É cantador no rancho e também sabe tocar bandolim e dançar. Tem 22 anos, está a terminar a licenciatura em Artes Plásticas e admite que gostaria de ser professor de desenho numa escola secundária. O que não concebe é desvincular-se das tradições de Manhouce e dos costumes da aldeia onde cresceu e onde vai todos os fins de semana, sem exceção. Hugo Gomes pinta lousas com os trajes tradicionais e é o mentor do projeto Amanhouçar, no qual recolhe as tradições e costumes, recentes e antigos, da aldeia que o apaixona. Eis o seu testemunho.
“Eu vou, eu corro, eu percorro mas o meu lugar é aqui”
Chamo-me Hugo Gomes, tenho 22 anos, estou a estudar Belas Artes nas Caldas da Rainha e participo, com muito orgulho, em todas as atividades organizadas aqui na aldeia de Manhouce. Nasci e cresci no meio do rancho – o meu avô foi o presidente, agora é o meu pai -, sempre estive rodeado de música, de danças e de cantares.
Oficialmente, eu sou cantador no rancho. Mas, na verdade, canto, toco, danço, participo nas marchas populares que organizamos em junho no concelho. Estou muito envolvido em todas as atividades da minha aldeia.
Se uma pessoa está tão enraizada nestas tradições, como eu estou, custa faltar [aos ensaios do rancho]. Temos compromisso e temos brio.
Hugo Gomes
Atualmente temos dois grupos muito ativos – o Vozes de Manhouce, onde por agora só cantam mulheres, e o Rancho Folclórico da Casa do Povo de Manhouce. Mas, na verdade, toda a população da freguesia participa nas atividades, mesmo sem pertencer a nenhum destes grupos. A população sabe cantar e, sempre que é solicitada ou quando é preciso, há alguém que dá uma mãozinha.
Não sei como é que apareceu este gosto de cantar. Os meus pais sempre me puseram a ouvir música, tínhamos muitos CD em casa, ouvia muito o grupo tradicional. A primeira abordagem de andar a cantar foi no autocarro, quando ia para a escola.
Em 2008 apareceu o grupo Vozes de Manhouce. Nessa altura entraram para o grupo as meninas mais novas, que eram minhas colegas, e começaram a aprender a colocar as vozes e a cantar. E eu beneficiei disso, porque todos os dias, no caminho para a escola, entre Manhouce e Santa Cruz da Trapa, passávamos uma boa meia hora, 40 minutos, sempre a cantar no autocarro. Foi uma primeira abordagem, mais direta, que me permitiu estar no meio de pessoas a cantar e a fazer alguma coisa.
Depois foi o rancho que também recebeu um novo impulso e começaram a ensinar às crianças as danças, as músicas. Foi aí que eu comecei a interessar-me mais. Depois, quando surgiu o rancho, eu comecei a cantar. No início foi difícil, porque tinha de saber bem as letras, não me podia enganar; saber quando começava, quando parava. E na verdade nunca tive aulas de canto com ninguém.
Mas depois comecei a gostar, comecei a dar conta que existem várias vozes, a perceber a polifonia, a aprender a pôr vozes.
As coisas começaram a ficar mais profissionalizadas, a ter uma nova dinâmica. Antigamente era um bocado ao calhas, era à sorte. Nem havia quadras fixas, muitas vezes era improvisado. Por exemplo, o “Tareio”: esta música tem uma letra agora; mas antigamente era uma coisa qualquer, improvisava-se muito e depois havia quadras que ficavam.
No rancho era a mesma coisa. Não havia ensaios, não havia preparação. Hoje em dia, nós precisamos de ter essa preparação, em termos performativos. É uma escolha que nós fazemos.
Havia muitas oportunidades de atuações, começou a organizar-se a Festa da Vitela e outros eventos. As próprias pessoas ficam empenhadas a preparar e a ensaiar espetáculos, para terem o que apresentar quando chegam essas festas.
