“A música anda sempre aliada a quem quer que tenha nascido e posto o pé aqui nesta terra, nestas serras e nestes montes”. A terra é Manhouce, a serra é a Gralheira e os montes são de perder de vista e vestem um inesquecível traje de gala quando as giestas os pintam de amarelo. A frase é de Isabel Silvestre, a mais conhecida voz de Manhouce, e enquadra o sentimento de pertença que os habitantes desta aldeia de São Pedro do Sul têm para com as suas coletividades e tradições. O segredo é a juventude olhar para a aldeia não como um lugar que os prende, mas como uma terra que os cativa.
O dia começou cedo para Hugo Gomes, um artista plástico de 22 anos que vive na Casa do Pedro de Cima, no lugar de Manhouce. Mesmo depois de, no dia anterior, se ter deitado muito tarde, por ter participado nas marchas populares que desfilaram pela aldeia. O mês de agosto é mês de atividade intensa e de corrupio, entre as muitas solicitações de familiares, de amigos e das coletividades da aldeia.
E, depois da noitada anterior, desta vez será preciso preparar mais uma atividade da aldeia. Hugo estará a representar a aldeia de Manhouce no festival Cantos e Encantos, e já perdeu a conta ao número de ensaios, atuações, festas e romarias a que emprestou a sua voz. E até hoje nunca esteve à mercê de um professor.
E, garante, nem precisou. “Todos os que são de Manhouce parece que já nasceram a saber cantar”, diz Hugo enquanto desenha a pincel, numa placa de xisto, um dos trajes tradicionais femininos da aldeia onde cresceu e vive.
Isabel Silvestre, a mais conhecida voz de Manhouce, a “Pronúncia do Norte” dada a conhecer a outras gerações por Rui Reininho, dos GNR, dirá o mesmo, mas por outras palavras: “A música anda sempre aliada a quem quer que seja, a quem quer que tenha nascido e posto o pé aqui nesta terra, nestas serras e nestes montes”.
A serra é a Gralheira e os montes, que são a perder de vista, ajudaram a preservar as tradições ancestrais desta aldeia, que foi permanecendo isolada, mas sempre permeável a quem passava.
Por estar numa rota romana e no principal caminho que ligava o Porto a Viseu, sempre foi atravessada por todo o tipo de intrépidos e mercadores, recoveiros e almocreves, construindo uma etnografia com muitas influências do Douro e da Beira Litoral. A música foi, desde sempre, uma constante. “Quem nasce em Manhouce fica logo carimbado”, diz Isabel Silvestre, com um largo sorriso.
Enquanto continua o seu trabalho à volta dos pincéis e das lousas, Hugo Gomes deixa perceber que tem muito orgulho nesse carimbo. Cresceu entre discos e gira-discos, valsas e viras, concertinas, bandolins e cavaquinhos. Pai e mãe integram o grupo folclórico, o avô foi o presidente – e agora é o seu pai, Hermínio Pedro Gomes.
E Hugo é mesmo a única voz masculina na tocata que acompanha as danças – não pode faltar, mesmo que isso implique uma viagem de cinco horas para cada lado, entre a Escola Superior de Artes e Design das Caldas da Rainha, onde estuda, e a aldeia de Manhouce, uma freguesia do concelho de São Pedro do Sul, distrito de Viseu.
E como se não bastassem as atividades do rancho – que, “felizmente, não são poucas”, diz Hermínio -, Hugo ainda tem tempo para se meter em muitas mais. Os meses de verão são sempre os mais ativos – de tal forma que Hugo brinca, dizendo que está a precisar “de férias das férias” e, por isso, precisa de regressar às Caldas da Rainha para poder descansar.
As marchas populares realizadas na véspera resultam de uma festa organizada pelo concelho: à semelhança do Santo António, em Lisboa, em que cada bairro defende a sua marcha, no dia de São Pedro cada freguesia de São Pedro do Sul também leva as suas canções e o seu desfilar à sede do município.
Em agosto, esta mesma marcha repete-se, agora nas ruas da sede da freguesia. “Para os nossos emigrantes poderem ver e para os mais idosos, que não puderam deslocar-se à sede do concelho em junho terem também oportunidade de apreciar o desfile”, explica Carlos Laranjeira, o presidente da Junta de Freguesia de Manhouce. A freguesia tem, segundo o último Censos, 466 habitantes. Mas no mês de agosto esse número facilmente triplica.
