Gosta de vacas, gosta de motos, gosta de grutas. Orlando Elias, 53 anos, é pastor e agricultor, sabe que precisa dos animais para continuar a ter o olival bem tratado, e é da carne e do azeite que garante o seu sustento económico. Não quer ser rico, quer ter tempo. E saúde para continuar a apreciar o horizonte e descobrir novas grutas. Eis o seu testemunho.
“Este é o melhor sítio do mundo para viver”
Chamo-me Orlando Elias, tenho 53 anos, nasci e cresci aqui nesta serra e é aqui que eu gosto de estar. Ainda estive sete anos emigrado, mas ter voltado para aqui foi a melhor coisinha que eu fiz. Posso dizer que o meu dia a dia é maravilhoso. Porque vivo da agricultura, ando ao ar livre, vivo do trabalho do campo. Vivo das oliveiras e das vacas. Os meus pais já faziam isto, mas no tempo deles era diferente. Eu fui criado nesta vida até aos meus 17/18 anos, até que emigrei, mas depois regressei à minha terra.
Por gosto, porque sou daqui, porque aqui estão as minhas origens, e porque, mesmo depois das muitas viagens por vários sítios, não encontro nada mais bonito onde viver, e para o meu bem-estar, do que estar aqui. Ganhei tempo, liberdade, convívio com os meus colegas, descanso. Levanto-me todos os dias de manhã cedo porque quero, porque é o meu prazer, é o meu gosto. Mas podia levantar-me às 10h, ou ao meio-dia.
Podia ter mais animais, tratar ainda mais olival, mas acho que me devo impor limites. Não teria pasto natural que chegasse para elas, já começava a ter gastos, não havia recompensa. Assim, temos tudo equilibrado. Não dá para ficar rico, mas também não é isso que é preciso.
Gosto de me levantar cedo para ir ver os meus animais. E depois vou tomar conta dos campos, dos terrenos, compor o que for preciso. Eu vivo sobretudo do gado e da olivicultura. Os dois estão muito ligados. O gado é muito importante para nós, há aqui muito trabalho dos antigos e se tirarmos daqui os animais isto transforma-se numa selva.
Olhando para o trabalho que tiveram os nossos antepassados, o desbravamento dos terrenos, os muros, os marouços, tudo o que eles construíram, nós temos a obrigação de manter. A terra agora é fértil, mas antes era tudo mato. Para tornarem isto cultivável, nem se imagina o trabalho que era feito. O terreno era desbravado, todos os matos eram cortados e era tudo cavado à enxada. Recolhiam as pedras para fazer os muros e para fazer os marouços. Plantavam as oliveiras onde encontrassem terra e espalhavam por aqui os animais.
Nesse tempo, eram mais as cabras do que as vacas, e o azeite é que era o verdadeiro ganha-pão. Para eles, para os antigos, uma oliveira era uma riqueza. Eram capazes de discutir noite e dia por causa de uma oliveira. Esta é minha, aquela é tua. Era tudo discutido ao palmo.
As pessoas, antigamente, trabalhavam de sol a sol. Na apanha da azeitona, a tratar dos terrenos, a cuidar dos animais. Hoje, a nossa vida não é tão dura. Temos trabalho, claro, e trabalho pesado. Mas são coisas diferentes. Já não andamos a fazer estes muros todos, já não andamos a desbravar a terra, já não viemos a pé, já temos um tratorzito… Não tem nada que ver. Nem mesmo as horas de trabalho… É tudo muito diferente. Lembro-me de, em garoto, andar nos terrenos a que agora chamamos Terras de Milho, e que lá era tudo semeado de aveia. Era ceifado para dar aos animais. E ainda me lembro dos carros de bois, não havia tratores!
Antigamente, tudo tinha muita importância, nada se desperdiçava, tudo importava. Agora… já não é assim. Eu não consigo tratar de todas as oliveiras como eles faziam antigamente. Mas também as estimo. Não gosto de as ver mal zeladas, com arrebentões que vão por elas acima, ou todas sujas por baixo, com lenhas secas. Gosto de ver as oliveiras bem limpas, zeladas, vivas, verdes. Mas a verdade é que não as ponho a dar azeite todos os anos. Não tenho como. Os animais, a pastorícia, ajudam-nos a manter os terrenos limpos. Por isso, agora, tal como no passado, os animais e as oliveiras tratam-se em conjunto. São os dois necessários.