O rancho mantém as músicas e as danças desde que foi formado em 1938, para participar no concurso da Aldeia Mais Portuguesa de Portugal. Nós tentamos manter a linhagem. Os nomes foram mudando: foi Rancho de Manhouce, Rancho Regional de Manhouce, Rancho Folclórico da Casa do Povo de Manhouce. Agora nem fazia sentido usarmos a Casa do Povo, mas continuamos a usar o que temos. Na verdade, e no fundo, somos o Rancho de Manhouce e é por esse nome que as pessoas nos conhecem. Neste momento somos uns 60 a 65 elementos, e os fixos são sobretudo as crianças e o pessoal que está na aldeia o ano todo.
Ainda há muitas crianças na aldeia, apesar de haver poucas na escola primária. Aliás, a escola primária mantém-se aberta porque é muito longe irem para Santa Cruz da Trapa, tão pequeninos. Mas uma boa parte das crianças e adultos nem está cá durante a semana, porque vivem em São Pedro do Sul, Oliveira de Frades, ou outras cidades; e vêm ao fim de semana. No fim de semana a população da aldeia duplica. Em agosto, com os emigrantes, sei lá, mais do que triplica! Quando chegam as férias, ninguém sai daqui!
Eu, por exemplo, comecei a ficar fora durante a semana apenas no ano passado. Fiz a escola primária na aldeia, comecei a ir para Santa Cruz da Trapa para o ciclo. Andei lá até ao nono ano, mas a partir do décimo fui para Viseu. Percebi que tinha jeito para o desenho – aliás, era a única disciplina de que gostava, e a minha professora de Educação Visual explicou-me que havia cursos de artes plásticas em Viseu, que não tínhamos todos de ir para Científicos ou para Humanidades. E falou-me de duas escolas que lá havia, com Artes. Acabei por ir para a Viriato.
Levantava-me às 5h30 da manhã e só chegava às dez da noite a casa. Mas deu certo. A minha mãe levava-me todos os dias a São Pedro do Sul, e eu chegava a Viseu às 7h45/7h50, porque o autocarro ainda ia dar umas voltas, não era direto. Eu ainda chegava a tempo de ir tomar um cafezinho, ou ir para casa de colegas que viviam na cidade, e que os pais também saíam cedo, e lá nos arranjávamos todos para irmos para a escola, às 8h30. Criei uma rotina diferente, criei lá amigos que tenho até hoje.
Ir para Artes não foi uma escolha. Foi um desafio. Perguntaram-me: porque não vais? Eu pensei: vou experimentar. Fui, e dei-me bem. No primeiro ano gostaram de mim e do meu trabalho. No segundo ano também. No terceiro ano até havia boas notas, e eu perguntei à minha professora se achava que devia continuar a estudar. Sonho ou não sonho? Ela dizia, vai! E eu fui.
Fui para Artes Plásticas nas Caldas da Rainha, ando na Escola Superior de Artes e Design. Vou agora para o terceiro ano. Comecei na pandemia, por isso passei o primeiro ano todo com aulas em casa. Acabou por ser bom por me obrigar a ter outros cuidados, por exemplo, como fotografar os trabalhos, como mostrar o que fazia.
No segundo ano já fui viver para as Caldas da Rainha e adorei a experiência. Mas ao fim de semana estava sempre aqui em Manhouce, não falhava os ensaios, tive essa responsabilidade. Foi um bocado agressivo, vir todos fins de semana. Eram quatro horas cada viagem, sempre em transporte público. Às vezes até eram cinco horas, porque tinha de mudar de autocarro em Coimbra e ficar uma hora à espera. Mas nunca falhei o compromisso.
Gosto muito da minha vida nas Caldas da Rainha e do trabalho que lá faço. Não tenho uma direção certa, trabalho com várias coisas. A escolha é não ter de escolher. Se me apetecer trabalhar com papel, trabalho com papel. Se me apetecer trabalhar com uma tela, uma cerâmica, avanço. O que for. Aparentemente, o que lá faço – escultura, pintura, fotografia, desenho – não tem nada que ver com Manhouce. Mas no fundo tem. É daqui que eu venho, é daqui que eu sou.
