Arga de Cima, Arga de Baixo, Arga de São João. As três funcionam como uma aldeia só, com um orgulho trazido ao peito como se de um cordão de ouro sobre um traje tradicional do Alto Minho se tratasse. Os habitantes cantam e dançam a alegria de viver na serra, tão perto do mar, tão perto do rio, tão perto de tudo.
A serra de Arga é um maciço granítico que se ergue imponente na paisagem do Alto Minho. Tem nove quilómetros de comprimento, cinco de largura, atinge uma altitude máxima de 825 metros e, mesmo que as fronteiras administrativas digam que se espraia por quatro municípios – Caminha, Ponte de Lima, Viana do Castelo e Vila Nova de Cerveira -, a serra de Arga é una e indivisível. Tão una quanta a devoção que os moradores têm ao São João de Arga; tão indivisível quanto o orgulho que os habitantes têm nas suas linhas de água, nos seus maciços de granito, nas suas tradições seculares.
Há várias estradas a serpentear o maciço, mas aquela que dá o nome à serra – e conduz os visitantes ao seu coração – é a chamada estrada das Argas, que une Arga de São João, Arga de Baixo e Arga de Cima. E, mesmo que sintam orgulho especial relativamente ao núcleo em que nasceram – e existe alguma rivalidade, é certo! -, a verdade é que os moradores agem como se fosse uma aldeia só – a União das Freguesias de Arga – e circulam naturalmente entre elas no dia-a-dia.
Arga de Baixo é, ao longo da estrada, a aldeia que fica ao centro, no meio. E a Taberna do Horácio, lá instalada, é o único café em toda a serra. É onde muitos moradores começam o dia e onde vão procurar novidades antes de se lançarem aos seus afazeres. Horácio, dono da taberna, tem 87 anos e o apelido do lugar onde nasceu – Campo do Vale. É ele quem continua a estar atrás de um balcão onde já se vendeu de tudo, de parafusos para bicicletas a medicamentos, de comida para cão a pacotes de arroz. Hoje em dia, a taberna de Horácio Campo do Vale é cada vez mais apenas isso: uma taberna; onde se tiram cafés pela manhã e se servem copos de vinho ou água fresca ao longo de todo o dia.
Apesar da idade avançada, Horácio continua a abrir a porta e a posicionar-se atrás do balcão porque é isso que gosta de fazer: receber pessoas, conversar com elas. Durante algum tempo, teve a companhia do filho Ventura Gonçalves, agora com 48 anos. “Esta taberna está aberta desde os tempos dos meus bisavós”, garante Ventura. Mas agora ele está atrás de outro balcão – o do Centro de Interpretação da Serra d’Arga (CISA), que fica não muito longe dali, na mesma aldeia. E Horácio Campo do Vale mantém-se firme e fiel àquilo que gosta de fazer.
Por volta das sete da manhã abre as portas da taberna, porque nunca se sabe quando aparecem os primeiros clientes. Às 7:30 de uma manhã de sexta-feira tinha três homens à porta – carros estacionados, cafés nos lábios, conversas rápidas sobre as últimas notícias vistas na televisão. Não há muito tempo a perder nem demasiada conversa para deitar fora. A treta põe-se em dia outra hora, mais lá para a tarde, que os afazeres agrícolas aguardam.
Já Helena Gonçalves não tem pressa, até porque sabe que ainda vai esperar. É opção. Tanto ela, com 88 anos, como o marido, com 78, preferem esperar no largo da aldeia do que fazer os outros esperar. Neste caso, os outros são os bombeiros de Caminha que, religiosamente, desde há várias semanas, vêm buscar Helena para fazer fisioterapia a um joelho. José e Helena estão no largo principal de Arga de Cima, e ainda se lhes vai juntar a vizinha Maria Rosa.
