Tem 81 anos, mas é como se tivesse 18 se em causa estiver a força de vontade e as coisas que ainda quer fazer. Sempre em prol das tradições da aldeia em que nasceu. Isabel Silvestre, a professora da Benta, correu mundo. Com Rão Kyao, com Rui Reininho, com Vitorino, com as Vozes de Manhouce. Ela é a Pronúncia do Norte, e está agora empenhada em levar o canto de mulheres a três vozes a Património Cultural Imaterial. Eis o seu testemunho.
“Eu olho para trás e fico com a alma lavada”
Chamo-me Isabel Gomes Silvestre, tenho 81 anos, e aqui na aldeia todos me conhecem como a Isabel da Benta, ou a professora da Benta. Nasci e cresci numa casa grande, uma família de 14. Pai, mãe, cinco filhos, três tias, depois começaram a vir os sobrinhos. Uma casa cheia. E havia todas as pessoas que trabalhavam na casa e que consideramos família. O avô casou duas vezes, e a primeira mulher era Benta – começou a chamar-se Casa da Benta, e assim ficou até hoje.
Quando mando rezar missas é sempre pela família da Casa da Benta e os trabalhadores. Não haja dúvida nenhuma que os obreiros foram eles também. Eles ajudaram a criar, trabalhavam nas terras e estavam sempre aqui connosco. O professor Hermano Saraiva esteve cá e, ao passar naquelas escadas e olhando para a nossa casa disse, “estas pedras estão carregadas de ternura”. Achei que tinha de escrever isso mesmo numa pedra. E ali está.
Eu costumo dizer que em Manhouce até as pedras cantam.
Isabel Silvestre
Acho que o que faz toda a gente estar bem, sentir-se bem, é fazer aquilo de que se gosta e fazer aquilo que os outros gostam que se lhes seja feito. Ou, em poucas palavras, fazer aos outros o que gostarias que te fizessem a ti. Por isso tenho sempre vivas as memórias da família, da casa que me acompanhou sempre. Esta casa tinha 14 pessoas e agora estou cá sozinha. Mas estão sempre comigo. Regar as flores que foram plantadas pelas tias e pisar esta terra que pisámos todos. E, portanto, é a sexta geração que esta casa tem e é aqui neste lugar, e dentro dessas vivências e dessas recordações, que eu me sinto bem.
Fui para o secundário em São Pedro do Sul, fiz o Magistério Primário em Viseu, fui professora primária em muitos sítios, e em Manhouce também. Ter crianças na mão é das coisas mais bonitas que pode acontecer. E eu tive a sorte de ter os pequeninos logo na primeira fase. Dava aulas à primeira e à segunda classe antigas. Ninguém queria pegar na primeira fase, porque dava mais trabalho, porque era preciso ter mais atenção, porque eram pequeninos, estavam a sair do ninho, digamos assim, de casa para a escola. Mas era disso que eu gostava. Porque tinha-se na mão uma massa que nós podíamos levedar à nossa maneira, não é?
Eu levava o plano da escola feito. Pensava, na segunda este vai fazer as cópias, aquele vai fazer leituras, aquele vai fazer contas, aquele vai fazer não sei o quê. Mas chegava lá e fazia tudo ao contrário. Bastava chegar à entrada da escola e acontecer uma coisa qualquer. Um pássaro, por exemplo. Se aparecesse ali um passarito, a gente pegava no pássaro e era uma festa. Fazia-se ali a aula toda a partir de um pássaro. E quem diz um pássaro diz outra coisa qualquer.
Portanto, os dias nunca são iguais e eu nunca sei o que é que me vai acontecer no dia a dia. Mas, num dia normal, ou se começava ou se acabava a cantar. E às vezes havia dias em que se começava e acabava. Quem passasse na escola primária pelas minhas mãos tinha de saber cantar e dançar. Era certo e certinho. E, se voltasse à escola e voltasse a ter 20 e poucos anos, penso que faria tal e qual.
Fui professora durante uns 10 ou 15 anos, mas depois apareceu a música e eu tinha de escolher. Porque eu saía muito e as crianças não têm culpa nenhuma. Havia alturas em que eu estava 8 ou 15 dias fora. Os miúdos não tinham culpa nenhuma da professora andar neste andarilho e ter agora um e ter agora o outro… não dava. Mas o diretor escolar na altura foi espetacular… Disse: “Ó rapariga, tu ficas ligada ao ensino. Há muito quem dê aulas, quem canta não… Portanto, tu cantas e fazes outros trabalhos”. Foi nessa altura que eu fiz a recolha para o cancioneiro, e que fiz o livro “Memória de um Povo”. Já fiz inúmeras recolhas do saber e da riqueza que a aldeia tem, desde provérbios, adivinhas, contos, orações, rezas…
Há um pequeno cancioneiro, que já está feito, mas eu gostava de organizar o espólio e passar à escrita essas memórias, contos, maneiras de falar e de se expressar – o que vai ser difícil, porque eu não paro num ramo verde, ando sempre um saltarilho de um lado para o outro.
