Nasceu em Gaia, gosta e precisa do mar. Numa das caminhadas que fazia pela serra apaixonou-se por Pitões das Júnias. Professora de filosofia, num ano em que não ficou colocada aceitou o desafio de ficar atrás do balcão numa taberna no centro da aldeia. Esteve na Taberna Terra Celta dez anos, já voltou a dar aulas mas não consegue largar a procura, e a descoberta, das tradições de Pitões das Júnias. Ajuda a organizar muitos dos eventos culturais que já fazem parte do calendário da aldeia. Eis o seu testemunho.
“Estar num sítio destes é saber realmente quem são as pessoas”
Chamo-me Margarida Paiva, tenho 50 anos e uma filha com 18. Nasci em Mafamude, Vila Nova de Gaia, e sou turista em Pitões das Júnias há 25 anos. Vim cá parar por causa do Bruno, o meu companheiro, que adorava passear na serra e nós vínhamos para aqui fazer caminhadas. No início eu não gostava nada, mas vinha com ele. Agora é ele que já não gosta – e eu gosto muito.
Eu sou professora de filosofia, dava aulas numa escola de Chaves quando há uns anos alteraram a forma de colocar os professores. Os que escolheram contratos anuais não foram colocados, os horários anuais desapareceram e transformaram-se em temporários. Infelizmente (pois adoro a minha profissão), eu estava nesse rol e não fui colocada.
Muitos professores ficaram sem lugar, enquanto miúdos acabados de sair da faculdade entraram diretamente – para poupar nos ordenados, penso eu. Nesse ano, alguns professores e professoras chegaram a invadir o Ministério da Educação. Foi nessa altura que nos propuseram ficar na Taberna Terra Celta. Não tinha nada a ver com a nossa profissão, mas a verdade é que acabamos por ficar dez anos nessa taberna.
Uma das coisas que me faz ficar aqui em Pitões das Júnias é o facto de poder sair de casa e ir para a serra ver a vida ao longe… Outra coisa que me fez ficar foram os meus vizinhos. A verdade é que algumas pessoas me receberam muito bem, foram excelentes anfitriões.
Não sei se é por deformação profissional, se por curiosidade, o certo é que comecei a investigar o que era isso de ser de Pitões da Júnias. Comecei a descobrir o imenso património cultural, sobretudo imaterial, que aqui existe. As pessoas estão sempre à vontade para te explicar: “nós fazemos esta festa, é por isto e por aquilo e podes vir e és bem vindo”… A dada altura, já me convidam a cortar carne para chouriças. Há uma casa aqui na aldeia onde vou todos os anos e, apesar de nunca ter visto matar um porco (porque não quero!), a verdade é que depois da matança ajudo nessa casa e gosto, é um ótimo serão.
Em suma, eu fui gostando de estar aqui. Até do frio que aqui sentimos no inverno. Aqui é frio a sério. Hoje em dia dou por mim a falar com as pessoas e a dizer “veja aqui este frio”. É uma coisa que se mostra, é palpável. No início diziam-me que eu não aguentava um ano em Pitões das Júnias. Já cá estou há 12, por isso acho que sou bastante resistente ao frio.
Há muitas coisas que me encantam nesta paisagem. Podia-se pensar que é muito estática, mas todos os dias olhamos e ela está diferente – ora entra nevoeiro, ora tem um pôr do sol maravilhoso. Nós sabemos da vida que aqui há, da vida natural, mas também sabemos da parte humana desta serra de Pitões, a Serra do Gerês.
Por exemplo, a pessoa que me aluga a casa é pastor aqui há 40 anos. Contou-me histórias do contrabando, de como dormiu debaixo daquela fraga. Todas estas histórias são muito importantes, recordam-nos como as pessoas vivem da serra, como a serra está com elas. A serra do Gerês mas também o Planalto da Mourela, que na verdade é um grande tesouro aqui para Pitões das Júnias. A Mourela serve várias aldeias, é onde existe muito pastoreio para o gado.
É por tudo isto que a serra nos influencia – a mim e a todas as pessoas que estão aqui, que vivem cá, ou que vêm cá. Não é só olhar e ver as pedras. Aqui tem sítios maravilhosos, carvalhais como eu acho que não vi em nenhum outro lugar (e eu já vivi em alguns!). É realmente uma natureza que afronta, que te entra pela vida; é outro mundo.
Aqui em Pitões das Júnias gosto muito de conhecer a história, a cultura. Desde que comecei na taberna, e durante o tempo em que lá estive – e mesmo agora que estou na Associação para o Desenvolvimento de Pitões! -, eu gosto de criar e de participar em vários tipos de atividades. Mas o que gosto mesmo é de perceber, de perguntar. Gosto muito desse trabalho de recolha de património. E aqui organizam-se muitos eventos, as Jornadas Galaico-portuguesas, o Pitões à Mão, o Magusto Celta … Não podemos dizer que aqui não se passa nada. Até acontece todos os anos Anonyma Art Project, um conceito de arte diferente e inovador, a arte sem assinatura, que se concretiza num simpósio internacional de escultura.