As conversas entre vizinhos começam logo de manhã. E, aparentemente, todos gostam de se levantar cedo. Tanto os que têm de ir para o campo – como a Dona Glória e a filha, Lúcia, que em dia em que lhes calha a água na leira vão aproveitar para regar – como José, Helena e Maria Rosa, que conversam sobre as lides do passado enquanto aguardam a chegada da ambulância. “Trabalhei 30 anos na cozinha de um restaurante do antigo Campo das Cebolas, em Lisboa. Chamava-se Petisco Bom. Mas não me deixou nenhuma saudade”, conta Maria Rosa.
Helena também trabalhou em Lisboa. José trabalhou “em todo o lado” – mas quase sempre em França, em obras de construção civil. Quando conseguiram declarar o fim da vida ativa – pelo menos nas declarações fiscais -, escolheram vir passar os dias nas aldeias onde nasceram. Não se pode dizer que são, também, as aldeias onde cresceram porque, na verdade, aos 10 ou 11 anos, finda a escola primária, faziam-se à estrada para ir procurar trabalho – que pela Arga só havia trabalho na lavoura.
“Quando acabávamos a escola, o que dava trabalho aqui? Podia dar o campo, um dia ou outro, mas não era permanente, nem era para miúdos com 12 anos. Nessa altura trabalhava-se de sol a sol, e no verão o sol nasce às seis e pouco e só se põe às nove da noite”, recorda João Afonso, natural de Arga de Cima.
Agora com 68 anos lembra-se de ter trabalhado num restaurante em Almada, durante dez anos, até que nos anos 80 abriu o seu próprio restaurante em Corroios, localidade que já pertence ao Seixal, e onde os trabalhadores da antiga Siderurgia Nacional, da Lisnave, da Fábrica da Pólvora, quase todos alentejanos, apreciavam o almoço preparado com o tempero minhoto que lhe dava Fátima Afonso, mulher de João.
Também Carolina Gomes esteve anos e anos na cozinha de um restaurante em Cacilhas. O marido faleceu há sete anos, passou o restaurante, veio com as filhas para cima. “Aqui estamos melhor, mas havíamos era de ter mais saúde. Eu, se subir um bocadinho, chego cá acima toda abafada”, conta, enquanto limpa uma braçada de cebolas que vai usar para fazer chouriças.
Angelina Cunha, natural de Barcelos, chefe de Divisão na Câmara de Caminha, e agora também ela habitante na serra de Arga, onde comprou uma segunda residência, explica que esta é uma particularidade dos habitantes da região. “Muitos têm restaurantes na zona de Lisboa. Estão lá uns meses, depois voltam. Não estão sempre lá. E também não estão sempre fora da terra”, conclui.
A diretora municipal explica também que os moradores de Arga começaram por ir trabalhar para as carvoarias, ou para a estiva, junto ao porto de Lisboa. Mas a grande maioria começou mesmo nas carvoarias, que depois começaram a vender vinho e a surgirem como tascas. “Depois as tascas foram evoluindo e apareceu a tradição da restauração”.
Ventura Gonçalves tem uma outra explicação para o facto de os proprietários desses restaurantes preferirem empregar gente da terra do que desconhecidos. “Normalmente os patrões levavam pessoas daqui, porque sabiam que o que essas pessoas recebessem seria o que punham na caixa”, argumenta. Ele próprio saiu de Arga de Baixo aos 11 anos, no fim da telescola. Metia-se num autocarro até ao Campo das Cebolas, e depois, de mochila às costas, atravessava o Tejo num cacilheiro com destino a Almada.
“O meu primeiro trabalho foi no Baptista, que era de um conhecido daqui. Depois trabalhei em muitos restaurantes, e fiz de tudo, na cozinha, atrás do balcão, servir às mesas. Depois fui para a tropa, entrei na Força Aérea, mas no final não quis ir mais para Lisboa. Voltei para cá, e é aqui que eu quero estar. Em mais lado nenhum”, sublinha.
Terra de lobo
Ventura tem agora 48 anos, e garante conhecer bem a serra. Não só pelo trabalho que faz no Centro de Interpretação da Serra d’Arga, onde está desde 2009 e para quem já organizou muitas atividades de educação ambiental e acompanhou muitos visitantes em trilhos, mas também por causa de ser caçador.