Vamos lá ver se consigo deixar isso pronto, porque mesmo quando eu penso que está pronto, estará pronto apenas naquilo que eu sei e que fui aprendendo. Porque nos encontros que fazemos todos os anos aparecem sempre cantigas novas – ou muito antigas, mas com novas roupas que a gente até fica espantada.
Isso faz-me lembrar uma vez em que estávamos a gravar um disco para Timor, em que estava o Vitorino. Sabe como são essas gravações: agora vai um e grava, depois vai outro e grava, e no fim faz uma saladinha bem feitinha com sal, vinagre e azeite e sai um disco bonito. E nós estávamos os dois à espera. Ele pôs-se a dormir, deitou-se no maple, pôs o chapéu à moda alentejana na cara e eu fiquei ali ao lado…
Pensei, ora agora tenho aqui este amigo a dormir, o que vou fazer? Pus-me a cantarolar baixinho. E às tantas ele dá um pulo, como se alguém o tivesse picado… “Ei, ei, ei, de quem é essa música?”. Era uma música de Manhouce, claro. Mas eles também a tinham no Alentejo. Está a ver as trocas? Manhouce deixou, Manhouce trouxe. Estão sempre a acontecer coisas novas.
O espólio parece interminável, mas eu não tenho nenhuma angústia com isso. Eu queria deixar gravado e tratado aquilo que sei. Já estamos a fazer o levantamento para que isso fique entregue em boas mãos, que o saibam estimar e que sejam leituras e documentos para aqueles que vierem a seguir poderem beber nessas fontes.
Bem sei que tudo isto é mais difícil do que nunca, mas quando as coisas não são difíceis também não têm graça nenhuma. É trabalhar. E ir para a frente.
A comunidade e as coletividades
Manhouce sempre teve muitas organizações e coletividades. E eu desde muito nova que as integro e as impulsiono. A primeira organização a sério fez-se em 1938 para participar no concurso da Aldeia Mais Portuguesa de Portugal. Manhouce não ganhou, mas preparou-se para se mostrar. Depois disso houve altos e baixos. Começou a emigração em força, havia mais dificuldades na parte dos homens. Ficaram as mulheres a cantar. E depois, no verão, havia a possibilidade de se juntarem em bailes. Ter um grupo organizado nem sempre era possível. Não havia muitas saídas daqui da região, atuávamos sempre nas proximidades.
Eu entrei para o rancho ainda pequena. Fui para lá aos 12 anos e eles queriam que eu só cantasse, e eu queria era dançar. Foi uma guerra. Mas depois lá acabei por dançar e cantar. O grupo foi tendo muitos nomes [Orfeão de Manhouce, Conjunto de Manhouce e Grupo de Cantares Regionais], até que em 1981 acabámos por fundar um grupo novo, o Grupo Etnográfico de Cantares e Trajes de Manhouce. E com esse grupo é que já se viajou muito.
A ideia de fundar este grupo foi quase um acaso. Começou tudo quando veio um padre novo para a freguesia e quisemos fazer uma missa cantada. Juntou-se um grupo de raparigas e fomos cantar na missa. Entretanto, depois conseguimos um ou dois que tocavam viola, e as coisas começaram a ficar mais organizadas. O padre entrou em contacto com o Álvaro Duarte, um professor de música de São Pedro do Sul. O padre dava-lhe alimentação e dormida e ele vinha cá todos os sábados ensaiar. E organizou-se uma tuna. Os rapazes que fizeram parte desse grupo ficaram já com umas ideias de música. Depois juntou-se o mestre Silva, orientador do grupo de cantares, que também veio ver o que iria dar. Acabou por se juntar o grupo de cantares, aquilo foi afinando. E começámos a cantar na missa com instrumental, o que na época causou algum furor… Ora, violas na igreja! As comadres diziam que não tinha jeito nenhum!
