Tem 51 anos, conhecimentos em biologia, botânica, geologia, engenharia agrícola. Integrou uma associação local, foi membro da Junta e vereador na Câmara Municipal. Faz visitas guiadas, workshops de culinária, organiza passeios e concertos. Óscar Pires faz muitas atividades e é muitas coisas. O denominador comum, diz ele, é a paixão pela Serra de Santo António e pelo território carso. Eis o seu testemunho.
“Ainda é possível viver experiências muito genuínas”
Chamo-me Óscar Pires, tenho 51 anos e sempre vivi em Serra de Santo António, à exceção dos tempos da faculdade. Mas mal acabei o curso, regressei à aldeia e acabei por construir aqui a minha casa.
Felizmente venho de uma família que me proporcionou muitas experiências, sobretudo quando falamos do dia a dia típico de uma zona rural, onde as pessoas eram multifacetadas e reuniam um conjunto de saberes que quase já desapareceram nos dias de hoje. Devo isso aos meus avós maternos que, apesar de terem morrido quando eu ainda era bastante jovem, conseguiram deixar o seu legado. Vi a matança do porco, vi embebedar o peru no Natal. Fui para Engenharia Agrícola, influenciado por essas vivências. E depois para Biologia também, embora ainda não tenha terminado esta última licenciatura.
Relativamente a todas as minhas atividades relacionadas com a Serra, destaco a criação de uma associação cultural e ambiental com um grupo de amigos, em 1997, através da qual fizemos um conjunto importante de iniciativas que nos marcaram a todos e que, no fundo, também nos ajudaram a crescer.
Organizamos exposições, passeios, festivais, férias ativas, fins de semana radicais, demos formação profissional, fizemos um pouco de tudo, para dinamizar a nossa comunidade.
Como tudo na vida, esta associação também teve o seu fim e foi desde essa altura que comecei a organizar várias atividades turísticas aqui na serra. Faço passeios interpretativos, organizo concertos, workshops de comida tradicional… Inicialmente eram iniciativas espontâneas, que surgiam por acaso, mas hoje em dia já consigo ter um conjunto interessante de solicitações, mesmo sem grandes preocupações na sua divulgação ou até na angariação de contactos.
Atualmente estou a preparar um conjunto de produtos para me dedicar mais a este tipo de atividades, que, no fundo, são o que me dá mesmo muito prazer na vida.
Um cliente traz outro, e pelo passa-a-palavra as coisas estão sempre a surgir. A título de exemplo, conto-vos um episódio recente: como trabalho em regime de voluntariado com o programa Erasmus+, na Federação das Associações Juvenis do Distrito de Santarém, tenho viajado por toda a Europa. Cheguei agora da Polónia e da Eslováquia, durante os voos acabei por conhecer pessoas no avião… Estávamos ali, sentados durante uma hora, duas horas e fomos conversando… No fim da conversa, acabamos por trocar contactos e o certo é que as pessoas acabam por vir visitar a região e, muitas vezes, até ficam durante alguns dias…
O que é que eu lhes digo? Falo da originalidade, da tipicidade, das pessoas serem amistosas, de gostarem de receber. Falo de ainda ser possível viver aqui algumas experiências genuínas. Eu não estou a vender nada. Mas acho que é uma coisa tão natural que depois todos acabam por querer vir.
Aqui, procuro dar a conhecer o que ainda temos de original. Muito do conhecimento acumulado durante gerações e que nos permite usar os escassos recursos que existem e transforma-los em produtos de excelência, cada vez mais apreciados por quem não conhece esta região.
Desde a velhota que faz o pão, a chouriça, a morcela, o queijo ou o sabão, a percorrermos a serra enquanto apanhamos plantas espontâneas comestíveis para preparar o almoço, ou passarmos um dia na apanha da azeitona, ou na companhia do pastor, que guarda as cabras na serra. Estas são apenas algumas experiências que podemos proporcionar aos visitantes.
Eu faço muitas coisas, mas não sei como me definir. Sei que sou um apaixonado pela serra. E, portanto, sendo apaixonado pela serra, a minha função é dá-la a conhecer, mostrá-la e tentar fazer com que seja preservada. Nós podemos ser muita coisa, podemo-nos reinventar. Às vezes, temos mesmo de nos reinventar. E a serra dá-nos essa capacidade.
