Na aldeia, todos o conhecem por Patorro. Era a alcunha de família a que nunca renunciou. Nasceu e cresceu em Pitões, aos seis anos já andava com o gado, aos 16 já fazia contrabando. Experimentou emigrar, mas não aguentou muito tempo. O amor à terra e à serra trouxeram-no de volta. Tem 60 anos é pastor e agricultor, faz algumas obras de construção e é um verdadeiro embaixador da sua terra. Gosta de acolher e de conversar. Eis o seu testemunho.
“A minha geração fez uma revolução”
Chamo-me António, tenho que 60 anos e nasci e cresci aqui em Pitões. Na aldeia todos me chamam de Patorro. É o nome de família, era o nome do meu pai. E eu gosto de ser o Patorro.
Pitões era uma terra muito pobre, talvez das mais pobres do concelho de Montalegre, porque era metida na serra. Uma aldeia muito rural, muito da serra mesmo. Os meus avós nasceram cá, os meus pais também e eu, inclusive, também. E claro, sempre tive amor por isto, fui crescendo nisto.
Eram tempos diferentes, com muita lama, muita cabra, muita pulga, muita vaca, muito mau. Ninguém botava a mão a um puto para se desviar disto ou daquilo. Nós os putos é que tínhamos de nos desviar dos perigos. Não havia aquela coisa “o meu filho, anda para aqui”. Era “rais parta, sai daí rapaz!”… Os pais não tinham tempo para os filhos nem para nada. Depois o trabalho era duro. Nós, ainda moços, também trabalhávamos com os animais. Nós já ganhávamos a tarimba da vida.
Depois a gente cresceu. Eu ainda estive no estrangeiro três anos, mas o amor à terra ficou cá. Eu sempre gostei da terra e destas lidas. Porque este é o meu mundo. Voltei, casei, fiz família, fiz este armazém, arranjei a casa, vivo cá, sou feliz, gosto o que faço. Mas é preciso também ter muita força de vontade. E ter sorte.
A vida mudou muito. Ainda me lembro de quando era tudo colmo, não havia uma telha em casa nenhuma. Não havia luz, nem água canalizada. A serra de Gerês é hoje uma serra muito bonita para o turismo, para isto e para aquilo, mas naquele tempo era diferente. Aquele tempo era muito duro.
Lembro-me que quando me nasceu uma irmã, tinha eu seis anos, tinha vindo com as vacas para a serra. Com seis anos! Cheguei a dormir na serra, sozinho, perdido. Quando o meu pai conseguiu ter em casa uma coisa parecida com uma casa de banho, já eu tinha uns 16 ou uns 18 anos.
A serra é que foi sempre importante para nós. Era na serra que tirávamos a lenha, era da serra que vinham os carros de bois carregados por aquelas calçadas antigas com a lenha. E era para a serra que levávamos o pastoreio.
Havia muitas atividades em comunidade. A vezeira era uma delas: consoante o numero de cabeças de gado que cada um tinha, assim se contabilizavam os dias em que tinham de ir com elas e com as outras todas.
Depois também havia a cegada do feno, onde os homens se juntavam e a cada dia ia cegar para o outro. Havia as malhadas, havia a tirada das batatas… enfim a coisa toda era tudo sempre em comunidade, mais ou menos. Se houvesse uma casa que tinha muita gente e tal, que não precisava, acabavam por fazer tudo sozinhos. Mas no geral as coisas faziam-se em comunidade.
Agora não é tanto assim porque somos muito menos gente. Hoje há uma pessoa ou duas em cada casa; naquele tempo eram seis, sete, oito. As comunidades já são outras. Mas há comunidade, ainda. Os pitonenses ainda são hospitaleiros e amigos do amigo. Só que as pessoas andam mais ocupadas. Muito mais ocupadas. Lembra-me de haver aquelas ranchos de canalhada, iam pequenos e grandes, cantava-se, ria-se, brincava-se, matava -se uma cabra, comia-se. Hoje já não é como era. Também não há gente. Não há gente, não há guerra. E é isso. Mas se há um dia que algum precisa, a gente também ajuda.
Não podemos ter saudades do passado. As coisas, felizmente, mudaram muito e para melhor. O fumeiro, por exemplo. Nós continuamos a fazer fumeiro, mas as coisas agora não têm nada a ver. Antes tirava-se a chouriças directamente do fumeiro, e no verão estão duras que nem cornos de vacas, para falar a verdade. Hoje não. A gente já as põe no frigorífico. E podem-se ir comendo.
