Ela nasceu em São Paulo, no Brasil, filha de dois emigrantes pitoenses. Aos 21 anos quis vir estudar para a Europa e veio para Portugal. Ele nasceu e cresceu em Pitões, estudou num seminário, foi ordenado padre e esteve sete anos à frente de várias paróquias. “Só fazia missas de funerais e missas para os defuntos. Não consegui mudar a vida de ninguém”, explica ele. Mudaram a vida deles. Contra todas as probabilidades, assumiram uma relação. Casaram, tiveram um filho, têm uma vacaria e um restaurante. A Taberna do Caskais serve para alimentar quem passa, e para os donos se alimentarem espiritualmente de quem os visita. Eis o seu testemunho.
“Se não vais à cidade, permites que a cidade venha até ti”
[Cátia Pereira] Chamo-me Cátia Pereira, tenho 47 anos, nasci e cresci no Brasil. Os meus pais nasceram aqui em Pitões das Júnias. Mas depois do 25 de Abril fizeram como muitos daqui da aldeia: emigraram, e foram para o Brasil. Os meus pais tinham lá um talho, era sempre a trabalhar, não havia muitas férias. Mas as viagens, quando aconteciam, eram sempre para Portugal. Vim pela primeira vez com 12 anos, veio a família toda. Ficou-me sempre a ideia de voltar.
Mas só decidi vir para Portugal quando tinha 21 anos. Estava na faculdade, em São Paulo, levava já um ano e meio do curso de nutrição. Mas tinha aquele sonho de correr a Europa – a Europa é sempre a Europa. E, como tinha dupla nacionalidade, senti que havia aqui alguma oportunidade. E atenção que o Brasil é um país maravilhoso, maravilhoso. Mas um dos grandes motivos para ter vontade de vir embora foi a violência que há lá.
Quando vim, tentei fazer a transferência do curso, mas ainda demorou. Queria entrar em Ciências da Nutrição no Porto, mas ainda tive de fazer exames nacionais para entrar na faculdade. Só me deram equivalências. Então quando vim, fui viver para Valongo, com umas primas. Nessa altura o Cascais estava no Porto, a estudar para padre. Eu conheci-o aqui na aldeia de Pitões das Júnias, durante umas festas à Nossa Senhora da Júnias, a 15 de agosto.
Nós ainda somos primos, para aí em quarto grau. Naquela época aqui na aldeia ainda não se podia estar muito junto, nem a conversar… então ele tirava-me para dançar e, enquanto dançávamos, conversávamos. Depois disso, trocámos cartas. E já havia telemóveis e tudo, mas era uma coisa caríssima. Eu não tinha, ele também não. Escrevíamos cartas um para o outro, ele no Porto, eu em Valongo.
Entretanto, entrei para a faculdade e acabamos por nos envolver. Tivemos um namorico. Mas ele decidiu que queria seguir mesmo o sacerdócio. E acabou a relação. Foi ordenado padre, ficou com umas paróquias em Montalegre e esteve lá sete anos. Eu acabei o curso, arranjei um emprego em Mirandela. Nós aí falávamos de vez em quando por telefone. Naquela época ele vinha poucas vezes a Pitões. Mas mesmo quando vinha não podíamos falar em público que era o fim do mundo.
Entretanto, ele sentiu que estava só, que não conseguia implementar grandes mudanças e decidiu abandonar o sacerdócio. E juntamo-nos.
Foi muito engraçado, porque eu tinha um contrato em Mirandela quando ele deixou o sacerdócio e veio para casa, com os pais. Entretanto, apareceu uma vaga em Boticas, fui à entrevista e ficaram logo comigo. Então toca a Cátia a vir para Pitões das Júnias. Ele tinha um carro comercial, e eu tinha também o meu. E ele foi a Mirandela para trazermos as tralhas todas. E chegamos a Pitões já era tarde, e ainda tínhamos de ir jantar. “Olha, vamos ao tio Armando” – que é o restaurante Dom Pedro, do meu tio. Entramos, toda a gente a olhar para nós. Sentamo-nos, toda a gente a olhar para nós. As pessoas sempre suspeitaram.
Enfim. Lembro-me perfeitamente da minha prima me perguntar: ”Que estás aqui a fazer com o Cascais?” O que é que tu achas?, perguntei eu. E diz ela: “Eu defendi-te sempre a dizer que era mentira, e afinal é verdade”.
Mas no fundo, a minha família ficou serena, muito sossegada. Porque tinham aquele receio que fosse aquela relação eterna, escondida. E eles não queriam essa vida para mim. Queriam que eu estivesse livre, à vontade. E foi tudo muito sereno.