Nós temos de ter o gado, porque não se consegue viver só do azeite. Economicamente não é rentável. Não paga as despesas. Só se começássemos a tratar o olival, a curar as oliveiras. Porque se quiséssemos agora andar aqui com um trator a curar isto tudo, ia começar a ver-se as oliveiras azuis. A gente não quer isso, pronto. Nem eu nem o meu irmão. Não podemos estar a querer dar aos outros aquilo que não queremos para nós próprios. Esse azeite não o quero para mim.
Nós não tratamos nada, é tudo ao natural. A gente só aproveita o fruto quando ele está a dar. Quando a gente vê que a azeitona já não está em condições, também não queremos apanhar. Porque procuramos a qualidade, não a quantidade. E é muito difícil arranjar mão-de-obra que saiba fazer o que é preciso, na altura certa. Nós nunca sabemos como vai ser o ano, quando começa a apanha e quanto tempo vai ser preciso para a fazer. Pode demorar 15 dias, pode demorar um mês e meio, dois meses. O clima e o fruto é que nos dizem isso. E depois, arranjar mão-de-obra, mesmo para fazer o básico, temos de andar a ensiná-los. Quando acabamos de os ensinar, acabou a campanha.
E mesmo que juntássemos todos os produtores e fossemos fazer a apanha uns dos outros, não havia hipótese. Não conseguimos. Eu não tenho capacidade de apanhar uma quarta parte da minha azeitona. E eu sou um pequeno produtor. O meu irmão tem o dobro da área que eu tenho. Não conseguimos apanhar a azeitona toda, de todas as oliveiras.
Então, tenho de as amanhar de forma a que elas produzam só em determinados anos. Se eu não apanhar a azeitona, a oliveira vai secar, vai ficar toda feia, com ramos secos, gafas, pedra da folha. Eu tenho de trabalhar em função das minhas condições e das necessidades. Por exemplo, estas oliveiras aqui foram limpas no ano passado, mas de uma forma a que só vão dar azeitona daqui a dois anos. Podamos as oliveiras de maneira a que as vacas também não lhes cheguem e comam tudo.
Os animais são o que nos toma mais tempo, são mesmo uma obrigação, mas, na verdade, também são o que eu mais gosto. Tenho mesmo muito gosto nos animais. Temos de cuidar deles quase tão bem como cuidamos de nós próprios, senão não vale a pena tê-los.
Por isso, o meu projeto de vida agora é cuidar do que tenho. Do que herdei dos meus pais, e do que comprei também. Porque eu quis aumentar os meus terrenos. E manter isto o mais limpo possível, em condições que um dia alguém depois de mim, um filho ou não importa quem, veja isto e ganhe coragem para lhe pegar, para ver se não acaba. Porque nós queremos que isto continue. Esta vida tem de ter futuro!
As pessoas têm de pensar que nas cidades não se come cimento. A gente come da terra. A terra é muito importante. Não há dúvida nenhuma sobre isso. Não se pode deixar ao abandono a terra.
Eu digo isto muitas vezes: eu adoro viajar, e quanto mais viajo mais estou a ter conhecimento do sítio onde vivo, mais sei dar valor ao que tenho. Já visitei muitas coisas, já andei por muitos países e muitos sítios, mas o sítio que eu escolhi e onde gosto de viver é mesmo este. Não tenho dúvidas nenhumas disso. Eu digo que não há sítio nenhum igual no mundo como aqui.
Fiz muitas viagens de moto, adoro andar de moto. Mas acho que ainda gosto mais de espeleologia que de moto. E não é em todo o lado que se pode ter esse entusiasmo de descobrir uma gruta nova. Se eu quiser fazer espeleologia, pego no meu kit e passados dez minutos, um quarto de hora, estou a descer grutas. Tenho colegas que vêm do Porto, de Lisboa, de Aveiro, de cascos de rolha…. Eu já estou cá. Com a vantagem de já conhecer isto tudo.
As grutas são outro património muito importante que nós temos. Há aqui na região mais de 1.400 grutas topografadas. Mas são com certeza muitas, muitas mais. Os antigos, quando andavam a fazer a limpeza dos terrenos, também atiravam muitas pedras para a frente do buraco.
Isto é um autêntico queijo suíço aqui em baixo. E fez-se muita asneira, destruiu-se muito. Lembro-me de que, quando se começou a falar das grutas, tinha eu aí uns dez ou doze anos, eram filas e filas de carros para as ver. E a malta ia para a berma da estrada vender um pote de mel, ervas aromáticas, chá, queijo… e pedras, estalactites – não sabíamos que depois a pedra, desprendida da rocha, perde a cor, o brilho. Destruiu-se muito.
Agora, finalmente, as coisas estão mais bem preservadas. Há regras. E eu posso dar-me ao luxo de dizer que tenho um património como este à porta de casa.
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