Numa subida à serra e após uma visita ao Mosteiro de São João de Arga, Mário Rocha comprou uma casa em ruínas. Poucos anos depois, começou a organizar a Arte na Leira no espaço que era a sua casa de férias – uma mostra de artes plásticas anual já com 23 edições -, mas mudou-se para Arga de Baixo definitivamente e diz que é na serra que se sente como um peixe na água. Eis o seu testemunho.
“No meio da natureza, talvez as pessoas sejam mais sensíveis à arte”
Nasci em 1954 em Perre, uma aldeia de Viana do Castelo. O meu pai tinha uma oficina de serralharia, onde eu comecei a ajudar muito cedo. Comecei a pintar para aí com uns 12 anos. Tenho dois irmãos, eu sou o do meio – e os do meio são sempre os prejudicados, apanham dos dois lados. Eu era bom aluno, tirava notas de 19. E fui para a Escola Artística Soares dos Reis, e depois queria ir para Belas-Artes, mas o meu pai disse-me que não dava para continuar mais.
O meu irmão mais velho já andava no Instituto da Universidade do Porto, a estudar, e o dinheiro não dava para tudo. E para mim, que queria ser pintor, o meu pai dizia: o que vais fazer? É melhor arranjares outra coisa, para isso não tenho dinheiro…
Eu respondi ao meu pai que, se o problema era dinheiro, ia para a oficina trabalhar. E fui; estive lá três meses a trabalhar com ele. Entrava às oito, saía às seis, todos os dias, certinho. E lá o convenci a deixar-me continuar a estudar. Nessa altura cheguei a morar num pombal na Rua de Santa Catarina. É verdade, eu estava a dormir num pombal quando se deu o 25 de Abril. Lembro-me que tinha de passar por dentro da casa da senhoria, descer para o quintal e só então é que chegava ao pombal, que a dona transformou num quarto.
Depois de tirar o curso, arranjei um trabalho na sala de desenhos dos Estaleiros de Viana do Castelo. Estive lá três anos, depois fui para a delegação de Leixões, também para a sala de desenho. Trabalhei muito. Morava na Rua do Falcão, no Porto, e às 8h00 lá estava eu em Matosinhos para abrir a delegação. Ainda concorri a dar aulas numa escola secundária de Matosinhos e estive lá uns anos. Mas morei quase sempre no Porto. E fiz de tudo. Até feirante fui.
O pai da Flor, a minha ex-mulher, tinha um armazém de móveis que vendia para todo o país. Ele tanto me chateou para tomar conta daquilo que deixei de dar aulas e fui para lá. Estive lá cinco anos, fartei-me de ganhar dinheiro, mas não era aquilo que eu queria.
Passei os móveis, meti-me a fazer formação em cerâmica. Comprava coisas em Barcelos, aprendi lendo e experimentando, depois comprei um forno. Fiz muitas coisas na vida, mas sempre andei dedicado a isto, à arte. À pintura e à cerâmica. E andava lá pelo Porto, a expor aqui e ali, sempre a trabalhar muito.
Das feiras à Serra de Arga
Vim parar à Serra de Arga, e a esta casa, um bocadinho por acaso. Vim visitar o São João de Arga num dia 28 de agosto, um dos dias da festa – e que foi o dia em que os meus pais casaram em Perre. Vinha do Porto, passei aqui de carro, e isto estava à venda. Apaixonei-me. E comprei logo de seguida. Chamaram-me maluco, por comprar um monte de pedras – até o telhado da casa estava no chão. Mas foi barato na altura.
Depois não mexi nisto durante cinco ou seis anos. Fui deixando estar. Ninguém me levava as pedras, o terreno também não. Eu vinha até aqui, sentava-me, olhava, pensava o que iria fazer disto, enfim, foi um divertimento. O meu pai gostou da ideia, mas no início ainda disse “tens ali muito dinheiro para gastar”.
Até que depois lá começámos a reconstruir isto. Eu, o meu pai, o meu tio. Começámos a pôr o telhado para poder vir cá ao fim de semana, fazer uns cozidos à portuguesa.
Quando dizia aqui aos meus vizinhos que era artista plástico, não entendiam. Então eu dizia que era pintor. Pensavam que eu era pintor da construção civil. Nas escolas não há artes plásticas. A música é muito mais fácil chegar às pessoas, está em todo o lado. Mas a pintura não, e não se pode andar com os quadros atrás, para mostrar às pessoas.
Então, lembrei-me de fazer aqui uma exposição. No primeiro ano, em 1999, fiz uma mostra só com trabalhos meus e já juntei aqui muita gente. As pessoas gostaram, e perceberam que a minha profissão era de pintor de quadros. Nessa altura ofereci um cabrito assado à Serra de Arga, que as pessoas só aparecem quando há comidinha e um bocado de vinho.