Essa mudança foi em setembro. Em novembro, casamo-nos. Foi rápido, só pelo civil. Porque ele teria de pedir uma dispensa papal e nunca pediu isso. E eu também nunca fiz questão. Nós queríamos era estar realmente à vontade, e havia alguma pressão, até da minha falecida mãe. Ela dizia-me: “casa-te para estares à vontade, senão na aldeia vão-te chatear, porque ele veio a tal horas, porque saiu da tua casa ou porque não entrou…”
Então, numa sexta-feira de manhã fui trabalhar e nessa sexta à tarde fui-me casar, vestida com umas calças de ganga. Fui eu, o Cascais e o meu pai. Foi ele a nossa testemunha. Os pais do Cascais acho que souberam só 15 dias depois. Entretanto, em junho, engravidei do Mateus. Eu casei em 2007 e em 2009 nasceu o Mateus. E ficamos por aí, só com um rebento.
Depois de casarmos, ainda explorarmos a Taberna Celta durante uns seis a oito meses, mas depois apareceu uma oportunidade para o Cascais dar aulas em Boticas, numa escola profissional. E eu também estava gravidíssima, saímos da Taberna. Entretanto, o contrato dele acabou e ficou sem nada. Ajudou o pai a submeter um projeto agrícola, não sabíamos o que ia acontecer, olhámos um para o outro e pensamos: e agora? Vamos, não vamos, vamos, não vamos. Ficas, não ficas…
Houve uma fase em que ainda pensei em voltar para o Brasil. E eu fui lá. Olhei pela janela do apartamento dos meus pais. E eles vivem num sítio bom em São Paulo. Mas aquela confusão, tanta gente, tanto carro, tanto barulho… Pensei, não consigo mais viver aqui. Como é que eu vou colocar aqui o Cascais e o Mateus? Além disso, financeiramente também não era muito possível. Para se ter uma vida melhor, já era preciso ter algum dinheiro para investir lá.
E pronto, eu que sempre tinha dito ao Cascais, na minha inocência “Não vou viver em Pitões, eu não vivo em Pitões… Pitões, nunca, Pitões, nunca!”. Eu dizia isso porque fui criada na cidade. Pitões é maravilhoso, tem a calma, a natureza, mas eu ainda tinha em mim aquele ferver das relações, de conhecer mais gente, de ir ao cinema, ter outras atividades, outras coisas… Para mim Pitões era um sítio pequeno demais. Mas saiu a aprovação do projeto agrícola, ele assinou-o e não saímos mais daqui.
Eu ainda trabalhei durante uns 10 anos num lar em Chaves, mas era a recibos verdes, umas 15 a 20 horas por semana, enquanto ia cuidando do Mateus. Depois, os meus sogros foram ficando doentes, deixaram de poder ajudar na agricultura. O Cascais assumiu as coisas e, na altura das partilhas com os irmãos manifestou interesse em ficar com este armazém onde guardavam alfaias agrícolas. Ficamos com o armazém, compramos o lameiro do lado e submetemos um novo projeto agrícola. Eu deixei o meu trabalho em Chaves e comecei a trabalhar no restaurante.
Abrimos a Taberna do Caskais em abril de 2023. Ainda é um embrião muito pequeno, não dá para ter uma ideia, é muito incerto. Acho que está a correr bem, embora perceba que o país está em crise e que as pessoas se calhar em vez de pedirem mais pratos pedem menos – ou partilham. É a minha primeira experiência num restaurante, embora como nutricionista tenha trabalhado sempre na gestão da qualidade, segurança alimentar e na gestão de unidades alimentares dentro dos lares. Tenho pouca experiência a nível de dieta e de terapia, mas a dos idosos…. fazia as ementas, as encomendas, o contacto com os fornecedores e a gestão.
Portanto, eu gosto daquilo que estou a fazer. A única dificuldade é que era preciso mais mão-de-obra. Mas, primeiro, não há. E, como ainda estou a começar, neste momento também não há condições financeiras para pagar a mais pessoas. Então, o caminho faz-se caminhando.
Eu não fui criada cá, e talvez isso explique porque é que eu não gosto muito da agricultura. Sou sincera, gosto muito de lidar com as vacas. Mas quem me leva para um terreno para fazer seja o que for, é como quem me mata. Mas eu vou e faço. Feno, batatas, centeio, milho, tudo…
Viver em Pitões das Júnias tem os dois lados. As pessoas saíram de cá porque não havia condições. É preciso ser muito resiliente para se viver aqui. Tu sabes que aqui não vais ganhar o dinheiro que podias ganhar noutro lado qualquer. Mas é que não vais. Aqui tens muito trabalho e poucos rendimentos. Mas tens muita qualidade de vida, e há que pôr tudo na balança e medir o que importa.