Eu hoje faço fumeiro, mas com porcos de rico. Já tenho farinha, tenho outras condições, tenho o que lhe deitar … pronto. Antigamente não! As mulheres iam aos lameiros tirar leitarugas ou cegar um pouquinho de erva aqui e ali. Criava-se o porco com quase nada, e quando se matava era quase um esqueleto. Mas era o que havia. Estávamos ali ao borralho, a conversar e a contar histórias.
Nós juntávamo-nos nas casas mais quentes, onde haviam mais amigos. E ali, à volta da fogueira, havia aqueles sábios velhos. Uns sábios, outros marotos. E depois só contavam histórias de aventuras, de malandrices, de medos, e nós estávamos lá no canto, a ouvi-los, nem saímos dali com medo de ir para a cama. As pessoas ficavam com esse trauma. Tudo o que ouvissem ranger de noite, qualquer coisa que fosse, tudo era um medo, um trauma, bruxedos, o lobo, e isto e aquilo. Antigamente as pessoas ficavam mais crentes, tinham medo à sombra. Morriam, cismavam que a pessoa que morria, já tinha de se fumar com a roupa do morto. Se ruge uma giesta, é com o vento, temos de ver a que temos medo.
Hoje não se fala nisso. Eu, por exemplo, aos meus filhos sempre lhe disse olhai, eu andei sempre na serra!’. Algumas vezes porque escureceu, outras vezes porque tinha que ser, por contrabando, certo é que nunca me apareceu nada, nunca tive medo a nada, nunca ninguém me fez mal.
Fui para o contrabando tinha uns 16 ou 17 anos. A casa do pai era um caos e dinheiro não nos dava. Enquanto estivesse em casa trabalhava para casa. Se querias uns trocos, tinhas de ir ao contrabando. Nunca fui apanhado, mas fugi várias vezes. Levava e trazia o que o cambio da peseta permitia. Café, banana das canárias, o que calhava. A ganhar uma girica. Eu não era cabeça! Cabeça é aquele que compra e vende. Nós éramos só passadores. Eu era um piãozinho, não era patrão.
Foi ali que perdi o medo. Às vezes tínhamos que fugir, e era cada um por seu lado. E além disso, passávamos ao pé de muito cemitério, e só se pensava no guarda, não era no morto. Mas nos íamos ao contrabando para podermos ter alguns trocos para as nossas brincadeiras.
As nossas borgas eram ao fim de semana, e dias de festa. No meu tempo os fiadeiros não eram todos os dias, como antigamente chegou a ser. As moças estavam sentadas todas ali à volta e os rapazes iam para ali, cada um destacava-se ao seu jeito e cada um falava com quem gostava. As mulheres fiavam, cardavam, faziam meia, aventais, colchas, mantorras. E, enquanto isso, cantavam. No meu tempo já não era tanto cantoria, o fiadeiro era o sitio onde íamos dançar, tirar sarro com as mulheres que gostávamos. Já fazíamos uma festinha com giradiscos. Ou havia um tocador da aldeia que já sabía quatro ou cinco modas repetidas, e estávamos ali toda noite.
Eu fui muito festeiro, aí até aos 25, 26 anos. Mas depois casei-me, e agora cá estou, com dois filhos, um com 29 outro com 31 anos. Um, trabalha como eletricista, está em França. Tem uma viagem a Portugal por mês, tem as garantias todas, ganha bem. O mais velho, estudou, andou no Seminário, do nono ao 12º. Mas depois quis sair. Foi tirar um curso, e está a trabalhar no Porto como engenheiro de segurança de obras.
Os meus filhos andam bem. Trabalham, ganham, vêm cá são bem recebidos, com condições. Eu jia lhes disse muitas vezes quem aos 20 não é, aos 30 não tem, aos 40 não lhe vem. Eu queria vê-los arrumados. Mas eles não estão virados para aí. Não estão a pensar em família.
Eles lá farão a vida deles. Eu também fiz a minha. Aliás, a minha geração teve de fazer uma revolução, quase. Porque a vida mudou muito, há uns 25 ou 30 anos, mas nós tivemos sempre de lutar contra a maré, a aprender tudo por conta própria. Eu aprendi a trabalhar com animais, a lavrar com animais, a fazer tudo com o meu pai.