A programação do primeiro dia da semana cultural ainda deveria acabar com um baile tradicional, mas este acabou por não acontecer. Nesse mesmo dia tinha havido um casamento, um batizado, uma malha do milho e um funeral. Muitas atividades para um único dia, até para uma aldeia dinâmica como Manhouce.
Não ter havido o baile à moda antiga, como previsto, não significou uma ida para a cama mais cedo. “Os jovens arranjam sempre atividades. Depois das marchas, as raparigas foram tirar os sapatos do tacão e depois fomos todos conviver e dançar pela noite dentro. No mês de agosto estão sempre amigos, familiares, conhecidos, há festas por todo o lado… está toda a gente de férias”, diz Hugo.
Hugo também está de férias, mas só da escola. Quando acordou, foi pintar as suas lousas. Afinal, agora há uma Loja de Turismo bem junto à igreja, e são precisas recordações de Manhouce para quem quiser levar um pouco da aldeia após uma visita.
Estava, ainda, à volta dos pincéis quando ao princípio da tarde lhe passou à porta de casa uma vizinha, Fatinha do Nunes, cantadeira do rancho. Fátima Lindo – é esse o seu verdadeiro nome – é auxiliar num lar da terceira idade numa povoação a 15 quilómetros de Manhouce. Trabalha de noite e dorme de dia, mas tenta nunca faltar aos ensaios do rancho nem às atuações.
A tarde ainda é uma criança, e ela já vai apanhar erva para deixar à mãe para ela dar aos animais quando chegar de uma consulta médica. Mas, antes de ir tratar da comida do gado, Fátima não resistiu ao convite do Hugo e de Hermínio, que rapidamente se puseram a afinar a garganta e os instrumentos.
Todos os pretextos são bons para cantar, para ensaiar. Na cabeça de todos está o acontecimento dessa noite, o Cantos e Encantos, um evento onde as pessoas de todos os lugares da freguesia cantam para vizinhos e visitantes.
A ideia de organizar este Cantos e Encantos começou na cabeça de Isabel Silvestre, que pretendia juntar Manhouce a cantar todo de uma vez. No início chegou-se a temer que a população não respondesse ao repto e ninguém aparecesse à chamada para representar o seu lugar. “Nem imagina a alegria que foi quando o realizámos pela primeira vez”, diz Isabel Silvestre.
Neste ano, e depois de dois anos seguidos sem este encontro, teme-se o efeito que a Covid possa ter tido na mobilização das pessoas. “Nunca sabemos como vai ser, quem vai aparecer, que músicas vão cantar. E isso é que tem a sua piada”, afirma Hermínio Gomes.
O entusiasmo é indesmentível. E o nervoso miudinho irrefreável. Hugo e Fatinha combinam novo ensaio, agora com todos os elementos, uma hora antes da marcada para o arranque do evento. “Não podemos fazer má figura”, diz o jovem artista plástico. Anda a aprender bandolim de forma autodidata, pede ao pai para pegar no cavaquinho. Qualquer pretexto é bom para pôr três vozes a cantar. Tenha ou não que ver com o espetáculo dessa noite. O que importa é cantar. Haja maiores ou menores preparativos.
Os preparativos
No Sequeiro, um dos lugares que integra a freguesia de Manhouce, Custódia foi pedir a Celeste Duarte que lhe costurasse o avental do traje. Afinal, pela máquina de costura da Ti Celeste passou praticamente tudo o que é traje do Grupo Folclórico de Danças e Cantares.
É costureira desde os 13 anos e dona de uma gargalhada luminosa e de uma alegria contagiante. Celeste já não tem voz para cantar, foi operada à garganta. Nem tem pernas que lhe permitam grandes danças – também foi operada às ancas, há 35 anos, e explica que “não foram os ferros que se romperam”, mas são “os ossos que já não seguram os ferros”. Aos 85 anos, Celeste continua “a dar baile” a quem a visita porque precisa de um favor de costura, ou só porque gosta de a ver soltar a língua e conversar.
A Celeste do Alves, como, afinal, diz que é conhecida por todos, nasceu no Salgueiro, no cimo da freguesia. Desceu para o Sequeiro depois de casar, foi nora e esposa de regedor, e pagou muito do trabalho que fizeram nas terras da sua família com peças de roupa que costurava. Vestia tudo e todos, e abraçou com entusiasmo o desafio de fazer os trajes do Rancho Folclórico de Manhouce e do Grupo de Danças e Cantares.
