É motard e bailadora no grupo de danças e cantares genuínos da Serra de Arga. Há uma dúzia de anos, tinha então 30, deixou de servir às mesas em Lisboa para se dedicar à agricultura e à pastorícia na sua serra natal. Eis o seu testemunho.
“Para estar aqui todo o ano é preciso gostar muito da serra”
Sou Sandra Maria Gonçalves, tenho 42 anos, nasci em Viana do Castelo mas estou registada em Arga de Cima. Fiz aqui a escola primária e logo de seguida fui para Lisboa, trabalhar na hotelaria. Primeiro ia só nas férias, mas depois fiquei por lá algum tempo. Mas há uma dúzia de anos regressei às origens, e agora dedico-me à agricultura e ao pastoreio.
Entendi que, enquanto os meus pais estiverem vivos e puderem precisar de mim, é aqui que eu devo estar. As flores depois não lhes vão dizer nada. Se uma pessoa realmente gosta das outras pessoas, e quer o bem delas, deve mostrar isso enquanto estão vivas. Por isso aqui estou. Enquanto precisarem de mim, é esta vida que eu quero. Depois logo se vê.
Não sou filha única, tenho uma irmã um pouco mais velha do que eu. Ela vai fazer 45 anos em novembro e está a viver em Lisboa. A minha irmã tem uma filha – que é a minha afilhada e a minha alegria. Gosto quando ela está cá, de férias, é sempre bom. Quando era mais pequena não queria vir para cá. A primeira vez que começou a vir, com dez anos, eu nem queria acreditar. Primeiro, vinha no verão. Nessa altura há cá mais gente. Vem gente de Almada – e de outros lados! – para cá de férias. Ela acabou por gostar, e vem sempre que tem oportunidade.
Um dia em Arga de Cima (com as ovelhas)
Os meus dias aqui são passados com os afazeres do campo. Um dia normal começa com a saída com as ovelhas pela manhã. Isto se não estiver a chover, porque se chover eu não gosto de as molhar. Mas normalmente passo a manhã com as ovelhas, estou com elas no mínimo duas ou três horas e depois vou almoçar a casa.
Às vezes isto é chato, e também me canso de estar muitas horas só a olhar para a ovelhas. Se trouxermos alguma coisa para fazer, o tempo passa mais rápido. E se formos a ver, na agricultura há sempre coisas para fazer: cegar erva, fazer um rego, cortar umas silvas. Às vezes, trazemos o motor para regar o milho, e faço as duas coisas. Rego, mas tenho de estar sempre a olhar para as ovelhas, senão elas fintam-nos. É sempre assim.
As ovelhas habituaram-se aos meus assobios. Assobio-lhes para tudo. Mesmo quando é para as deitar na corte eu assobio. E elas sabem o que eu quero dizer. Agora vou assobiar porque há uma que se está a afastar e quer ir para o milho. Eu assobio, ela sabe que sou eu e normalmente pára.
Ontem fui arrancar batatas de manhã, levei as ovelhas para uma leira que temos pegado, e fomos arrancando. Mas depois as ovelhas percebem que já estamos ali há muito tempo… metem a cabeça por baixo da rede, e lá vão elas. E depois passando uma… o modo das ovelhas é este: passa uma, passa tudo!
À tarde, ocupo-me com os trabalhos da altura. Se for época de semear milho, ou feijões, batatas… Os meus dias são sempre diferentes. Certo é as ovelhas saírem todos os dias. Não há férias, dias santos, nada. Quando não saem, porque chove, ficam na corte. Mas temos na mesma de lhes botar comida.
Depois é preciso jogar com as regas, que normalmente têm dias definidos. Aqui temos um sistema de regadio que está atribuído a vários habitantes. Há uma roda, como nós chamamos. Nós, por exemplo, vamos ter água amanhã. Vou regar o milho ou os feijões, ou algumas hortaliças que temos para mimos em casa, como o feijão-verde.
A vida aqui na aldeia é desafiante. Os trabalhos são bastante desafiantes. O que é mais chato, mesmo, é estender o estrume quando é a altura de lavrar as leiras. Tirar das cortes até se tira bem, mas estender custa mais, porque é tudo manual.
Eu aprendi tudo com a minha mãe, a minha tia e os vizinhos. Praticamente todos têm agricultura, e antigamente ajudávamo-nos mais uns aos outros. Agora é mais salve-se quem puder. Mas não sinto falta nenhuma de Lisboa, e nunca me arrependi de ter vindo. Foi uma escolha que fiz, não me arrependo.
O melhor de viver na aldeia é esta liberdade, o ar puro que temos. Lá em Lisboa, uma pessoa trabalhava à sombra. Aqui trabalhamos ao ar livre, andamos ao sol e à chuva, mas acaba por ser melhor.
Eu gosto de fazer de tudo um pouco e não muito tempo a mesma coisa. Uma das coisas boas que temos aqui é isso: se não se fizer hoje, faz-se amanhã. Essa é uma das vantagens de gerir [o tempo] na agricultura. Num restaurante temos de estar aquelas horas, haja clientes ou não. Aqui não. No outro dia, um sábado, era para ir arrancar cebolas. Mas tinha acabado de arrumar tantos fardos de palha de manhã, estava tão cansada que disse à minha mãe: “deixa lá as cebolas”. E fui arrancar ao outro dia.
Na verdade, isto é um ginásio um bocadinho duro. Faz amanhã oito dias, para lhe dizer a verdade, nem dormi de noite, de tão cansada que estava. Foi quando andei a arrumar fardos. Ao todo preparei 402 fardos de feno de erva seca para o inverno. Fiz tudo sozinha, carregar e arrumar. Carregar não é o problema; o problema é doerem-me as mãos.
Às vezes este é um trabalho pesado e muito mal remunerado. Enquanto que num outro trabalhinho uma pessoa chega ao fim do mês e tem um ordenado direitinho… aqui depende, mas vai dando para viver. Isto é muito bonito para vir passar férias; mas para estar aqui todo o ano é preciso gostar muito da serra.
Eu gosto. E aqui tenho dias felizes. Tendo saúde, uma pessoa está bem. Há sempre forma de tirar um bocado, um dia. Faço muitos passeios com a minha mota. Combinava em vez de sair às sete, sair às oito ou nove para deixar o gado todo pronto e facilitar a vida à minha mãe.
No ano passado fiz vários passeios. O maior foi a São João da Pesqueira; fizemos a Estrada Nacional 222 e foi espetacular, conhecemos pessoas muito porreiras. Faço estes passeios com amigos. Ainda está para nascer o grupo, estamos a estudar o nome. Mas vai ser Amigos da Serra d’Arga, ou assim. É tudo gente daqui, de Covas, de Cerveira e das Argas – e de Ponte de Lima. Por enquanto somos poucos, mas somos bons. Para já sou a única a conduzir motas, mas vão mais raparigas nestes passeios. No ano passado foram mais duas, e acaba por ser uma coisa fixe.
Também ando no grupo de Dança e Cantares. Danço pouco e cada vez menos, que estou a ficar velha. Não há muita gente da minha idade. Uns mais velhos, quatro ou cinco anos, outras mais novitas; mas jovens na aldeia há poucos. Somos poucos.
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