O nome artístico é uma homenagem à mãe. Alcina Leite faz muitas coisas com as mãos, mas entre elas não estão sapatos. Estão pinturas, em telas e em pedra, esculturas, várias peças de artesanato. Gosta de pintar desde que se lembra, mas só há quatro anos é que se aventurou a assumir a arte, a mostrar o trabalho, a vender em nome próprio. Tem um atelier no meio da aldeia de Pitões das Júnias, e diz que não conseguiria ser artista em mais lado nenhum. É a natureza que inspira a sua arte. Eis o seu testemunho.
“Se eu estivesse noutro sítio não seria a artista que sou”
Chamo-me Alcina Leite, sou a segunda mais nova entre dez irmãos. Os meus pais emigraram para Espanha, mas depois voltaram para aqui, para Pitões das Júnias. E eu já nasci aqui em Pitões. Depois eles emigraram para França, e eu fui para lá pequenina, mas decidiram regressar quando eu tinha oito anos, e para mim foi muito, muito complicado. Acho que para os meus irmãos também. Não consegui adaptar-me, naquela altura não era como agora.
Aos 14 anos fui para França, mas já fui para a zona de Paris, arranjar trabalho. Eu queria estudar ao mesmo tempo, queria fazer um curso de arte. Mas acabei por não conseguir, até porque não tínhamos papéis. O problema ficou resolvido quando entrou a Comunidade Europeia, e eu acabei por me adaptar lá.
Eu acho que esta vontade de criar vem do meu pai. Ele era carpinteiro e já desenhava móveis. Tinha muito jeito. E na verdade acho que todos os meus irmãos têm de certa forma uma orientação artística. A minha foi sempre para a pintura. Acho que gosto de pintar desde que me lembro. Nunca tive nenhuma formação na área, foi sempre tudo por instinto.
E nunca pensei que algum dia ia voltar para Pitões das Júnias, mas depois tive filhos. O pai deles é francês e, quando nos separamos, eles eram pequeninos e acabei por querer vir criá-los para aqui. Foi uma mudança radical, mas a vida lá era um bocado insegura e eu queria criá-los noutro ambiente. No início tinha medo que eles aqui não tivessem o que tinham lá. Mas acho que acabaram por ter muito mais. As pessoas aqui são como a família. Toda a gente se conhece. Regressei há 14 anos e os meus filhos já não são pequeninos – têm agora 18 e 20 anos.
Em Paris havia muitos sítios que eu gostava, museus por todo o lado, muita arte, muita vida. Mas afinal acabou por ser aqui que eu pude finalmente assumir este meu gosto por pintar, por fazer estas coisas. Acho que foi a própria Natureza que fez com que eu encontrasse o meu caminho também na arte, porque é a Natureza que me dá os materiais.
Eu sempre gostei de pintar, mas nunca me assumia como uma pintora, não sabia bem o que fazer com uma tela. Eu já pintei muitos quadros, até faço alguns por encomenda, mas na verdade o que mais faço é pinturas em pedra. Comecei a pintar em pedras que recolho nas caminhadas que faço.
Eu assino as minhas peças com o nome de “A Sapateira”, e esse nome é uma homenagem à minha mãe. A Sapateira era como chamavam a minha mãe, era o nome de família dela. E foi sempre ela quem me dizia que eu devia fazer isto, pintar. Eu trabalhei em restaurantes, fui pasteleira muitos anos. E às vezes a minha mãe dizia-me: “ó filha deves tentar ir fazer o que tu gostas, outra coisa”. E eu acabei por fazer-lhe a vontade, mas só depois de ela ter falecido. Então “A Sapateira” é a forma que eu encontrei de a homenagear.
Abri este atelier há cerca de quatro anos. Demorei muito a assumir a minha arte e o meu trabalho. Não gosto de me expor. Cheguei a fazer duas exposições, mas custa-me imenso mostrar o meu trabalho. Então quando comecei mesmo a vender, pior ainda. Custava-me vender, fazer preço. Mas a verdade é que é este mesmo o meu trabalho. Assumi, coletei-me e agora dedico-me só a isto. Faço o que gosto e isso é o mais importante. Acho que nasci para isso, para transformar objetos. É o que eu gosto mesmo de fazer.
Às vezes dizem-me que eu devia ter o ateliê noutro lado, estar a trabalhar noutro sítio. Mas se estivesse noutro sitio não fazia nada disto, não seria a artista que sou. Eu em Paris não estaria nunca a fazer o que faço aqui. Porque justamente o que me inspira é estar nesta aldeia, o que me inspira é a Natureza, os animais, olhar para as coisas, fazer caminhadas. São eles que me dão vontade de os representar. Até o céu está sempre a mudar. Esta paisagem, esta atmosfera, estes sons, são postais vivos. Tudo me inspira, muito.