Começou a fazer para as crianças, não demorou a fazer para os adultos; primeiro numa máquina de mão que a avó trouxe do Brasil, depois numa máquina de costura que saiu da recém-instalada fábrica da Oliva em São João da Madeira. A fábrica já fechou – e é agora um centro cultural -, mas a máquina de Celeste ainda responde aos vários desafios que a costureira lhe propõe.
Celeste compõe o avental de Custódia não sem antes lhe arrancar gargalhadas com algumas das suas provocações – “não gosto de deixar nada por dizer”, brinca Celeste, lembrando que houve muito quem tirasse o curso de costura e pouco quem se ajeite na máquina a trabalhar. Celeste ainda recebe muitas encomendas, mas já se dá ao luxo de só aceitar algumas.
Ainda assim, tem consciência de que é a última que consegue fazer a blusa de trabalho ou uma blusa domingueira, com as suas rendas e tufados, com a rapidez “de quem ergue ao vento”. “Quando eu morrer, não há quem faça. Não me estou a pôr alta, nem baixa, que agora até já estou velha. Mas Deus me conserve que eu não tenho pressa nenhuma”, afirma.
Celeste Duarte diz que os netos são a sua maior alegria, e António Manuel, com 25 anos, afirma ter o “privilégio” de ser quem mais histórias ouve à sua avó – “venho cá todos os dias meter-me com ela, ver o que ela anda a fazer!”.
António trabalha numa oficina de automóveis em Vale de Cambra, mas tem sempre tempo para puxar de um banco e sentar-se ao lado da avó, para lhe ouvir “as histórias”. E também tem tempo para participar nas atividades da aldeia: no Cantos e Encantos estará de viola na mão ao lado dos vizinhos, a representar o lugar de Sequeiro. Com ele estará a mãe, Sandra Costa, tesoureira da Junta de Freguesia, membro das Vozes de Manhouce e uma das principais dinamizadoras das atividades da aldeia.
No evento, cada lugar da freguesia vai ter oportunidade de cantar três cantigas – e deve com elas surpreender os lugares vizinhos. Nunca foi pensado para ser uma competição. E não é. “Mas cada lugar quer cantar melhor que o outro, porque depois já se sabe que vão comentar que este lugar cantou bem, que o outro era melhor, que este falhou isto e aquilo”, explica Laurinda Rato.
Laurinda, três filhos, cinco netos e um bisneto, emigrou para França aos 21 anos de idade. Mas já regressou de vez à Sernadinha, o lugar onde nasceu, há quase cinco anos. Dois dias antes do encontro, Laurinda e os vizinhos estiveram a ensaiar até às 23h00. Na véspera do encontro haverá um último ensaio. “Vamos ver como corre. Já sabemos que as da Bustarenga afinal não vêm. Em respeito a uma das mulheres de lá, que foi a enterrar. E toda a gente compreende”, afirma.
Hugo Gomes acabou por ser o único elemento masculino no grupo que vai representar Manhouce. Nada que o incomode, ou a que não esteja habituado. O que o incomoda é assistir a alguma resistência a integrar estes eventos e atividades – e é para a combater que canaliza as suas energias. “Um dia isto vai acabar e nós temos de aproveitar enquanto temos as atividades vivas, e participar nelas, dar-lhes força”.
E se o barómetro da longevidade destas atividades for medido pelo número de pessoas que acorreu à aldeia para participar e assistir ao evento, fica a certeza de que ele vai continuar por muitos anos. A escadaria defronte da igreja matriz – igreja essa que serviu de hospital de sangue durante as guerras napoleónicas – é o palco da última música entoada por cada um dos grupos. Mas, antes disso, cantadores e população andaram pelas ruas da aldeia, qual via sacra com paragem em várias estações. E todos os lugares cantaram duas vezes, em sítios diferentes.
O evento
O Cantos e Encantos tornou-se rapidamente num dos momentos altos da programação da aldeia de Manhouce, momento que rivaliza com os “concertos” que o povo dá na Páscoa – no sábado da Aleluia – e no Natal. Não é exagero dizer que é o povo quem dá os concertos, porque é o povo todo que participa.
Se num passado não muito distante era junto ao berço dos recém-nascidos, junto à lareira ou à panela da cozinha e, sobretudo, durante a lida dos campos, que se ouvia o canto a três vozes que é agora candidato a Património Imaterial da Humanidade, agora é em eventos como este que se comprova que o cancioneiro local é rico e que gente de todas as idades o conhece e o entoa.
O evento é conduzido pelo padre Cristóvão, que apresenta os grupos e anuncia as músicas. Os grupos são sete (Carregal, Gestosinho, Lageal, Manhouce, Sequeiro, Sernadinha e Vilarinho) e as paragens pela aldeia são várias, com as placas onde estão inscritos os nomes das casas a servir de referência quer para o grupo, quer para a população.