“Gosto da serra de Arga toda, senão não estava aqui. É preciso gostar para estar aqui, e eu gosto muito. Como sou caçador, o sítio onde mais gosto de estar é lá no topo da serra, na zona da Porta do Lobo, perto da Senhora do Minho e ver nascer o sol. Ver o despertar da freguesia, da aldeia, dos galos a cantar. Do topo da serra vemos tudo. É uma coisa única, diferente”, partilha.
O nome Porta do Lobo não é nomenclatura a evocar o passado – a serra de Arga ainda é território de lobos e é, talvez, o lugar mais próximo do mar que eles frequentam em toda a península. De vez em quando, lá vem uma notícia de um assalto a um galinheiro ou de uma ovelha desaparecida sem deixar rasto – mas, quem sabe, até serão mais as raposas do que os lobos os responsáveis.
A verdade é que ninguém arrisca muito para os apanhar, para os ver. Quem tem animais – e ainda há muitos a pastar na serra, apesar de já não andarem por ali as mais de duas mil cabeças que chegaram a apascentar as suas encostas – preocupa-se em metê-los em cortes protegidos durante a noite e em acompanhá-los ao pasto durante o dia. Não vá o diabo, ou melhor, o lobo tecê-las.
Nem é pelo valor que se perde do animal – assegura Sandra Gonçalves, 42 anos, pastora há dez. “Uma ovelha velha é vendida por uns 20 euros. Não é esse o maior prejuízo. O problema é que algumas são de estimação”, assegura, lembrando-se do Piças, um dos seus bodes. “Eu vinha ver onde eles andavam. Assobiava, chamava e ele vinha. Mandava-o para ao pé das ovelhas, e ele ia. Acabou por morrer e eu fiquei triste”, explica, assegurando que há cabeças de gado que são bem mais do que isso, são quase família. Sandra lembra-se também quando lhe morreu, de velhice, uma das suas ovelhas preferidas. “Morreu a 11 de março de 2013, essa data ficou-me marcada. Quando nos morre alguém sabemos a data, não é?”, questiona.
Hoje tem 41 ovelhas e carneiros, com quem passa, diariamente, pelo menos duas a três horas. “Antes deitava-as muito para a serra, para a costa. Mas como temos de andar sempre com elas, por causa dos lobos, vão ficando mais por aqui, por estas leiras perto de casa”, explica.
O rebanho de Sandra Gonçalves contribui para manter viva a paisagem da serra e equilibrado um ecossistema onde sobressai, em termos de paisagem, um mosaico de campos cultivados (vulgo lameiros) que se espraiam ao longo das muitas linhas de água que tombam desde o topo da serra. Os prados coexistem com os matos de tojo e urze, os matos alternam com bosques naturais. Mas a serra, e as suas encostas, são particularmente reconhecidas – e reconhecíveis – pelos afloramentos rochosos onde pontua o caos de blocos graníticos. É particularmente interessante perceber como a natureza se equilibra em posições que parecem desafiar a lei da gravidade.
Algumas das casas das aldeias surgem ao lado desses blocos. As pedras de uma casa e os muros foram mesmo o que apaixonou Mário Rocha, um artista plástico nascido em Perre, Viana do Castelo, mas um habitual frequentador da serra de Arga. Acabou por comprar uma ruína, que depois transformou em casa de fim de semana, e onde depois inaugurou a Arte na Leira, uma mostra de arte que todos os anos, desde 1999 e sem interrupção, leva à serra milhares de visitantes para apreciarem artes plásticas assinadas por autores de todo o mundo.
“Talvez por estar no meio da natureza as pessoas estejam mais disponíveis, mais sensíveis a apreciar arte”, arrisca Mário Rocha, que desde há três anos assentou morada definitiva em Arga de Baixo. Por causa da tranquilidade, do sossego, e da inspiração que lhe traz o espaço, admite.