Agora vou para o terceiro ano e na verdade gostava de continuar a estudar, e seguir a via ensino. Gostava de ser professor de desenho. Em qualquer sítio. Sou livre. Eu consigo conciliar tudo, há tempo para tudo. É como se eu tivesse duas vidas, mas tudo se faz. É preciso gostar, sim, fazer sacrifícios. Mas também é difícil abandonar o que aqui tenho. Digo sempre isto: não sou eu que faço, não és tu que fazes, somos todos juntos. Se um começa a sair, outros começam a abandonar, as coisas acabam.
O segredo para mantermos as coisas vivas, quando toda a gente tem uma vida e toda a gente é livre, é mesmo ainda haver muita gente na aldeia. Uns vão substituindo outros. Pode acontecer não estar toda a gente, mas estará sempre gente suficiente. Claro que em alguns casos é mais fácil substituir que noutros, nas danças pode faltar um par ou outro. A cantar, eu sou a única voz masculina, é mais difícil faltar.
Se uma pessoa está tão enraizada nestas tradições, como eu estou, custa faltar. Temos compromisso e temos brio. E nós temos muitas solicitações ao longo do ano. Os meses mais parados são no inverno; mas quando começa a chegar a Páscoa, e nós preparamos a visita pascal, e os cânticos do Aleluia, que são uma tradição muito importante aqui, há sempre muitas atividades.
Criei um projeto de recolha de material, memórias, entrevistas, fotos, áudios, vídeos. Chamo-lhe Amanhouçar, e ali capto tudo o que conseguir, antigo e recente.
Hugo Gomes
A Páscoa em Manhouce é uma coisa única. Além de se ouvir cantar o Aleluia, e de ser uma coisa arrepiante, na visita pascal toda a gente vai a casa de toda a gente. Demoramos uma tarde só para fazer um lugarzito como este. As pessoas não cabem nas salas com as mesas cheias de comida, doces, salgados, vinhos, cerveja, presunto, chouriças. É uma fila que vai dar a volta a casa, para beijar a cruz.
No ano em que o padre está cá – ele só faz a visita de três em três anos – bem reclama, a dizer que temos de nos despachar. Mas não adianta nada. E nos anos em que o padre cá não está, demora na mesma. Em cada lugar há uma pessoa que é benzida e que vai com a cruz, outra vai recolher o dinheiro, outra está com a água benta, outra com a campainha. E eu dizia que não ia todos os anos, mas acabava sempre por ir, por ter uma dessas funções.
Só este ano fiz birra e não fui mesmo. Também quero poder estar em minha casa, ou ir a casa de alguém, e ficar a comer e a beber… Em vez de estar preocupado que tenho de ir para a casa seguinte.
São dias muito cheios. E em Manhouce há muitos assim. Depois da Páscoa é a Festa da Vitela. Depois são as marchas populares, depois vem o verão e há festas por todo o lado. Eu, por exemplo, precisava de ir às Caldas da Rainha buscar algumas coisas e ainda não consegui sair daqui. Há sempre festas, atividades, encontros com os colegas, coisas combinadas, festas daqui a dali.
Depois do verão as coisas acalmam, mas pouco. Há as festas das colheitas; depois das colheitas é o magusto; depois do magusto é o Natal. Passa-se sempre alguma coisa, estamos sempre a preparar a próxima. Só os meses de janeiro e fevereiro são mais parados, mas temos sempre ensaios. E ainda bem, assim temos sempre pretexto para nos encontrar.
O que eu mais gosto da vida em Manhouce é mesmo da nossa comunidade. Eu vivo no cimo da aldeia e gosto de ir ali abaixo e ter toda a gente a cumprimentar-me e a falar comigo. Ou seja, eu vou lá abaixo e é como se estivesse aqui em cima. É como se Manhouce todo fosse a casa, a minha casa. Isso é ótimo.