As placas são mais uma iniciativa feliz que ajuda a localizar os seus habitantes. O nome das casas pode ser atribuído ora pelo apelido ou nome de família, ora por alguma característica física que a distinga das outras. João Serra, 45 anos, está ao lado da Casa da Laija – “porque a casa está montada sobre uma laje grande, de granito, que lhe serve de fundação”. Continua a ser a casa dos pais.
Ele, que decidiu regressar a Manhouce depois de 16 anos ao volante de camiões pelas estradas de França, está também a reconstruir a sua, logo ao lado. E ainda está a reconstruir, também, outro imóvel que pretende colocar no Alojamento Local.
“Fui por dois anos e fiquei 16. Mas por cá também há que fazer e sempre há um pouco mais de sossego”, explica, invocando a proximidade dos pais e a tranquilidade dos dias para justificar a opção de regressar definitivamente a Manhouce. “Não há dinheiro que pague a gente estarmos na nossa terra. E, quando morrermos, não levamos nada desta vida, fica cá tudo. Ter muito ou pouco é uma ilusão. Basta ter o essencial para viver”, afirma.
João assistiu às marchas, esperou pelo baile, não vai falhar o Cantos e Encantos. Desta vez ainda não sobe ao palco. Para o ano, quem sabe? “Estou a pensar integrar o rancho outra vez”, adianta, depois de revelar que já tinha feito parte durante mais de 20 anos. “Temos de dar continuidade às organizações da nossa terra, estar ligados a tudo. À Junta de Freguesia, ao folclore, ao centro de dia… é preciso dinamizar para as coisas poderem andar para a frente”, defende.
Essa é a postura de Isabel Silvestre desde sempre. A professora da casa da Benta, como é conhecida e chamada, é talvez a habitante mais conhecida de Manhouce, e uma espécie de embaixadora que levou o canto tradicional polifónico a todo o mundo.
Nascida numa tradicional casa de família, Isabel escolheu ser professora primária, e preparou-se para isso. E conseguiu mesmo dar aulas na escola primária de Manhouce, aos meninos e meninas da primeira e segunda classes. Ao longo de toda a sua vida entregou-se sempre, de corpo e alma, às tradições da sua aldeia e ao património artístico e cultural que sempre valorizou.
E também procurou desenvolver socialmente a sua freguesia. Candidatou-se, e foi eleita, Presidente da Junta de Freguesia como independente. Lançou as bases para o Centro Social que hoje existe; reconstruiu uma unidade de Turismo Rural, que a pandemia paralisou, mas que pretende voltar a reabrir.
Isabel Silvestre continua cheia de planos – já publicou o “Cancioneiro Popular de Manhouce” e um livro de culinária, “Doçuras”, mas diz que ainda tem muito espólio para organizar.
E continua, também, cheia de projetos: no cimo da aldeia, há um terreno que se está a transformar numa espécie de santuário da natureza, onde as árvores e as pedras se estão a acomodar para receber uma espécie de anfiteatro, ou palco. “Este lugar ainda não está pronto, nem foi ainda batizado. Mas ainda hei de ter isto pronto e cantar aqui para toda a minha gente – até agora, tenho vindo cantar aqui sozinha, a olhar para o céu e o céu a olhar para mim”.
As Vozes
Com 81 anos, Isabel Silvestre continua cheia de energia. Tem procurado canalizá-la, também, à passagem de testemunho e preparação de um legado. A escola primária onde aprendeu – e deu aulas – foi também sede dos ensaios do grupo de canto polifónico feminino “Vozes de Manhouce”, que fundou em 2008.
Mais de 25 anos depois do reconhecimento alcançado com o Grupo de Cantares, 16 anos depois do lançamento da Pronúncia do Norte, uma faixa do álbum dos GNR “Rock in Rio Douro” que havia de receber quatro vezes o disco de platina, e três anos depois de receber, a 10 de junho de 2005, a comenda da Ordem do Infante D. Henrique, outorgada pelo então Presidente da República, Jorge Sampaio, Isabel Silvestre reuniu um grupo de meninas e mulheres para preparar um repertório.
Sara Gonçalves tem agora 25 anos, e lembra-se bem desse primeiro ensaio. “Foi a 23 de dezembro de 2008. E o primeiro concerto foi a 25 de abril de 2009. Cantámos o “Embalo” e a “Andorinha Ligeira”, éramos tão pequeninas!!!”, recorda.