E a Natureza também me dá a matéria de que preciso. Porque eu trabalho muito com reciclagem, apanho pedra, madeiras velhas. Não imagino que conseguisse fazer isto em qualquer outro lugar. Eu gosto de pintar paisagens, a aldeia. Gosto de pintar animais. Lobos. Mochos. Ouriços. Todo o tipo de animais. Há pessoas que me pedem para representar os animais deles em pedra. E eu fico feliz por ter clientela que também gosta de animais como eu.
Eu tenho muitos animais. Recolho muitos, trago tudo para casa. Tenho gatos, cães, um cavalo, um burro, duas cabras… Ando à volta dos animais a manhã toda. Depois vou fazer o almoço e só depois disso, sim, é que me dedico ao meu atelier e às minhas coisas.
Neste momento o que quero mais é paz. Por isso estou no sítio certo. O melhor de viver em Pitões é esta paz. Acaba por se ter tudo aqui. Acabamos por cultivar as nossas coisas, sabemos que estamos a comer produtos de boa qualidade… E há certas coisas que se sentem na cidade e aqui não. Por exemplo, o Covid. Embora tenha chegado cá também, aqui uma pessoa sente-se sempre mais protegida. Às vezes temos a impressão de viver numa bolha. Eu acabo por me sentir menos só aqui, porque comunica-se mais, mesmo com pessoas de fora que nos vêm visitar.
Eu lembro-me de quando estava em Paris, era raro o dia em que eu falasse com alguém. Aqui há sempre alguém. Sei que mesmo aqui ao redor há muitas aldeias a morrer. Mas Pitões é mesmo uma aldeia com muita vida, é uma aldeia onde ainda se vive muito em comunidade. Tudo isso é inspirador.
E quando as pessoas passam pelo meu atelier, me procuram e vêem o meu trabalho e levam uma peça eu fico muito feliz. Porque acaba por levar um bocadinho de Pitões e de levar um pouquinho de mim.
Mais sobre Pitões das Júnias
Pitões das Júnias, as muitas faces da vida na montanha
Terra de pastores, terra de lobos, terra de fronteira, terra de montanha. Pitões das Júnias é a aldeia mais visitada do Parque Natural da Peneda-Gerês, não só por causa da riqueza natural e da beleza das paisagens mas porque soube equilibrar, de forma sustentada, os interesses do turismo com os interesses da população. Pitões é uma aldeia viva o ano todo, uma aldeia onde os turistas chegam para fazer trilhos e conhecer o icónico Mosteiro de Pitões das Júnias e a sua cascata, mas ficam rendidos também à beleza da aldeia e à hospitalidade dos seus habitantes. É uma aldeia onde há pão, há arte e há comunidade. Poesia, portanto.
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António Pires, o Patorro
Na aldeia, todos o conhecem por Patorro. Era a alcunha de família a que nunca renunciou. Nasceu e cresceu em Pitões, aos seis anos já andava com o gado, aos 16 já fazia contrabando. Experimentou emigrar, mas não aguentou muito tempo. O amor à terra e à serra trouxeram-no de volta. Tem 60 anos é pastor e agricultor, faz algumas obras de construção e é um verdadeiro embaixador da sua terra. Gosta de acolher e de conversar.
Margarida Paiva, a dinamizadora cultural
Nasceu em Gaia, gosta e precisa do mar. Numa das caminhadas que fazia pela serra apaixonou-se por Pitões das Júnias. Professora de filosofia, aceitou o desafio, num ano em que não ficou colocada, de ficar atrás do balcão numa taberna no centro da aldeia. Esteve na Taberna Terra Celta dez anos, já voltou a dar aulas mas não consegue largar a procura, e a descoberta, das tradições de Pitões das Júnias. Ajuda a organizar muitos dos eventos culturais que já fazem parte do calendário da aldeia.
Cátia e Cascais, o casal improvável
Ela nasceu em São Paulo, no Brasil, filha de dois emigrantes pitoenses. Aos 21 anos quis vir estudar para a Europa e veio para Portugal. Ele nasceu e cresceu em Pitões, estudou num seminário, foi ordenado padre e esteve sete anos à frente de várias paróquias. “Só fazia missas de funerais e missas para os defuntos. Não consegui mudar a vida de ninguém”, explica ele. Mudaram a vida deles. Contra todas as probabilidades, assumiram uma relação. Casaram, tiveram um filho, têm uma vacaria e têm um restaurante. A Taberna do Caskais serve para alimentar quem passa, e para os donos se alimentarem espiritualmente de quem os visita.
Gracinda Marinho, a padeira de Pitões
Nasceu em França, mas cresceu em Pitões, fez a primária e andou com as cabras na serra até aos 18 anos. Ainda tentou a vida de emigrante em Paris, mas decidiu regressar, já com três filhos pequenos, para abrir uma padaria em plena aldeia de montanha. Reabriu o forno comunitário, aprendeu com o trabalho e com os erros. Está à frente da Padaria de Pitões, um caso de sucesso empresarial e é uma das mais entusiastas divulgadores das tradições da região.
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