A ocupação do território é aqui muito antiga. A freguesia é de 1918, mas a localidade já existe há várias centenas de anos,provavelmente desde os tempos da pré-história, facto atestado pelos diversos testemunhos materiais que vamos encontrando por aqui, em muitas das lapas e grutas que existem na região. Além das pessoas e das tradições que ainda conseguimos encontrar, e que ainda estão vivas, há também uma série de locais que reúnem um conjunto de fatores que são de extrema importância e de valor para quem nos quer conhecer – ficar a saber um pouco mais da história desta região do Parque Natural das Serras de Aire e Candeeiros.
Diz-se que as pessoas se começaram a fixar aqui para cumprir castigos. Enfrentavam a pena de vir povoar uma zona erma. Antes de existirem as colónias, um dos castigos para os crimes que cometiam era virem para estes locais onde não tinham qualquer meio de subsistência e tinham de se instalar, desbravar, desmatar e começar a criar aqui família para povoarem o território. Esse facto fez com que tivessem de utilizar todos os mecanismos possíveis para superar a falta de água à superfície.
O Maciço Calcário Estremenho é o segundo maior “reservatório” de água de água doce a nível nacional. Só que, como disse, encontra-se, nalguns casos, a várias centenas de metros de profundidade. Portanto, ou conseguiam criar mecanismos para preservar a água das chuvas, ou então era impossível permanecerem aqui durante todo o ano.
Todas essas práticas associadas à preservação da água à superfície – visto que o território tem solos muito magros, de pouca profundidade – fizeram com que a agricultura também fosse muito difícil. Essa população teve de implementar práticas de arroteamento, despedrega, para criar solos aráveis e cultivar os víveres de que necessitavam para sobreviver.
Eu julgo que, em termos de património rural, devemos ser das zonas mais ricas de todo o Parque. Para além de todo o património natural, temos uma grande diversidade em termos de património construído, desde os muros de pedra solta, as cisternas, as eiras, ou as casinas, que serviam de abrigo para os pastores. São todos estes elementos que temos que preservar. Fruto do trabalho dos cabouqueiros e pedreiros que, durante centenas de anos, exploraram toda a serra e alteraram completamente a sua morfologia, dando origem à paisagem que temos hoje em dia.
Porque a maioria do território que foi classificado como Parque Natural, resultou do trabalho do homem durante séculos, e não apenas da natureza bruta. Deixaram-nos aqui muitos lugares especiais. Julgo que só mesmo com a valorização dos territórios através do desenvolvimento de atividades compatíveis com a preservação dos valores naturais, como o turismo e outras atividades congéneres, é que os conseguiremos manter.
Por exemplo, a Lapa da Cerejeira é um lugar muito original. Daqueles que as pessoas mais gostam. É um acidente natural que foi causado primeiro pela erosão, depois pelo abatimento da cobertura, que criou este espaço paradisíaco, com alguma vegetação, com luz e uma série de espeleotemas que nos dão a conhecer um pouco do mundo subterrâneo que pisamos.
Apesar deste local ainda servir de abrigo para alguns morcegos, raposas e algumas aves, se respeitarmos o seu tempo e espaço, conseguimos conviver com eles e visitar o local sem provocar grandes distúrbios. Este é um dos locais de passagem obrigatória quando recebo visitantes. Trago-os aqui para sentirem a magia do que é estar dentro da serra a ver a luz do sol, ou da lua.
Já cá organizei alguns concertos, a título de exemplo, recordo-me do concerto com o David Santos, conhecido pelo nome artístico de “Noiserv”, que aconteceu em 5 de julho de 2014. Iniciamos o evento com uma caminhada que partiu da aldeia, na igreja da Serra de Santo António, tendo a Lapa da Cerejeira como destino. Pelo caminho, fizemos um picnic noturno partilhado, tendo como pano de fundo, a vista da iluminação das povoações de Mira de Aire e Minde, que circundam a parte norte do polje de Mira/Minde.
A noite terminou com o concerto, que reuniu um conjunto de pessoas vindas de vários pontos do país. Momentos únicos, passados em perfeita harmonia com o espaço onde nos encontrávamos e que ainda hoje são referenciados, quer pelo músico, quer por quem participou neste evento.
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