Foi a partir daí que as coisas evoluíram. Um dia fomos até à Casa de Lafões, em Lisboa, cantar umas cantigas. Mas foi quase uma coisa de família, um primo fazia parte da direção, chamou-nos. Não era grupo organizado, não era nada. Mas estava lá um elemento do turismo de São Pedro do Sul, que falou comigo a perguntar se não queríamos ir ao Festival no Algarve. Eu disse “nós queremos, nós queremos” … mas nunca mais me lembrei daquilo. Não levei a sério que fosse um convite oficial. Até que passados uns tempos começaram a chegar as cartas do Algarve. Diziam têm de cantar aqui, ali… acolá. E eu pensei “bonito serviço, e agora?” Nem tínhamos ensaios nem nada.
O que acontecia era que nas férias estávamos todos juntos, varávamos a noite a cantar cantigas, íamos para o rio e as cantigas saíam… Portanto, não havia ensaios programados. Mas havia ensaios quando estávamos juntos. Fomos ao Algarve, com o coração nas mãos. Eu, então, fui daqui até ao Algarve sem falar. O Carlos Matias, o homem do turismo que nos convidou também não sabia ao que ia. Mas correu muito bem. O Festival do Algarve foi uma das coisas mais importantes que foram feitas neste país com a música tradicional portuguesa.
Em Manhouce sempre se cantou muito. Canta-se por tudo e por nada, sem exagero nenhum. Porque canta-se na ceifa, na malha, nas romarias… O nosso cancioneiro vai do berço à cova, desde as canções de ninar até ao momento em que o padre dá a extrema-unção.
Quem nasce em Manhouce fica logo carimbado. Mesmo que não queira, acaba a aprender a cantar. Porque ouve, como disse há pouco, logo no berço. Começa a ouvir a mãe a cantar, e logo dentro da barriga da mãe. A música anda sempre aliada a quem quer que tenha nascido e posto o pé aqui nesta terra, nestas serras e nestes montes.
Mas o canto em Manhouce é sobretudo a mulher. Porque a mulher cantava no campo, a mulher cantava para os filhos adormecerem, a mulher cantava para espalhar a mágoa do marido que foi para fora ou do filho que foi para a tropa. Portanto, cantava a alegria e a tristeza. E na música ela ia buscar a força para poder viver durante o dia ou durante a vida, umas vezes com mais gosto, outras vezes com menos gosto. Mas quando estava triste, mesmo nessa altura, ela ia dentro de si buscar força para realmente conseguir sobreviver.
Nas sachas, na ceifa, nas malhas, não era preciso grande coisa. Três raparigas faziam a cantiga. Uma botava o baixo, outra o raso, outra o riba e não é preciso mais, já cá estão as três vozes. Aqui têm este nome, o raso, o baixo e o riba. Noutras aldeias têm outro. O nome não interessa. O canto polifónico saía, intuitivamente.
Quem passasse na escola primária pelas minhas mãos tinha de saber cantar e dançar.
Isabel Silvestre
Ao fim do dia íamos buscar água à fonte porque não havia água canalizada. Às vezes, uma ou duas já vinham da fonte com o caneco e quando se cruzam com outras a ir para baixo, deitavam a água fora para irem encher de novo e virem a cantar – tal era o gosto de estarem juntas. Também era uma maneira de, muitas vezes no canto, dizer ao rapaz: “olha lá, que eu estou aqui”.
Há montes de músicas ligadas a esse tema. “Sai-te da pedra da fonte, ó Pintassilgo ladrão, não sejas alcoviteiro das moças que à fonte vão”. O maroto estava escondido nas árvores e estava a ver tudo, e se ele era alcoviteiro estava tudo estragado. (Risos). O cancioneiro popular de Manhouce é muito, muito rico. E muito bom.
E depois também há o cancioneiro religioso, onde temos várias coisas maravilhosas. O “Muito lindo é o céu”, a “Senhora das Dores”, as ladainhas… Temos ladainhas lindíssimas. Tenho memórias muito presentes dessa altura em que o povo se organizava, numa missa campal, para fazer uma prece, e pedir que estivesse muito calor e não viesse chuva; ou, se houvesse muita chuva para que viesse calor. Traziam os santos das aldeias, do Vilarinho ao Carregal, e juntavam-se todos no largo da feira. A força com que aquilo era cantado e sentido… lembro-me se ser pequenita e ouvir o povo, iam daqui até ao Carregal, a aldeia que fica mais lá no fundo, e a estrada tinha curvas e contracurvas, ora se ouvia, ora deixava de se ouvir… Aquilo era muito bonito. No silêncio daquele tempo, não havia carros, não havia nada. Era só a natureza.