O Mateus, por exemplo, teve uma sorte brutal por ser criado numa aldeia tão pequenina quanto esta. Teve acesso a cultura, a muitas atividades e experiências, mesmo com estrangeiros, imensas coisas que eu duvido muito que miúdos de outras cidades tenham conseguido ter acesso. A freguesia tem sido muito dinâmica nestes últimos 25 ou 30 anos, e nós temos tentado aproveitar as pessoas que cá aparecem. Essas pessoas trazem-nos muito. Elas vêm apanhar ar, mas também nos ajudam a respirar, sabes?
Sei que há muita gente da cidade que gostaria de fazer este percurso. O meu foi fácil, porque tanto eu como o Cascais herdamos terrenos. A casa onde eu vivo foram os meus pais que me deram. Chegar aqui um casal com um filho, por exemplo, e precisar de comprar terrenos, casa, máquinas, vacas…. é difícil. Nesse sentido, sinto-me com sorte, muito privilegiada, porque tive isso da parte dos meus sogros e dos meus pais. Foi um privilégio. Porque realmente temos onde trabalhar.
Agora, também é verdade que vem sempre aquele bichinho que te diz “E se eu tivesse ido embora?”
Mas isto é a vida do imigrante. É uma luta constante. A minha mãe faleceu há quatro anos. O meu pai ainda está no Brasil, tenho lá duas irmãs e dois sobrinhos. O meu pai está reformado, passa seis meses cá, seis meses lá. E ainda bem, tem muita saúde, corre essas serras todas, conhece os cantos todos ajuda-me com as vacas… está feliz da vida.
Pela minha parte, a única coisa que eu gostava neste momento da minha vida, com esta idade de 47 anos, era que tudo estivesse um bocadinho mais estruturado e não visse tanto trabalho ainda pela frente.
[António Cascais] Chamo-me António Manuel, mas todos me conhecem por Cascais. É um nome materno, que sempre usei, para distinguirmos entre os muitos Antónios que havia aqui na aldeia. Nasci em 1975, tenho 49 anos e acho que já não se pode dizer que sou um jovem agricultor – porque é só até aos 40. Estou com a exploração agrícola que era dos meus pais desde 2011. Mas eu já não faço o que faziam os meus pais. A minha mãe passava aqui o tempo, a varrer a vacaria com uma vassourinha de giesta. Eu já não tenho tanto essa preocupação.
Agora é diferente. Mesmo no resto dos campos, antes ia-se cortar silvas, para andar tudo limpinho. Agora também é preciso, mas já ninguém lá vai. Há as roçaduras para fazer esse trabalho. Nunca fica igual, mas é o que há. É como fazer os regos para as aguas, à rega de linha. Antigamente era à sachola. Eu tenho uma alfaia para fazer com o trator, e depois é só dar um jeito. Este ano ainda não fiz, ainda não tive tempo.
As coisas mudaram muito, porque há muito menos gente. E menos gente a trabalhar. Foi por isso que se acabou com a vezeira. Já não há ninguém para ir com os pequenos ruminantes para a serra, o dia todo. Agora já não há cabras na serra, todos se ficam pelas vacas, não porque dá menos trabalho, mas porque podem ficar sozinhas no monte enquanto nós podemos ir fazendo outras coisas.
Eu gosto de fazer várias coisas, faço muitos trabalhos manuais, esculturas, mas na verdade são hobbies, passatempos. O meu trabalho é este, na vacaria e no restaurante. Pensando bem, são duas atividades que nos prendem muito, no sentido de ter um compromisso, do ter de ser feito. Mas o trabalho na agricultura é mais livre do que o do restaurante. Livre no sentido em que estamos a lidar com os animais e não temos um horário fixo.
Se não vens às 8h00 dar-lhes de comer, vens às 8h30. Ao fim do dia, igual.
A restauração já exige outros horários. Hoje, por exemplo, tirei-as do estábulo e deixei-as a pastar já eram 10h30. E elas vêm sozinhas de volta – sabem o caminho, ao fim da tarde. É por isso uma atividade mais livre. A restauração tem outros horários, temos de estar com pessoas.
E eu já tinha tido uma experiência com pessoas. Fui ordenado padre em 2000 e atribuíram-me cinco paróquias em Montalegre. Tinha 16 aldeias, e já nessa altura era só pessoas de idade. Andava sempre de estrada em estrada, a fazer funerais e missinhas para os defuntos. Era uma rotina. E, depois, é daquelas coisas, sentimos que a rotina cansa. E eu pensava que não estava a fazer nada, não estava a mudar a vida de ninguém. E já conhecia a Cátia, e decidi sair. Quando tu decides sair há sempre propostas, pedem-te para saíres de onde estás, para ir para outro lugar, ou para estudares mais. Mas enfim, eu decidi que queria ficar por aqui. E deixei mesmo o sacerdócio.
