A mãe, Fernanda, nunca quis ir para mais lado nenhum. Nasceu num berço de agricultura e agricultora quis continuar. A filha, Júlia, ainda pensou noutros voos, estudou fora, tirou um curso na área da Audiologia. Mas, afinal, é na Serra que quer estar, e vê no turismo uma alternativa que ajudará a viabilizar o território, dando-lhe valor. Com o turismo e o azeite no centro de tudo. Eis os seus testemunhos.
“Gostávamos que houvesse uma marca que refletisse a nossa região e o nosso azeite””
[Fernanda Silva] Chamo-me Fernanda Silva, tenho 53 anos e posso dizer que nasci num bercinho de agricultura. Os meus pais sempre foram agricultores. Estiveram ligados à pecuária, à bovinicultura de leite e também à suinicultura. Depois passámos só para a produção de leite. E durante muitos anos tivemos uma vacaria de leite. Mas houve muitas dificuldades.
Aqui não é fácil ter uma vacaria de leite, em regime intensivo. Temos constrangimentos ao nível do parque natural. E não temos áreas em que possamos semear e colher. Na verdade, tínhamos de comprar os alimentos e devido aos custos e a várias outras situações, todas de carácter económico, tivemos finalmente que optar por encerrar a exploração animal. O olival ficou.
Havia vários hectares de olival que o meu pai já tinha. E nós continuámos com o olival. Eu sempre gostei muito do azeite, desde miúda. E custa-me ouvir as pessoas dizer, mas elas têm razão, que não é rentável. Porque, se calhar, é preciso muita teimosia para conseguir ser olivicultor aqui.
O abandono do olival é uma coisa que, realmente, se tem vindo a notar cada vez mais. Uma grande percentagem do olival – não só da aldeia da Serra de Santo António, mas também do concelho – não está a ser colhida. As oliveiras estão em forma, mas na realidade não se apanha a azeitona porque não é uma atividade rentável.
Agora os preços estão melhores, mas a verdade é que não têm estado muito bem. A dificuldade da mão-de-obra e a idade avançada das pessoas que têm os olivais, se não tiverem apoio por parte da família, contribuem para que parte da azeitona não seja colhida.
Por exemplo, os meus terrenos são pequenas parcelas. Têm muita pedra, não é nada fácil trabalhar aqui com máquinas. Também não é fácil com a mão-de-obra porque temos pouca e é cara. Mas é o que temos, não vamos pensar que isto não dá. Temos de pensar que dá.
Felizmente começou-se a pensar em formas de promover este setor, que está um bocadinho em baixo. O azeite, cada vez mais, é reconhecido como sendo um bem essencial para a saúde, um superalimento. E nós temos de apostar nisto, e cativar a gente nova.
[Júlia Guiomar] Eu também sempre fiz parte do olival e da agricultura, desde pequenina, com a ajuda dos meus pais. E nunca tinha pensado bem qual era o potencial. Até agora que vi um projeto como o Ouro Líquido aparecer [o projeto Ouro Líquido é uma associação entre autarquias e empresas no sentido de valorizar a fileira do azeite]. São pessoas com vontade de ensinar a fazer mais coisas, a fazer melhor, a testar-nos, para sermos mais empreendedores.
Ao ver tudo isto, ganho vontade de arriscar. Tenho percebido que esta é uma área que eu posso continuar a levar. E pretendo fazê-lo em breve. Eu e a minha irmã não vamos esperar que os pais fiquem velhos. Até porque, quando um negócio passa dos pais para os filhos, convém que os filhos já saibam alguma coisa sobre o assunto.
[Fernanda Silva] Na verdade, durante alguns anos estivemos um bocadinho parados. Eu trabalho numa empresa do concelho. Nunca digo a tempo inteiro porque, para dizer que trabalho a 100% noutro sítio, teria de ter 150% de tempo. E isso não existe. Sempre dediquei muito tempo à agricultura. E a produção de carne é o que mantém a agricultura viva aqui na Serra de Santo António, porque ainda é a atividade mais rentável.
Mesmo o olival acaba por contribuir, de alguma forma, para a alimentação dos animais; e os animais também contribuem para que o olival se mantenha; acaba por haver aqui alguma simbiose. Eu realmente tenho animais de carne. E em relação ao olival, gostava de ter uma marca, ou que houvesse uma marca que refletisse a nossa região e o nosso azeite. Porque o nosso azeite é de muito boa qualidade. E nós temos de valorizar aquilo que temos. No turismo também.
Ando aqui um bocadinho a ver se elas acordam com esse sentido. Porque já acho que o futuro tem mais que ver com as minhas filhas. O turismo, a promoção do turismo, das marcas, sou eu que já tenho de contar muito com a ajuda delas. Porque elas têm outros conhecimentos.