E de repente começaram os tratores, máquina para isto e máquina para aquilo. Os nossos pais não percebiam um puto disso. Foi comprar, levar no corpo, escangalhar, pagar os arranjos, a fazer armazéns. Foi uma revolução. Mas foi para bem. Agora o trabalho continua a ser duro, mas é menos duro do que era antes. Antes era uma miséria. Agora não. Espiritualmente eu sou feliz. Sei que isto não dá para juntar milhões, mas vive-se.
O melhor de viver em Pitões das Júnias para mim é a liberdade que nós temos. Eu aqui sou como um passarinho, um pássaro que está à solta, que não prendem numa gaiola. Ricos não somos, mas dificuldades também não temos muitas. Mas fazemos por isso. Se isso é que é ser rico? Pronto, acho que sim. É mais ou menos isso. Claro, a gente também não pode abandonar os barcos, não podemos… Mas esta liberdade é o mais importante: a gente fazer o que quer e o que gosta, ser espontâneo, ser sério, honesto, trabalhador. Não tenho tudo que amo, mas amo tudo que tenho.
Mais sobre Pitões das Júnias
Pitões das Júnias, as muitas faces da vida na montanha
Terra de pastores, terra de lobos, terra de fronteira, terra de montanha. Pitões das Júnias é a aldeia mais visitada do Parque Natural da Peneda-Gerês, não só por causa da riqueza natural e da beleza das paisagens mas porque soube equilibrar, de forma sustentada, os interesses do turismo com os interesses da população. Pitões é uma aldeia viva o ano todo, uma aldeia onde os turistas chegam para fazer trilhos e conhecer o icónico Mosteiro de Pitões das Júnias e a sua cascata, mas ficam rendidos também à beleza da aldeia e à hospitalidade dos seus habitantes. É uma aldeia onde há pão, há arte e há comunidade. Poesia, portanto.
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Margarida Paiva, a dinamizadora cultural
Nasceu em Gaia, gosta e precisa do mar. Numa das caminhadas que fazia pela serra apaixonou-se por Pitões das Júnias. Professora de filosofia, aceitou o desafio, num ano em que não ficou colocada, de ficar atrás do balcão numa taberna no centro da aldeia. Esteve na Taberna Terra Celta dez anos, já voltou a dar aulas mas não consegue largar a procura, e a descoberta, das tradições de Pitões das Júnias. Ajuda a organizar muitos dos eventos culturais que já fazem parte do calendário da aldeia.
Cátia e Cascais, o casal improvável
Ela nasceu em São Paulo, no Brasil, filha de dois emigrantes pitoenses. Aos 21 anos quis vir estudar para a Europa e veio para Portugal. Ele nasceu e cresceu em Pitões, estudou num seminário, foi ordenado padre e esteve sete anos à frente de várias paróquias. “Só fazia missas de funerais e missas para os defuntos. Não consegui mudar a vida de ninguém”, explica ele. Mudaram a vida deles. Contra todas as probabilidades, assumiram uma relação. Casaram, tiveram um filho, têm uma vacaria e têm um restaurante. A Taberna do Caskais serve para alimentar quem passa, e para os donos se alimentarem espiritualmente de quem os visita.
Gracinda Marinho, a padeira de Pitões
Nasceu em França, mas cresceu em Pitões, fez a primária e andou com as cabras na serra até aos 18 anos. Ainda tentou a vida de emigrante em Paris, mas decidiu regressar, já com três filhos pequenos, para abrir uma padaria em plena aldeia de montanha. Reabriu o forno comunitário, aprendeu com o trabalho e com os erros. Está à frente da Padaria de Pitões, um caso de sucesso empresarial e é uma das mais entusiastas divulgadores das tradições da região.
Alcina Leite, a “Sapateira”
O nome artístico é uma homenagem à mãe. Alcina Leite faz muitas coisas com as mãos, mas entre elas não estão sapatos. Estão pinturas, em telas e em pedra, estão esculturas, estão várias peças de artesanato. Gosta de pintar desde que se lembra, mas só há quatro anos é que se aventurou a assumir a arte, a mostrar o trabalho, a vender em nome próprio. Tem um atelier no meio da aldeia de Pitões das Júnias, e diz que não conseguiria ser artista em mais lado nenhum. É a natureza que inspira a sua arte.
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