A natureza envolvente da Arga é muito fotogénica, mas o melhor que tem a serra, concorda Ventura Gonçalves, é mesmo a qualidade de vida que ela proporciona. “Estamos perto de tudo. A 18 quilómetros de Caminha, de Ponte de Lima, de Vila Nova de Cerveira; temos a A28 de um lado e a A27 do outro. E temos paz. Muita paz. Eu tenho vários cães, um cavalo, ar puro”, enumera.
O funcionário do CISA garante que não é do bairrismo de quem nasceu na serra que está a falar. “É verdade que eu nasci aqui, na casa da minha avó, que ainda ali está de pé. E as raízes nestas coisas são muito importantes. Ou se gosta ou se detesta. E eu gosto muito”, explica. Mas Ventura garante que há muitos mais apaixonados pela serra, como ele, e que, provenientes de vários lugares e países do mundo escolheram viver na serra de Arga “por causa da qualidade de vida e da proximidade com vários centros”. Mário Rocha confirma que se sente perto de tudo o que precisa – e longe da confusão que começou a detestar.
“Desde que se tenha um trabalho, um rendimento ou que se tenha uma horta para cultivar, que aqui dá para cultivar de tudo, pode-se viver aqui perfeitamente bem”, assegura Ventura Gonçalves. O único aviso que deixa é para o inverno – “chega a estar um mês seguido a chover”.
O milagroso São João de Arga
Cada povoação tem a sua capela e o seu santo padroeiro, cada santo tem a sua festividade. À boa maneira do Alto Minho, as festas e romarias fazem-se com flores e andores, com missas e sermões, com bandas de música, bombos e concertinas, e com ranchos folclóricos e trajes tradicionais. A romaria de São João de Arga, foi eleita como uma das sete maravilhas da Cultura Popular na última edição do concurso das Sete Maravilhas de Portugal.
“Empenhei-me muito na eleição. Fomos a todo o lado, desde Bragança ao Alentejo, mas o São João e o Santo Aginha acompanharam-nos sempre”, diz Fátima Afonso, devota do santo e uma das mordomas que, a cada quatro anos, fica com a responsabilidade de abrir a porta a quem passa e a quem pede para visitar o Mosteiro de São João de Arga, para dar uma esmola ao Santo e outra ao Diabo.
“Faz parte da tradição”, assevera Fátima Afonso, que diz que o Mosteiro de São João de Arga é um sítio único não só na serra mas em todo mundo. “É mágico. É único”, garante a mordoma, que passou o último ano a abrir as portas aos turistas e aos devotos, a vender-lhes chiripiti (aguardente com mel) ou a chegar-lhes ex-votos para pagarem as suas promessas.
O Mosteiro de São João de Arga foi requalificado em 2015, e só então passou a dispensar o gerador que todos os anos era necessário para aguentar as muitas solicitações de energia que pediam tantas barraquinhas de comes e bebes, e desgarrada de concertinas pela noite dentro. Os dias da romaria são, para Fátima e o marido, para os outros mordomos da festa e para todos os que são da terra e por isso têm a chave de um dos 20 “quartéis” que ladeiam o mosteiro, dias de muito trabalho. É, porém, trabalho que se faz com satisfação, para “honrar com festa e alegria”, a paz e a saúde que ganham o ano todo.
Os quartéis são uma espécie de celas espalhadas num edifício que circunda a Capela de São João e lhe limita o adro. São distribuídos aos moradores da terra, que os usam para guardar pertences ou para descansar nas noites da romaria. Desde que o mosteiro foi requalificado, também são alugados ao fim de semana. “Mas só têm chão e paredes despidas”, avisa João Afonso. O único quartel que está “mobilado” é onde a Comissão Fabriqueira guarda os produtos que vende no mosteiro o ano todo.
“O que eu mais gosto de viver em Arga é de poder vir aqui ao mosteiro, e sentir esta paz. São João devolveu-me a saúde e a alegria”, conta Fátima, que admite ter-se livrado de uma depressão desde que deixou a cozinha do restaurante em Corroios para vir viver de vez em Arga de São João. “Daqui gosto de tudo! Do ar puro e das pessoas, que também são muito boas. Há poucas pessoas, mas as que há… fazemos muitos convívios, são pessoas que são boas para nós e para toda a gente”, assegura.