O Pitões à Mão surgiu na altura em que eu estava na taberna. Eu achava que nas duas primeiras semanas de dezembro ninguém vinha cá, toda a gente vai para o shopping fazer compras. Mas nós estamos na montanha, que é onde as pessoas idealizam o natal mágico, neve, lareira e boa comida. Recordava-me sempre de uma amiga inglesa – que conheci quando fiz Erasmus em França – que me dizia que ia procurar fadas para o bosque com os pais. E aqui há um carvalhal lindíssimo, um bosque muito bonito, a cinco minutos a pé da aldeia que me parecia ideal para procurar fadas.
Durante o Pitões à Mão, anualmente, realizamos aí uma peça de teatro, com música enquanto procuramos as fadas aquando da passagem do solstício de inverno. Foi assim que começou e agora já vai em cinco ou seis edições, sempre com teatros, contadores de histórias, oficinas, concertos, artesanato, chocolate e vinho quente… ainda chegamos a pensar em pistas de gelo, mas era muito caro (gargalhadas!). Agora a sério, o Pitões à Mão tem tudo para ser esse Natal na montanha.
Na associação já tivemos oportunidade de participar em vários projetos internacionais e eu tenho muito gosto em ter estado na génese, preparação e concretização de alguns deles. Um dos últimos projetos em que estive envolvida foi o Ludamus Erasmus+ que divulga património através de estratégias lúdicas.
Criamos um jogo a partir das tradições do Entrudo e também a partir das tradições relacionadas com o pastoreio, serra e vida selvagem. O jogo do Entrudo de Pitões, o Entrudo Desafiadeiro, é um jogo de tabuleiro onde encontramos os caretos e farrapões, o fiadeiro, a orelheira, que qualquer um pode imprimir a partir da internet e jogar, está traduzido em várias línguas. O outro jogo é um breakout, chama-se Lobos te Comam e pode ser jogado enquanto caminhamos e conhecemos alguns recantos maravilhosos desta serra.
Quando queremos fazer uma atividade qualquer, não avançamos com nada antes de de falar com as pessoas, sem perceber como é que tudo acontecia. Por exemplo, voltamos a ter atividades no chamado Domingo Magro. Foi a entrevistar pessoas que percebi que no Domingo Magro se tocavam os cornos para o pessoal vir para o Fiadeiro. Tocavam-se os cornos? Como assim? Eu não tinha cornos de vacas, nem sabia quem tinha. Andamos pela casa das pessoas a perguntar ‘não tem uns cornos? não tem uns cornos?’. Até que alguém me trouxe uns cornos de Montalegre, com eles a brincar ‘aqui nem cornos têm’. Foi muito engraçado.
Tentamos fazer como então se fazia: alguém tocava em pontos estratégicos da aldeia, e depois alguém dava resposta noutro lado. O que é certo é que um mês depois destas conversas, e no dia em que tocamos os cornos à porta do Ecomuseu, ouvimos a resposta. E até hoje não sabemos quem foi. Essa tradição era tão verdade que mesmo sem combinar percebemos que aquilo não era conversa, não foi inventado. Claro que deixou de se fazer, e agora já se faz novamente, mas não foi inventado. Foi uma coisa que foi recuperada.
O Pitões à Mão surgiu um pouco assim, queríamos mostrar ofícios que se podem fazer à mão. O Centear, outra iniciativa que organizamos, e que também começou a ganhar alguma dimensão, pretende recuperar tradições relacionadas com o centeio. A ideia de inventar o verbo centear foi a de que, como os verbos expressam ações, o centear exprime todas as que estão relacionadas com o cultivo do centeio. Não é só uma malhada do centeio, é a segada, o colmar telhados, o forno do povo a cozer o pão de centeio, o moinho a moer o grão, as sopas de burro cansado, a chanfana, a música … São as tradições agrícolas e são os laços de comunidade.
O Centear é organizado em agosto. O que eu via, do lado de dentro da taberna, é que nessa altura os emigrantes do Brasil, da França, da Inglaterra, da Suíça, de Lisboa e outros parecia que não se juntavam aos que residem em Pitões o ano todo. Daí surgir a ideia deste evento, que teria como um dos seus objetivos juntar todas essas pessoas.
Acumulei todas estas atividades enquanto estava na taberna e me mantive fora do ensino. Mas depois, veio a pandemia e nós ficamos sem apoio nenhum. Era só contas para pagar. Estava a trabalhar no site da associação e concorri, por acaso, a uma escola profissional em Mirandela. Fiquei imediatamente colocada. Voltei ao ensino com toda a boa vontade pois gosto muito da profissão. Vivi dois anos em Mirandela e vinha a Pitões ao fim-de-semana. A minha filha, que agora está a estudar no Porto, também cá vem aos fins-de-semana e durante as férias. Adora. Estamos muito ligados a esta aldeia.
