Trabalhou 31 anos na cozinha de um restaurante em Corroios, onde ganhou algum dinheiro e uma depressão. Hoje diz ter a principal fonte de alegria na responsabilidade de servir São João de Arga, como mordoma no mosteiro. Eis o seu testemunho.
“Vim para a serra recuperar a minha saúde”
Sou Joaquina de Fátima Alves Afonso, tenho 66 anos, e moro em Arga de São João. Nasci aqui, cresci aqui, casei aqui. No dia seguinte a me casar, no dia 26 de dezembro vai fazer agora 40 anos, fui para Lisboa com o meu marido, trabalhar com ele na restauração. Fui para Corroios, que era onde ele estava. Acabei por ficar em Lisboa mais de 30 anos. Não tenho saudades nenhumas. Depois, há uns doze anos, vim embora de vez, por questões de saúde. Puseram-me de mordoma do São João de Arga e eu gosto muito. Estou muito feliz aqui.
Comecei a vir para o São João tinha uns seis ou sete anos. Éramos nove irmãos, eu era a mais nova. Vínhamos sempre com a minha mãe. É uma festa única, não há palavras. E eu acho que, com o passar dos anos, a romaria ainda consegue ser melhor.
As pessoas vêm em grupo, chegam aqui com concertinas, dão três voltas à capela. E depois vão lá dentro pedir a graça ao São João e dar as esmolas. Deixam uma esmola ao São João e uma mais pequenina ao diabo. É a tradição.
Na noite do dia 28 [de agosto] este adro está cheio de bandas de concertinas e acordeões, há músicas em despique e comes e bebes até não se conseguir mais. Muita gente vem à romaria e pernoita. Há quem venha acampar oito dias antes, e fica aí no meio dos pinheiros. À volta do mosteiro há 23 quartéis; são quartinhos onde os mordomos e a gente da terra têm um cantinho para pousar as coisas e descansar. Fora da romaria, esses quartéis podem ser alugados. Mas lá dentro não tem nada – é só chão e quatro paredes.
Eu sinto-me muito feliz por estar aqui, a zelar pelas coisas do São João. É uma responsabilidade rotativa, não somos sempre nós. Empenhei-me muito na eleição das 7 Maravilhas [da Cultura Popular], fiquei mesmo muito contente por a nossa romaria ter ganho. Nos dias da festa ninguém descansa. Eu estou agarrada aos tachos a cozinhar para os padres e para quem calha. Mas aqui já não me importo de estar atrás do fogão. Foi o que eu fiz a minha vida toda. Mas em Lisboa, lá em Corroios, eu já não aguentava mais.
Trabalhei 31 anos no nosso restaurante. Sempre na cozinha, de manhã à noite, quase não havia folgas. Folgava à quarta-feira, mas na verdade eu ainda lá ia salgar as carnes, o chispe, para depois fazer o cozido na quinta. Trabalhei muito. Na cozinha a vida é dura. Tão dura que vim de lá com uma depressão. Mas depois cheguei aqui, com as concertinas e com o São João… e não sei o que é depressão, que ela já abalou.
O dia-a-dia em Lisboa era difícil, mas tinha de se fazer, para se ter algum dinheiro. Se tivesse ficado aqui era trabalhar de dia para comer à noite; praticamente não dava para mais nada. Mas em Lisboa, graças a Deus, fizemos a nossa vida, a nossa casinha, para estarmos naquilo que é nosso… e é uma alegria.
Tenho três casas em Corroios – uma que está sempre disponível para quando lá quiser ir, para visitar o meu filho, a minha neta e a minha nora. Na outra casa está o meu filho; e a terceira está alugada. Ainda temos o café-restaurante, onde estão a trabalhar os meus sobrinhos. E temos a nossa casinha aqui.
Uma das minhas maiores alegrias é viver feliz. E o que me faz feliz é ter saúde, ter sorte na vida, ter um bom marido – como eu tenho. Aqui tenho uma hortinha, tenho ovelhinhas, e cá estamos, eu mais o meu marido, o meu marido e eu. Somos um só. Estamos bem. A maior família que temos são os nossos vizinhos – temos poucos, porque já por aqui há poucas casas, mas damo-nos bem com toda a gente.
Gosto de cá estar, sinto-me bem com a vida que tenho. Estou muito feliz – e para quem teve uma depressão como eu, percebe…? Vim à serra buscar a minha saúde.
Eu gosto de tudo aqui na aldeia. Do ar puro, das pessoas, dos convívios. Fazíamos muitos convívios no Grupo de Danças e Cantares. Quando estava em Lisboa também já era do grupo. Mas desde que nos mudámos para cá, há 12 anos, sempre que havia festas e ranchos eu lá estava, todos os dias. Agora, infelizmente, por causa da pandemia, há dois anos que não há nada. Mas vamos lá ver se a coisa retoma.
Desde que comecei a andar nos bailinhos, e com a ajuda do São João, a depressão foi mesmo à vida, penso eu. Acredito nisso. Agora posso dizer que quase todos os meus dias são dias felizes.
A gente tendo boa família em casa, que nos damos bem um com o outro, é sempre bom. Eu levanto-me de manhã, vou com as minhas ovelhinhas, depois volto para o almoço, tenho a minha hortinha, semeio batatas, feijão, cebolas, milho… Semeio tudo, e é para me distrair, não é porque precise.
Mas um dia para ser mesmo bom tem de ter uma vinda aqui ao mosteiro. Este lugar é único. Não há um sítio onde me sinta tão bem como no Mosteiro de São João de Arga. Eu sou devota do São João, mas também dou a moeda ao diabo, e às vezes até dou uma maiorzinha porque ele também não se zanga. Gosto de receber as pessoas, explicar-lhes as voltinhas e as tradições, ajudá-las a pagar as suas promessas, a encontrar as peças de cera [ex-votos] para os problemas que tinham.
Sabe, também foi aqui no mosteiro que conheci o meu marido. Aliás, já nos conhecíamos. Ele é de Arga de Cima, e encontrámo-nos aqui na romaria. Casámos a 26 de dezembro no ano seguinte, já lá vão 40 anos.
Nós aqui dizemos que se vem comprar marido ao São João e depois vai-se vender às Feiras Novas, em Ponte de Lima (que é a romaria seguinte, a 15 ou 16 de setembro). Ou seja, ia-se trocar de namorado. Mas eu e o João não nos trocámos nunca. Não estamos sempre a olhar com sorrisos e boa cara um para o outro – que isso também não tinha piada nenhuma. Zangamo-nos muitas vezes, mas é só para depois fazermos as pazes. Bruxo!
Se eu tivesse de falar da minha aldeia a alguém, eu dizia-lhes para virem, para virem! É uma terra linda, saudável e maravilhosa. Até há lobos e raposas. É tudo muito bonito.
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Arga de Cima, Arga de Baixo, Arga de São João. As três funcionam como uma aldeia só, com um orgulho trazido ao peito como se de um cordão de ouro sobre um traje tradicional do Alto Minho se tratasse. Os habitantes cantam e dançam a alegria de viver na serra, tão perto do mar, tão perto do rio, tão perto de tudo.
O que fazer em Arga (guia prático)
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É motard e bailadora no grupo de danças e cantares de Arga. Há uma dúzia de anos, tinha então 30, deixou de servir às mesas em Lisboa para se dedicar à agricultura e à pastorícia na sua serra natal.