O Grupo de Danças e Cantares Genuínos da Serra de Arga
A freguesia não tem, de facto, muitos habitantes. E no último censos, confirmou-se, voltou a perder gente. Os moradores da União das Freguesias de Arga são agora 159. Naturalmente, todos se conhecem, e muitos fazem parte da Associação de Danças e Cantares Genuínos da Serra de Arga, um grupo formado há 31 anos, e que procura agora renascer da paragem forçada imposta pela pandemia.
É o grupo onde canta Fátima, e onde dança Sandra Gonçalves. E onde Adriano Alves Gomes ensaia a coletividade que, nos meses quentes de verão, com toda a gente na serra, chega a ter 50 elementos. “Primeiramente, começámos como grupo de cantares, o fundador do grupo era o principal tocador, mas isto há já 31 anos. Depois pensámos em montar um grupo de danças. E o objetivo era sempre o mesmo: fazer uma recolha das danças e cantares genuínos da Serra de Arga. É esse o nosso nome, não vamos recolher danças nem cantigas a mais lado nenhum”, explica Adriano Gomes. Agora com 69 anos, Adriano foi um dos primeiros a dançar. “Éramos nove pares. Eu fui sempre o mais velho e orientava as danças. E dancei até há quatro anos, mas agora parei por causa do joelho. Já não posso”, explica.
O grupo de Danças e Cantares é quase uma família. Que já correu o país de Norte a Sul – e já foi muitas vezes a Espanha também. “Não fomos mais longe porque o pessoal aqui tem gado, e não pode ir para fora. Convites tínhamos nós, para França, para a Madeira. Mas acabávamos por não ir, porque muita gente não tinha como tratar dos animais”, explica o ensaiador.
Adriano também é agricultor. Como quase todos os homens na freguesia, fez uma incursão a Lisboa para trabalhar na restauração, mas acabou por voltar para ajudar o sogro na lavoura. Agora são o filho e o genro que o ajudam a ele. “Temos tratores, lavramos terras, temos galinhas, porcos. Trabalhamos todos”, explica.
Natural de Arga de Cima, vive agora em Arga de São João, a aldeia da mulher. Se tivesse de convencer alguém a mudar-se para Arga, onde Adriano tem a felicidade de ver toda a família a viver, falaria do “sossego”. “Toda a gente procura isto. Se mais casas houvesse para vender, mais casas iam. As pessoas gostam disto aqui”, afiança.
Ele, claro, também gosta. Levanta-se de manhã cedo e vai “tratar da pitarada, das galinhas”, que a mulher foi operada à vista e não pode lá ir. “Depois a minha neta fica com a avó, e eu vou com o gado para o pasto. Ou então vou para as colmeias, já tenho mais de 60. É onde eu gosto de passar os meus dias. Durante a pandemia, era lá que me podiam encontrar”, garante.
A pandemia não travou os afazeres agrícolas, mas paralisou a atividade da Associação de Danças e Cantares, que era onde todos se juntavam. Deixaram de organizar as festas na aldeia – só nas Argas são quatro por ano (duas em Arga de Cima, uma em Arga de Baixo e uma em Arga de São João).
Carlos Costinha, presidente e cantador no grupo confirma que a organização do calendário era, muitas vezes, um desafio. “Às vezes chegávamos às 2:30 da manhã de um sítio, e às 3:00 já estava combinada a viagem seguinte, para arrancar para Serpa, por exemplo”.
É dessas maratonas dentro de uma camioneta, e dos convívios que proporcionam os festivais, que Inês tem saudades. “Gostava muito dessas viagens e de dançar nos festivais. Era sempre muito divertido”, explica. A conjugação no pretérito imperfeito tem a ver com as dúvidas sobre quando é que a pandemia desaparece e a normalidade regressa definitivamente.
