Teve de sair cedo da aldeia, para arranjar trabalho. Mas, nos empregos que arranjou, arranjava sempre maneira de vir todos os fins de semana à Mina. Houve uma altura em que conseguia vir dormir à quarta-feira. Nunca esteve muito tempo ausente, mas só começou a ser mais assíduo em 2012, quando se reformou. Eis o seu testemunho.
“O que sempre me fez regressar à Mina foi o espírito de comunidade”
Chamo-me José Brás, tenho 71 anos, e sou o presidente e o ensaiador do Grupo Coral da Mina de São Domingos. Em toda a minha vida estive sempre muito ligado ao movimento associativo, liderei várias coletividades. Mas há muitos anos que me dedico mais ao Grupo Coral.
Eu sou filho de mineiro, como quase todos os que aqui estamos. São filhos e netos de gente que trabalhou na Mina de São Domingos. Eu nasci nesta aldeia, mas tive de sair daqui muito novo, para ir trabalhar, como toda a gente. Aqui não havia trabalho para garotos, e não havia meios de subsistência, por isso, com 13 anos fui trabalhar para um café, na Baixa de Lisboa.
José Brás
A minha preocupação agora é arranjar gente nova. Como o vou fazer é que não sei. Se não são daqui, que venham da Moreana, de Corte Pinto [aldeias próximas] e que o transporte não seja problema, que vamos lá buscá-los.
Nesses primeiros quatro ou cinco anos era impensável vir cá. Não havia a parte monetária e também não havia os dias de férias que nós temos hoje. Por isso, só lá para os meus 17 ou 18 anos é que começou a haver mais contacto com as pessoas daqui da Mina, porque comecei a conseguir vir ao fim de semana. Ou porque encontrava pessoas daqui, que tinham carro e que nos traziam. E eu vinha sempre aqui ao fim de semana, e foi nessa altura que comecei a vir à caça. Era um vício que quase toda a rapaziada da minha idade tinha.
Quando chegou a altura de ir à tropa, fui para a Marinha, alistei-me nos Fuzileiros, entrei para os quadros. Mas vinha sempre aos fins de semana, trocava as folgas se fosse preciso. Se calhar, num ano falhava para aí 4 ou 5 fins de semana. Vinha sempre, sempre, sempre, enquanto estive na Marinha. Depois de me reformar da Marinha, fui trabalhar para uma empresa de vender peças para carros pesados. Fazia tudo para voltar à Mina, à quarta-feira vinha sempre cá dormir. Organizava as minhas voltas para me permitir estar aqui também durante a semana.
Em toda a minha vida tive sempre o bichinho associativo. Fui presidente da Associação de Caçadores aqui na Mina, fui presidente de uma associação no Seixal, o Centro de Solidariedade Social de Pinhal de Frades. E quando vim para aqui de vez, também me meti no movimento associativo, e avançámos com o Grupo Coral.
Acho que o que me trazia sempre à Mina é mesmo este espírito e a convivência entre todos. O espírito de comunidade existia muito aqui na aldeia, nos tempos em que a mina estava aberta. As pessoas entreajudavam-se, porque havia necessidades. Havia faltas de um lado, faltas de outro. Havia um que pedia um pão à vizinha e uma em que no dia em que cozia o pão, lho ia levar. Havia ali sempre uma fraternidade entre as pessoas, um espírito de entreajuda que hoje é mais difícil de encontrar.
O melhor da Mina de São Domingos é aquilo que nós guardamos da nossa criação. Embora fossem tempos difíceis, com grandes dificuldades, deixaram-nos coisas para contar aos nossos filhos, que às vezes não acreditam, e aos nossos netos.
Havia muitas dificuldades, mas também havia muitas atividades. Antes da mina fechar, os donos da Masson & Barry tiveram inteligência. Davam. Nessa parte eles eram inteligentes, eles davam as bases para as pessoas, clubes de futebol, teatro, cinema, hospital, até um sindicato de trabalhadores se formou aqui.. Mas a vida era difícil. E depois ainda havia a situação política: saiu daqui muita gente presa, denunciada pela PIDE. A empresa tinha muitos bufos, e às vezes as pessoas facilmente caíam a dizer qualquer coisa. Bastava dizer que tinham fome, já era suficiente.
Nós tivemos aqui um padre que acabou expulso porque defendeu os trabalhadores, que estavam sem receber o salário. Ele arranjou forma de dar o pequeno-almoço aos miúdos antes de irem para a escola, lá na casa do padre. Eu recordo-me que fui lá uma vez. Eu nem fui daqueles mais necessitados, fui criado com o meu avô, que era capataz de oficina. Mas também lá fui, à casa do padre. Foi esse padre que me casou. Veio cá casar-me, depois do 25 de Abril, em dezembro de 1974.
José Brás
Havia muitas dificuldades, mas também havia muitas atividades.
Depois da mina fechar, acabou-se o trabalho e então é que foi mesmo uma miséria. Só cá ficou quem não pôde mesmo ir embora. Praticamente saiu tudo. Uns foram para a Bélgica, para França, para a Holanda. Iam para casa de famílias, como eu fui. Quando fui para Lisboa, fui para casa de uma tia minha, em Santo Amaro. Estávamos lá umas seis ou sete pessoas. Faz lembrar os imigrantes hoje, não é?
Mas esse tempo já lá vai. Agora andamos aqui com o Grupo Coral. Quando fui presidente do Centro em Pinhal de Frades, também fazia parte de um grupo musical que lá havia, os Diversos do Alentejo. Quando regressei de vez para a Mina, em 2012, desafiaram-me a fazer alguma coisa aqui também. E o canto surgiu naturalmente.
Em 2014 o Cante Alentejano é elevado a Património da Humanidade, e não haja dúvidas que isso trouxe um impulso muito grande. Primeiro, todos diziam “eu não sei cantar”. Hoje tenho amigos aqui no grupo que dizem “é pá, alguma vez pensei que vinha a estar tantos anos a cantar?”. Pronto, o que é certo é que cantam e que fazem cá falta.
Porque o grupo pode ter o ponto, tem o alto, temos umas requintas, que são as mulheres que fazem requintas, temos várias coisas. Mas todos fazem alta. Mesmo os que diziam que não cantavam, agora estão aí, com as vozes todas certas. Há aqui trabalho feito.
A minha preocupação agora é arranjar gente nova. Como o vou fazer é que não sei. Se não são daqui, que venham da Moreana, de Corte Pinto [aldeias próximas] e que o transporte não seja problema, que vamos lá buscá-los. Mas é preciso arranjar sangue novo, que os que estamos aqui já não vamos para novos.
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