José Alexandre Vaz é o ponto. Outras vozes se lhe juntam.
Canta Alentejano canta
Que o teu canto é oração
Tens a alma na garganta
Solidão, ai não, ai não.
Mais sobre Mina de São Domingos
Sara Ribeiro, a respigadora
Trabalha na Fundação Serrão Martins há quase 20 anos. Conhece como poucos as histórias, aventuras e desventuras das muitas famílias que viveram na Mina de São Domingos. Do passado da aldeia onde cresceu, a brincar nas ruas e a aprender na telescola, guarda um entusiasmo particular e uma curiosidade incessante. Vasculha os registos da atividade mineira, procura reconstruir as vidas de muitas famílias como a dos seus antepassados.
José Brás, o presidente do Coro
Teve de sair cedo da aldeia, para arranjar trabalho. Mas, nos empregos que arranjou, arranjava sempre maneira de vir todos os fins de semana à Mina. Houve uma altura em que conseguia vir dormir à quarta-feira. Nunca esteve muito tempo ausente, mas só começou a ser mais assíduo em 2012, quando se reformou.
Nuno Martins, o projecionista do cinema
Aprendeu com o pai. Foi com ele que viu como se punham e tiravam as bobines, se cuidava que a película não fosse projetada de pernas para o ar. Foi a última pessoa a projetar uma sessão de cinema no antigo Cineteatro da Mina de São Domingos, um edifício que foi restaurado para agora ser um espaço polivalente, inclusive um museu. Tem muita nostalgia com os momentos do passado, mas faz o que pode para viver intensamente o presente.
Camila Duarte, a filha de mineiro
Filha de mineiro e contrabandista, foi a terceira de 11 irmãos. Ficou traumatizada com as famílias numerosas, só quis ter dois filhos. Trabalhou muito, trabalhou sempre, em casa de ricos e de reis. Agora, com 78 anos continua a trabalhar, a lavar pratos e a fazer o que for preciso no restaurante gerido pela prima. Porque não sabe estar quieta, não gosta de estar quieta. Gostava de ver o Presidente da República a visitar a Mina.