Aqui consigo ter uma vida tranquila. Um dia bom é as coisas correrem bem, em casa, com os animais, e chegares ao fim do dia tranquilo e em paz. Se tiveres oportunidade de conviver com alguém, melhor… Às vezes é disso que sentes falta. Como passas muito tempo aqui na aldeia, sentes falta de conviver com pessoas que vêm de fora.
Mas já que não vais à cidade, vem a cidade até ti. Abres um restaurante. A ideia inicial era converter o espaço para alojamento local. Mas já não havia financiamentos para esse tipo de projetos. Para abrir uma taberna, sim. Porque está relacionada com a nossa exploração agrícola, é permitido uma atividade paralela que possa compensar a parte agrícola.
A ideia surgiu-me há muito tempo. Lembro-me que quando era estudante havia sempre uma viagem, um passeio de fim de ano. E uma vez no regresso da Galiza, em Santiago, paramos num cafezito. Era um espaço simples, uma tasca. Acho que também tinha petiscos – pinchos, como eles chamam.
E estava lá um senhor sentado, começamos na conversa com ele. E ele ofereceu-nos um livro de de poemas da autoria dele. E é engraçado, não é? Agora já andei à procura e não encontro o livro.
Mas ficou-me sempre aquela ideia de que um dia gostaria de ter um espaço para receber assim o pessoal, no sentido poético. Partilhar, conversar, conhecer. Não digo que foi por causa dessa recordação que quis abrir o restaurante, mas acredito que ficou ali, naquele momento, uma semente. Na verdade, nunca pensei que um dia vinha a acontecer. Mas aconteceu. E aqui estamos.
Mais sobre Pitões das Júnias
Pitões das Júnias, as muitas faces da vida na montanha
Terra de pastores, terra de lobos, terra de fronteira, terra de montanha. Pitões das Júnias é a aldeia mais visitada do Parque Natural da Peneda-Gerês, não só por causa da riqueza natural e da beleza das paisagens mas porque soube equilibrar, de forma sustentada, os interesses do turismo com os interesses da população. Pitões é uma aldeia viva o ano todo, uma aldeia onde os turistas chegam para fazer trilhos e conhecer o icónico Mosteiro de Pitões das Júnias e a sua cascata, mas ficam rendidos também à beleza da aldeia e à hospitalidade dos seus habitantes. É uma aldeia onde há pão, há arte e há comunidade. Poesia, portanto.
Ler Artigo Pitões das Júnias, as muitas faces da vida na montanha
António Pires, o Patorro
Na aldeia, todos o conhecem por Patorro. Era a alcunha de família a que nunca renunciou. Nasceu e cresceu em Pitões, aos seis anos já andava com o gado, aos 16 já fazia contrabando. Experimentou emigrar, mas não aguentou muito tempo. O amor à terra e à serra trouxeram-no de volta. Tem 60 anos é pastor e agricultor, faz algumas obras de construção e é um verdadeiro embaixador da sua terra. Gosta de acolher e de conversar.
Margarida Paiva, a dinamizadora cultural
Nasceu em Gaia, gosta e precisa do mar. Numa das caminhadas que fazia pela serra apaixonou-se por Pitões das Júnias. Professora de filosofia, aceitou o desafio, num ano em que não ficou colocada, de ficar atrás do balcão numa taberna no centro da aldeia. Esteve na Taberna Terra Celta dez anos, já voltou a dar aulas mas não consegue largar a procura, e a descoberta, das tradições de Pitões das Júnias. Ajuda a organizar muitos dos eventos culturais que já fazem parte do calendário da aldeia.
Gracinda Marinho, a padeira de Pitões
Nasceu em França, mas cresceu em Pitões, fez a primária e andou com as cabras na serra até aos 18 anos. Ainda tentou a vida de emigrante em Paris, mas decidiu regressar, já com três filhos pequenos, para abrir uma padaria em plena aldeia de montanha. Reabriu o forno comunitário, aprendeu com o trabalho e com os erros. Está à frente da Padaria de Pitões, um caso de sucesso empresarial e é uma das mais entusiastas divulgadores das tradições da região.
Alcina Leite, a “Sapateira”
O nome artístico é uma homenagem à mãe. Alcina Leite faz muitas coisas com as mãos, mas entre elas não estão sapatos. Estão pinturas, em telas e em pedra, estão esculturas, estão várias peças de artesanato. Gosta de pintar desde que se lembra, mas só há quatro anos é que se aventurou a assumir a arte, a mostrar o trabalho, a vender em nome próprio. Tem um atelier no meio da aldeia de Pitões das Júnias, e diz que não conseguiria ser artista em mais lado nenhum. É a natureza que inspira a sua arte.
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