No segundo ano, comecei a convidar pintores meus amigos, depois uns chamam outros. Faço alguma curadoria, mas não tenho um critério rígido. Já tive cá muitos artistas, de muitas nacionalidades. Alguns participam todos os anos. Nos primeiros anos, a mostra demorava só uma semana, depois começou a ter mais gente, comecei a alargar, passou para 15 dias, passou para um mês. Agora já são cinco semanas, e a Arte na Leira já está nas agendas da região. Já sou quase obrigado a fazer isto. Meti-me nelas, tenho de ir até ao fim.
O objetivo da Arte na Leira é também trazer a arte para um meio rural, em contacto com a terra. Nos grandes salões é muito difícil fazer isso. Às vezes a gente acanha-se de entrar, porque vê tudo tão envernizado, direitinho, certinho, e acaba por ter receio. Aqui consegui uma coisa boa, fiz sempre tudo ao ar livre. Fui aumentando, comprando uma leira, mais uma ruína, mais outra, depois o coreto… O que é certo é que neste ambiente, no meio da natureza, talvez as pessoas sejam mais sensíveis e apreciem melhor a arte. A mim perguntam-me porque estou aqui, porque fiz isto ou aquilo, o que quer dizer este trabalho ou aquele. E eu adoro isso.
Se eu não fizesse a Arte na Leira, as pessoas daqui da zona não iriam visitar a exposição. Aqui vêm pela exposição, mas também pelo espaço exterior, pela aldeia.
Mudei-me para Arga de Baixo de vez em 2019. Vim para a serra ainda antes da pandemia. Morava junto ao Palácio do Freixo, no Porto, tinha lá uma casa muito espaçosa, com o atelier por baixo. Mas separei-me, a minha ex-mulher ficou com a casa, e eu fiquei com isto aqui. Pode valer muito menos, em termos financeiros; mas eu quis mais isto aqui do que aquilo lá.
Gosto deste sossego. E de receber amigos. E os meus filhos. Ele tem 35 anos, é arquiteto. Ela tem 40 anos, é psicóloga. Gosto de ter a casa cheia. Gosto de cozinhar, de beber um copo com os amigos. Já cá recebi muita gente. Nunca faço muitos planos, não gosto de programar muito porque pode correr mal. Aproveito o que aparece.
Este silêncio e este sossego é o que eu mais aprecio. Uma vez ficou a dormir cá em casa um pintor amigo meu – um dinamarquês que agora até comprou uma casa em Vila Praia de Âncora. Ele estava aqui sozinho, e telefonou-me às três da manhã. Dizia que não se ouvia nada de nada, e perguntava se isso era normal. Eu disse-lhe: “É, é! Desliga mas é o telefone e vai dormir. Aproveita!’
Durante as cinco semanas da Arte na Leira estou sempre aqui, a receber as pessoas. Tenho recebido todos os anos entre 2.500 a 3.000 pessoas. E isso dá-me muito gozo, saber que essas pessoas sobem a serra para vir ver uma exposição de arte. Já não vem só gente daqui, mas de todo o lado. Já me apercebi que há gente que vem todos os anos – faz parte das férias em família.
E eu cá estou para as receber. De manhã, custa mais. Que eu abro isto às 9:00 e às vezes pergunto-me: “Mas para que é que eu me fui meter nisto?”. Mas passada meia hora já está tudo bem.
Agora já não quero sair de Arga. Tenho algumas ideias para isto [a Casa do Mário]. Uma delas é construir uma espécie de bunker, uma galeria de arte a todo o comprimento, com uma entrada para não se notar. Mas não tenho dinheiro. Vou continuar por aqui a sonhar e a fazer o que gosto de fazer, na pintura e na cerâmica. É aqui que sou como um peixe na água. No meio da serra.
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Arga de Cima, Arga de Baixo, Arga de São João. As três funcionam como uma aldeia só, com um orgulho trazido ao peito como se de um cordão de ouro sobre um traje tradicional do Alto Minho se tratasse. Os habitantes cantam e dançam a alegria de viver na serra, tão perto do mar, tão perto do rio, tão perto de tudo.
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Fátima Afonso, a mordoma
Trabalhou 31 anos na cozinha de um restaurante em Corroios, onde ganhou algum dinheiro e uma depressão. Hoje diz ter a principal fonte de alegria na responsabilidade de servir São João de Arga, como mordoma no mosteiro.
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É motard e bailadora no grupo de danças e cantares de Arga. Há uma dúzia de anos, tinha então 30, deixou de servir às mesas em Lisboa para se dedicar à agricultura e à pastorícia na sua serra natal.