Sara não esconde o momento impactante que foi aquele arranque, nem o percurso feliz que tem vivido com o grupo. “Ensaiávamos na escola primária, na sala do lado direito. E todas as semanas havia alguém que levava um bolo, de forma rotativa. Nós levávamos um bolo e o professor Alexandrino trazia-nos pastéis de Vouzela”, relembra.
Essa formação inicial durou uns sete anos, as vozes eram acompanhadas por Alexandrino, ao piano. Com a saída do professor de música, o grupo segue apenas a capella, e apenas com repertório tradicional. É este canto polifónico, a três vozes, exclusivamente feminino, que é agora candidato a Património Cultural Imaterial da Humanidade.
Em Manhouce, as três vozes são o baixo, o raso e o riba. Noutras aldeias vizinhas, as vozes têm outro nome. Mas o princípio é o mesmo. Mais do que o nome formal dado às vozes, sobressai a forma intuitiva com que as pessoas cantam. E isso é visível no Cantos e Encantos.
Na edição de 2022 houve algures lugares que não se fizeram representar – por exemplo, em respeito por um recém falecido, como em Bustarenga -, mas também houve um lugar representado apenas por uma voz. A placa do lugar de Gestosinho foi levantada à custa da persistência da Ti Altina “Não há quem bote o raso, nem quem bote mais vozes. Vim sozinha, estou cá eu”, disse. Altina foi muito aplaudida pelo seu gesto. Não esteve sozinha muito mais tempo.
A terceira atuação de cada grupo é feita junto ao largo da igreja. E, no final, quando já todos atuaram, juntam-se no palco e cantam em conjunto. No final das atuações, o padre Cristóvão preparava-se para encerrar o evento, não sem antes dirigir umas palavras às centenas de presentes, pensando naqueles que podiam ter estado na aldeia pela primeira vez. “O canto é a alma deste povo. Manhouce é a única terra do país onde se canta por duas razões: por tudo e por nada”.
Isso foi visível, mais uma vez, naquela noite. “Se alguém arrancar com uma cantiga onde quer que esteja o raso, onde quer que esteja o baixo, onde quer que esteja o riba… a verdade é que pouco depois vai encontrar tudo afinado”, tinha avisado Isabel Silvestre umas horas antes do evento. E depois de terem cantado todos os grupos voltou a demonstrá-lo, arrancando com sucessivas cantigas.
“Eu costumo dizer que em Manhouce até as pedras cantam”, diz Isabel Silvestre. Não há como desmenti-la.
Veja também o guia prático com o que fazer em Manhouce.
Mais sobre Manhouce
O que fazer em Manhouce (guia prático)
Guia com tudo o que precisa saber para visitar Manhouce, no concelho de São Pedro do Sul (Viseu). Inclui o que fazer na aldeia – monumentos, mosteiros e passeios -, onde ficar hospedado, mapas e contactos úteis.
Isabel Silvestre, a voz
Tem 81 anos, mas é como se tivesse 18 se em causa estiver a força de vontade e as coisas que ainda quer fazer. Sempre em prol das tradições da aldeia em que nasceu. Isabel Silvestre, a professora da Benta, correu mundo. Com Rão Kyao, com Rui Reininho, com Vitorino, com as Vozes de Manhouce. Ela é a Pronúncia do Norte, e está agora empenhada em levar o canto de mulheres a três vozes a Património Cultural Imaterial.
Celeste Duarte, a costureira
Andou nas minas a apanhar volfrâmio, andou nas terras a lavrar milho, andou a sachar batatas. Mas é como costureira que se apresenta, se sente e se mostra. Ti Celeste, a Celeste do Alves, Celeste Gomes tem 85 anos, olho azul, memória viva e uma alegria de viver imbatível. Todos os trajes do Rancho de Manhouce lhe passaram pelas mãos. Diz que o melhor da vida e o melhor do mundo são os netos.
Hugo Gomes, o artista
É cantador no rancho e também sabe tocar bandolim e dançar. Tem 22 anos, está a terminar a licenciatura em Artes Plásticas e admite que gostaria de ser professor de desenho numa escola secundária. O que não concebe é desvincular-se das tradições de Manhouce e dos costumes da aldeia onde cresceu e onde vai todos os fins de semana, sem exceção. Hugo Gomes pinta lousas com os trajes tradicionais e é o mentor do projecto Amanhouçar, no qual recolhe as tradições e costumes, recentes e antigos, da aldeia que o apaixona.