Trabalha na Fundação Serrão Martins há quase 20 anos. Conhece como poucos as histórias, aventuras e desventuras das muitas famílias que viveram na Mina de São Domingos. Do passado da aldeia onde cresceu, a brincar nas ruas e a aprender na telescola, guarda um entusiasmo particular e uma curiosidade incessante. Vasculha os registos da atividade mineira, procura reconstruir as vidas de muitas famílias como a dos seus antepassados. Eis o seu testemunho.
“Todos os objetos contam uma história. É preciso conhecê-la.”
Chamo-me Sara Ribeiro, tenho 41 anos, e posso dizer que sou da Mina, mesmo não tendo nascido aqui. Nasci em Serpa, vivi no Pomarão até aos meus sete anos, mas a verdade é que fui registada como se tivesse nascido aqui, na Mina de São Domingos. Foi aqui que eu estudei, foi aqui que eu cresci, é aqui que eu tenho casa, é daqui que eu sou.
Eu vivi no Pomarão até aos sete anos, o meu pai era lá Guarda Fiscal. Entretanto, fechou esse posto. Aliás, fechou o posto, fechou a escola, fechou tudo. Lá não havia nada. Viemos para aqui. Foi aqui que eu cresci. Numa casa mesmo voltada para a mina, posso dizer que todas as nossas brincadeiras de criança eram passadas ali, na velha mina, à volta do Malacate, do antigo cais do minério, das oficinas.
Andávamos por aqui, corríamos tudo. Não estava nada cercado. Felizmente, nunca aconteceu nada a ninguém, sempre correu tudo bem. E havia muita criançada na altura, andávamos sempre todos na rua. Eu só tenho um irmão. Mas havia aqui muitos vizinhos com quem brincar. Foi aqui que eu fiz a escola. Andei aqui até ao meu sexto ano, ainda andei na telescola. Entretanto, acabei por ir para um colégio, o Instituto de Odivelas, ainda estive lá dois anos.
Depois é que voltei para Mértola, e tirei um curso profissional de recuperação do património edificado. Estive a estagiar em Tavira, e depois voltei para a Mina. Já estava aqui quando fui convidada para trabalhar na organização da primeira grande exposição que se fez sobre a Mina de São Domingos desde que tinha fechado, em 1966. Isso foi em 2004 e desde então tenho estado envolvida sempre nestes trabalhos de restauro, inventariação e documentação, mas também faço visitas guiadas quando é preciso.
Nós recebemos visitas o ano todo, mas no verão é sempre muito mais agitado. É quando há muita gente na aldeia, quando todos regressam, os que emigraram, os que têm aqui segunda habitação, os que nos procuram por causa da Tapada, das praias fluviais.
Trabalho na Fundação Serrão Martins, que pertence à Câmara Municipal de Mértola e à La Sabina, a proprietária dos terrenos da mina. Às vezes estou na Casa do Mineiro, outras no Cineteatro, mas o meu posto de trabalho mesmo é no Centro de Documentação, onde continuamos a tentar organizar todo este património.
Eu tenho alguma paixão por estas coisas. Na verdade, nunca vi a mina em funcionamento, mas as histórias que as pessoas contam, como é que era, os registos que existem. Acho que tudo isso é fascinante. Eu gosto de conhecer e de contar como é que isto era. Porque agora podemos ver só ruínas e coisas abandonadas à nossa volta. Mas conseguimos imaginar e dar a conhecer tudo aquilo que aqui existiu.
Em termos de revolução industrial, isto sempre esteve muito à frente do que existia. Foi aqui a primeira central elétrica do Alentejo, tinha um hospital, tinha banda de música, teatro, cinema. Não era tudo fácil, pelo contrário, mas são essas histórias que é preciso conhecer, reconhecer, divulgar.
Hoje em dia, parece que não se dá valor ou importância às dificuldades que estas famílias passaram. Mesmo quando estão a desmanchar uma casa, deitam tudo no lixo, nada presta ou interessa, é tudo velho. Mas eu vou sempre a correr, mexer no lixo dos outros, porque acabo por encontrar muitas histórias, muita informação. Hoje já não conseguimos encontrar esse tipo de objetos. E cada objeto conta uma história. Isso é o que me move. Mostrar o que existiu cá na Mina, dar a conhecer essa realidade às pessoas, não deixar que ninguém se esqueça, provocar um bocadinho, imaginar como é que era a vivência, porque era muito duro. Não só a vida dos mineiros, mas também a vida das mulheres.
Elas tinham uma vida muito, muito difícil. Os homens iam para a contramina, o nome que chamam às galerias de exploração subterrânea, e elas ficavam sozinhas com muitos filhos para alimentar. Tinham de ir à lenha para fazer a comida, iam ao contrabando tentar ganhar mais algum. Fala-se da vida difícil dos mineiros. Mas as mulheres não tinham a vida mais fácil.
Do meu trabalho, do dia a dia, eu acho que o que mais gosto é do contacto com as pessoas. Mesmo que eu diga, e é verdade, que onde gosto de estar é ali no centro de documentação no meio de arquivos.
De resto, a Mina para mim é casa. Mesmo que agora, e por causa da organização familiar, esteja a viver em Mértola, porque tenho lá os meus filhos na escola, e o meu marido trabalha lá. Em vez de serem três a viajar de manhã (são quase 20 quilómetros de distância entre a aldeia da Mina de São Domingos e a vila de Mértola) viajo eu todos os dias para aqui.
Tenho uma casa na zona onde era o Pago Velho. Chama-se Pago, porque os mineiros trabalhavam e recebiam mensalmente, mas os acertos de contas das horas a mais eram feitos todas as semanas. E ao dia 4 de cada mês, era o dia de pago. Então, no largo onde eu moro havia um mercado enorme. Vinha gente de todo o lado, comerciantes de todo o lado. E havia uma série de tabernas e mercearias. Só neste largo eram umas cinco ou seis, e uma delas era do meu avô.
A minha mãe dizia sempre que na hora de sair, assim que tocava o búzio, era uma azáfama junto ao balcão. De uma ponta à outra do balcão estava tudo cheio de copos de vinho. Eram mesmo outros tempos. Mas essas histórias têm de ser contadas. É por isso que nós continuamos a trabalhar.
Eu digo que é aqui a minha casa. É aqui que estou aos fins de semana. É aqui que eu tenho, como muitos moradores da Mina, o meu “resort” privativo, o meu lugar na tapada onde os meus pais tinham a horta. Não há outro sítio no mundo onde eu goste mais de estar.
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