[Júlia Guiomar] O turismo é realmente a parte que me diz mais alguma coisa e onde eu tenho vontade de fazer algo aqui na Serra. Eu estudei fora e voltei para cá porque achava que este era o melhor sítio onde podia estar. Tenho vontade de investir aqui, de ter cá alguma coisa relacionada com turismo, ao mesmo tempo que damos continuidade ao azeite. Gostaria de mostrar a nossa paisagem, a experiência da azeitona e do olival, às pessoas que se identificam com a natureza. É aqui que gosto de estar, que me sinto bem.
O meu avô era um dos grandes produtores da aldeia e trabalhava sempre por conta própria. Eu e a minha irmã ajudávamos os meus pais. Depois, houve aquela fase em que resolvemos mudar um bocadinho o rumo das nossas vidas, mas nunca deixámos totalmente a parte agrícola.
Eu nasci aqui, sempre estive cá. Quando estava a estudar fora e vinha cá, pensava: “é mesmo deste sítio que eu gosto, não vou daqui para fora”. E se eu puder, fico cá mesmo. Do que mais gosto? Da paisagem, das pessoas, da cultura, de tudo! Um bocadinho de tudo.
[Fernanda Silva] Uma mãe fica feliz por ouvir a filha dizer isto. A minha outra filha, Carolina, também está, de alguma forma, ligada à nossa terra. Faz parte de uma coletividade, o Grupo Recreativo Unidos da Serra – o GRUS – que já existe há 75 anos. Foi um grupo de jovens que pegou numa coletividade que estava a ficar desmotivada e deu-lhe uma energia muito positiva.
E eles estão a fazer coisas. Juntam-se muito, trazem outros jovens e estão a desenvolver atividades muito engraçadas. Acho que também é por aí. Se os jovens gostarem de estar cá, se se sentirem bem cá, acabam por ficar. Se têm as raízes e um bom ambiente, eu acho que eles ficam, não é?
Até em termos de cultura e tradições, têm promovido eventos mais culturais aqui, atraindo outros jovens. Agora têm sempre atividades. E juntam-se ali, o que é importante. Fazem a Penalty Cup, por exemplo, e muitas outras coisas interessantes que dão energia, dão movimento. É verdade. Há muito o que fazer numa aldeia como a Serra de Santo António, afinal.
Mas há também ainda muito a fazer. E gente com vontade, pelos vistos. Voltando ao início da conversa, à questão da falta de mão-de-obra, do abandono da oliveira, de não se aproveitar o potencial total do olival. Para dar a volta a isto, o mais importante é o valor. E para ter valor, ele tem de ser reconhecido. Temos de trabalhar nesse sentido, demonstrar que aquilo que temos é bom.
Acho que o caminho está a ser trilhado. Quando vou às reuniões penso sempre “já partimos aqui mais uma carrada de pedra”. Agora, vamos ver se fazemos um muro ou não. Tudo o que vocês vêem aqui à volta foi feito assim. Foi feito a partir pedra, a construir muros e a desbravar terrenos. E é só isso que temos de continuar a fazer. A desbravar terreno e a construir muros.
O projeto Ouro Líquido tem vindo a abrir as mentalidades. E também tem trazido as pessoas mais novas – os filhos, ou o que seja – para a zona. Porque se os filhos só nos virem trabalhar no duro, todos os dias, eles também se desmotivam. Se eles virem que há uma mente mais aberta e que há outras possibilidades, outras motivações, eu acho que eles também passam a ver as coisas de outra forma.
Nós estamos inseridos numa zona como o Parque Natural das Serras de Aire e Candeeiros, que tem muita coisa boa. Mas, durante muito tempo, também nos trouxe muitas restrições. Os jovens têm de ser mais abertos, mais abrangentes. E, ultimamente, têm demonstrado que o estão a ser.
Temos de perceber que temos restrições, mas que também podemos tirar proveito daquilo que existe. Se calhar, já vem com uns anos de atraso, mas se vier é sempre a tempo. Cada um a puxar para o seu lado, é que é impossível. E essa parte do associativismo é sempre a mais difícil. Quanto mais rural for o meio, mais difícil é o associativismo.
O importante é alguém começar. E aqui já se começou. Se forem uns quantos de início, eu acho que vão ser mais a seguir. Neste momento, já estamos num ponto em que já não vamos andar para trás. Gosto de passar esta imagem positiva, gosto que as pessoas pensem que isto não vai parar.
A terra diz-nos muito. O meu pai trabalhou muito para ter aquilo que nos deixou. Acho que foi um compromisso que nós sempre quisemos manter, enquanto fosse possível. E aqui estamos.
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