Por vezes acompanho visitantes à aldeia, ou ao Mosteiro de Pitões, enfim, gosto muito dessas visitas guiadas, alturas em que posso partilhar todas descobertas e o conhecimento que fui adquirindo ao longo destes anos. Falo dos pastores, das pessoas e suas tradições, dos muros de pedra solta, do mosteiro, das pessoas que antigamente vinham a Pitões das Júnias para trabalhar e como não tinham onde dormir ficavam no forno do povo porque é quentinho… Acredito que estar num sítio destes é saber realmente quem são as pessoas e o que é que elas fazem.
Acho que, talvez por causa da minha profissão, tenho a obrigação de partilhar com as pessoas o que vou sabendo. Seja com os visitantes ou com os residentes. Recordo-me várias vezes de Aristóteles quando na sua teoria fala da potência e do ato. Eu vejo imensa coisa em potência – tanto para os que são de fora e vêm até cá, como para os que cá estão e podem aproveitar para fazer disso economia.
Eu, como nasci numa cidade à beira mar, costumo dizer que o mar é a minha terra. E vou muitas vezes cheirar o mar, porque o mar me faz falta. Assim como me faz falta o anonimato, ter aquela vida que sempre tive, ninguém me conhece, não preciso de falar com ninguém. Mas agora consigo ver bem que preciso destes dois mundos.
Vou à cidade e vem tudo ao de cima, automaticamente lá estou a apitar no trânsito. Aqui não preciso disso. Costumo dizer que aqui o trânsito é de vacas, e que não vamos ao Ikea, vamos ao senhor Freitas, que vende tachos. Estou à vontade nestes dois mundos. Podia fazer as histórias do rato do campo e do rato da cidade, porque conheço bem os dois.
Mais sobre Pitões das Júnias
Pitões das Júnias, as muitas faces da vida na montanha
Terra de pastores, terra de lobos, terra de fronteira, terra de montanha. Pitões das Júnias é a aldeia mais visitada do Parque Natural da Peneda-Gerês, não só por causa da riqueza natural e da beleza das paisagens mas porque soube equilibrar, de forma sustentada, os interesses do turismo com os interesses da população. Pitões é uma aldeia viva o ano todo, uma aldeia onde os turistas chegam para fazer trilhos e conhecer o icónico Mosteiro de Pitões das Júnias e a sua cascata, mas ficam rendidos também à beleza da aldeia e à hospitalidade dos seus habitantes. É uma aldeia onde há pão, há arte e há comunidade. Poesia, portanto.
Ler Artigo Pitões das Júnias, as muitas faces da vida na montanha
António Pires, o Patorro
Na aldeia, todos o conhecem por Patorro. Era a alcunha de família a que nunca renunciou. Nasceu e cresceu em Pitões, aos seis anos já andava com o gado, aos 16 já fazia contrabando. Experimentou emigrar, mas não aguentou muito tempo. O amor à terra e à serra trouxeram-no de volta. Tem 60 anos é pastor e agricultor, faz algumas obras de construção e é um verdadeiro embaixador da sua terra. Gosta de acolher e de conversar.
Cátia e Cascais, o casal improvável
Ela nasceu em São Paulo, no Brasil, filha de dois emigrantes pitoenses. Aos 21 anos quis vir estudar para a Europa e veio para Portugal. Ele nasceu e cresceu em Pitões, estudou num seminário, foi ordenado padre e esteve sete anos à frente de várias paróquias. “Só fazia missas de funerais e missas para os defuntos. Não consegui mudar a vida de ninguém”, explica ele. Mudaram a vida deles. Contra todas as probabilidades, assumiram uma relação. Casaram, tiveram um filho, têm uma vacaria e têm um restaurante. A Taberna do Caskais serve para alimentar quem passa, e para os donos se alimentarem espiritualmente de quem os visita.
Gracinda Marinho, a padeira de Pitões
Nasceu em França, mas cresceu em Pitões, fez a primária e andou com as cabras na serra até aos 18 anos. Ainda tentou a vida de emigrante em Paris, mas decidiu regressar, já com três filhos pequenos, para abrir uma padaria em plena aldeia de montanha. Reabriu o forno comunitário, aprendeu com o trabalho e com os erros. Está à frente da Padaria de Pitões, um caso de sucesso empresarial e é uma das mais entusiastas divulgadores das tradições da região.
Alcina Leite, a “Sapateira”
O nome artístico é uma homenagem à mãe. Alcina Leite faz muitas coisas com as mãos, mas entre elas não estão sapatos. Estão pinturas, em telas e em pedra, estão esculturas, estão várias peças de artesanato. Gosta de pintar desde que se lembra, mas só há quatro anos é que se aventurou a assumir a arte, a mostrar o trabalho, a vender em nome próprio. Tem um atelier no meio da aldeia de Pitões das Júnias, e diz que não conseguiria ser artista em mais lado nenhum. É a natureza que inspira a sua arte.
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