É uma das mais novas a dançar no grupo – tem agora 17 anos. Estuda em Caminha, apanha todos uns dias um autocarro municipal para a levar à escola, e já começou a pensar no que pretende fazer da vida. “Eu gostava de psicologia ou de recursos humanos, mas as médias agora estão todas tão altas, vamos lá ver se vou conseguir. Até posso ir estudar para Lisboa, mas o que eu gostava mesmo era depois vir para Caminha, trabalhar para a minha terra”, avisa.
A mais nova do grupo tem apenas oito anos. Chama-se Beatriz, é filha de Maria Gomes, cantadeira, e neta de Adriano, o ensaiador, e é a mais militante do grupo. Maria diz que a filha Beatriz adora o rancho, vibra com tudo o que ao grupo diz respeito, tem três ou quatro trajes, às vezes nem uma virose ou uma febre a convencem que é melhor ficar em casa.
Envergar um traje tradicional é um dos maiores orgulhos da aldeia – e isso aprende-se de menina. O dos homens é todo igual – calça preta, camisa de linho, faixa vermelha. O das mulheres assenta numa policromia geométrica onde o fundo preto é bordado a vermelho, roxo, azul e verde. O traje à lavradeira é o mais utilizado: chinelas pretas e baixas, meias lavradas até ao joelho, saia com forros bordados, avental, algibeira, camisa à lavradeira em linho, colete, dois lenços à lavradeira e dois ou três saiotes de linho ou estopa. E ao pescoço e nas orelhas ouro. Muito ouro.
Se a continuidade do Grupo de Danças e Cantares depender do entusiasmo de Beatriz, que convenceu a mãe a adiar o médico para poder tirar do armário o traje de lavradeira que lhe deu a avó, adivinha-se vida longa e festa rija. Ao som da concertina de Ricardo, da sanfona de Diamantino, das castanholas de José “Moustache” e da voz de toda a gente.
Já Ventura Gonçalves, esse, vai continuar a esperar pelo dia em que pode subir ao topo da serra, e ver o sol a nascer de um lado e a pôr-se do outro. “Um dia bom aqui na serra é isso mesmo: ver o sol nascer do lado de Timor, pôr-se do lado do mar, e tudo o que acontece pelo meio”. Do topo da serra vê-se o mundo. Pelo meio pode estar uma passagem na taberna do bisavô, do avô, do pai – e não há de ser pelo desinteresse de Ventura que ela fecha.
A única taberna da estrada da serra de Arga há de continuar a servir café aos habitantes e aos visitantes. E, à entrada, um painel assinado por Mário Rocha, o novo freguês da aldeia, a dar as boas-vindas.
Veja também o guia prático com o que fazer em Arga.
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O que fazer em Arga (guia prático)
Guia com tudo o que precisa saber para visitar Arga, no município de Caminha, em plena serra de Arga. Inclui o que fazer nas aldeias de Arga de Cima, Arga de Baixo e Arga de São João – atividades, trilhos e passeios -, onde ficar hospedado, mapas e contactos úteis.
Mário Rocha, o pintor
Numa subida à serra e após uma visita ao mosteiro de São João d’Arga, Mário Rocha comprou uma casa em ruínas. Poucos anos depois, começou a organizar a Arte na Leira no espaço que era a sua casa de férias – uma mostra de artes plásticas anual já com 23 edições -, mas mudou-se para Arga de Baixo definitivamente e diz que é na serra que se sente um peixe na água.
Fátima Afonso, a mordoma
Trabalhou 31 anos na cozinha de um restaurante em Corroios, onde ganhou algum dinheiro e uma depressão. Hoje diz ter a principal fonte de alegria na responsabilidade de servir São João de Arga, como mordoma no mosteiro.
Sandra Gonçalves, a agricultora
É motard e bailadora no grupo de danças e cantares de Arga. Há uma dúzia de anos, tinha então 30, deixou de servir às mesas em Lisboa para se dedicar à agricultura e à pastorícia na sua serra natal.