A verdade é que, mesmo em termos profissionais, já comecei a ter projetos relacionados com Manhouce. Criei um projeto de recolha de material, memórias, entrevistas, fotos, áudios, vídeos. Chamo-lhe Amanhouçar, e ali capto tudo o que conseguir, antigo e recente. Essa recolha acaba por me ser muito útil também no artesanato, outra linha de trabalho que comecei a desenvolver.
Aqui em Manhouce as casas das pessoas têm todas uma placa identificativa, com o nome da família que lá vive. Pensei em usar essas placas para fazer artesanato, e pintar representações dos nossos trajes, da nossa cultura. E agora essas peças estão à venda na Junta de Freguesia, e no Posto de Turismo que agora temos aqui na aldeia. Também faço alfinetes com os nossos chapéus tradicionais. É uma forma de quem nos visita levar uma recordação.
As lousas que pinto e vendo são um retrato fiel das nossas tradições. Quem compra uma lousa destas não compra só uma pintura. Compra o feitio das blusas, o feitio do ouro. Uma pessoa que saiba de folclore consegue identificar uma medalha, um adereço, uma gramalheira. Consegue perceber que as vestes são de veludo, a arregaça que têm, o feitio das blusas… as pregas, os pormenores, os tomados. Também para isto o meu projeto Amanhouçar é tão importante.
Sei que quero ter sempre aqui a minha casa, mas o meu trabalho pode ser fora. Eu sou muito mais do que estar aqui. Eu gosto da cidade, gosto do ambiente citadino, do movimento. Gosto de chegar à universidade e ter muita gente que não conheço. Gostava de tirar a licenciatura em Educação, ser professor de Educação Visual em qualquer sítio.
Eu vou, eu corro, eu percorro, mas o meu lugar é aqui. No fundo é isto. Acho que dá para conciliar tudo. Sou livre, posso ser o Hugo Gomes, o que canta no rancho e o que participa em tudo o que pode e consegue na aldeia, e ser, ao mesmo tempo, o Hugo Crychann, que é o nome com que eu assino os meus trabalhos nas artes plásticas. Há tempo para tudo.
Mais sobre Manhouce
Manhouce, a aldeia onde até as pedras cantam
“A música anda sempre aliada a quem quer que tenha nascido e posto o pé aqui nesta terra, nestas serras e nestes montes”. A terra é Manhouce, a serra é a Gralheira e os montes são de perder de vista e vestem um inesquecível traje de gala quando as giestas os pintam de amarelo. A frase é de Isabel Silvestre, a mais conhecida voz de Manhouce, e enquadra o sentimento de pertença que os habitantes desta aldeia de São Pedro do Sul têm para com as suas coletividades e tradições.
O que fazer em Manhouce (guia prático)
Guia com tudo o que precisa saber para visitar Manhouce, no concelho de São Pedro do Sul (Viseu). Inclui o que fazer na aldeia – monumentos, mosteiros e passeios -, onde ficar hospedado, mapas e contactos úteis.
Isabel Silvestre, a voz
Tem 81 anos, mas é como se tivesse 18 se em causa estiver a força de vontade e as coisas que ainda quer fazer. Sempre em prol das tradições da aldeia em que nasceu. Isabel Silvestre, a professora da Benta, correu mundo. Com Rão Kyao, com Rui Reininho, com Vitorino, com as Vozes de Manhouce. Ela é a Pronúncia do Norte, e está agora empenhada em levar o canto de mulheres a três vozes a Património Cultural Imaterial.
Celeste Duarte, a costureira
Andou nas minas a apanhar volfrâmio, andou nas terras a lavrar milho, andou a sachar batatas. Mas é como costureira que se apresenta, se sente e se mostra. Ti Celeste, a Celeste do Alves, Celeste Gomes tem 85 anos, olho azul, memória viva e uma alegria de viver imbatível. Todos os trajes do Rancho de Manhouce lhe passaram pelas mãos. Diz que o melhor da vida e o melhor do mundo são os netos.