Eu conheci a minha terra sem luz, sem telefone, sem estrada, portanto, isolada… O que não foi mau, porque se assim não fosse talvez não tivéssemos ficado com toda esta riqueza, a gastronomia, a música, a maneira de falar, a maneira de vestir, o próprio traje. A capacidade que se foi tendo, que se teve e que se tem, de agarrar naquilo que é nosso, com unhas, com as mãos e com força, e saber guardar é louvável.
A pronúncia do norte
A nossa ida ao Festival de Folclore do Algarve correu mesmo muito bem. Fomos com o nosso traje tradicional, todas cobertas de ouro. Eu levava um quilo e tal ao pescoço. Quando lá chegámos e viram tal coisa, puseram-nos um polícia à nossa volta, para nos guardar!
Certo é que lá cantámos três cantigas, e depois disso nunca mais parámos. Não me perguntem por datas e por discos, sei que gravámos uns quatro de seguida, foi sempre a andar. E não se gravou mais porque isto é como todas as coisas, em todos os grupos: quando se começa a ter projeção, um quer e o outro também, porque canta este e não há de cantar aquele. E ficou um disco por gravar por causa de uma coisa dessas. Porque as senhoras achavam que também podiam fazer solos… e podiam. Mas o que a Valentim [de Carvalho] disse foi o seguinte: nós estamos aqui para vender discos, a Isabel está no mercado, agora não vamos pôr outra…
Acabei por ficar muito conhecida com a Pronúncia do Norte e o convite dos GNR, mas antes disso tínhamos trabalhado muito com o Rão Kyao, por exemplo. E aconteceram muitas coisas engraçadas. Fizemos parte da banda sonora do filme Terra Fria, foi um francês que nos veio desencantar ao ouvir-nos a tocar no rádio de um táxi em Lisboa.
O taxista contou-nos que ele já tinha andado pelas casas de fado, andava à procura de algo para usar na banda sonora do filme, e ainda não tinha encontrado. Ouviu na rádio, e ele perguntou ao taxista quem éramos. E passado pouco tempo lá recebemos um telefonema da Valentim de Carvalho. Lá fomos nós por aí abaixo. Mandou-nos a música para nós ensaiarmos aqui. Mas claro que aquilo que ele mandava e o que a gente mandou à volta, não era aquilo que ele queria nem era aquilo que a gente sabia fazer.
Ele estava a ficar aflito, tinha de ir apanhar o avião, já suava por quantas tinha. E eu disse, “olhe, quer deixar-nos cantar como a gente sabe?” “Então cantem”. E nós cantámos. Ele disse: “Isso, isso, isso, isso!”. Ou seja, ele queria aquilo que ouviu no rádio, mas dava orientações que não tinham nada a ver com o que queria. Mas depois lá saiu e ficou bonito. Foi bonito.
Ao longo da vida tive a sorte de trabalhar e de estar com a nata dos músicos desse tempo. E isso foi das coisas de que gostei muito, porque estamos constantemente a aprender, porque eles eram bons. Tive a oportunidade de trabalhar com muita gente de que gostei muito. Rão Kyao, Rui Reininho, Vitorino, Zé Barros, João Gil, que foi o produtor dos dois discos a solo. Sei lá, tantos. Por outro lado, o gosto de quererem trabalhar comigo, era dizer-me que o trabalho que nós estávamos a fazer, Grupo de Cantares, era uma mais-valia para o país e para o trabalho que eles estavam a fazer.
Em Manhouce sempre se cantou muito. Canta-se por tudo e por nada, sem exagero nenhum.
Isabel Silvestre
Agora, neste momento em que já estou mais descansada e a passar testemunho, eu pergunto-me a mim mesma como tive pernas para andar por tantos sítios e ir a tantos lados. Timor, Macau, Filipinas, França, Alemanha, Luxemburgo, eu sei lá por onde andei…
Não se pode dizer que tenho saudades. Mas a gente gosta sempre de recordar aquilo que fizemos de bom. Fiz muitas e muitas viagens, há centenas de experiências e histórias. Mas tenho de admitir que um dos que mais me marcou foi o Brasil, talvez por ter sido o primeiro em que estivemos, pela maneira como nos receberam.
Onde quer que a gente chegue, onde haja emigração, é impressionante. Agora há atuações e atuações. Há uma que nós fizemos no Rio de Janeiro na igreja da Candelária, durante uma missa, e parece que até as pedras abanaram. Foi uma missa que custou a colocação ao padre que nos acompanhou. Quando chegou cá, o bispo tirou-o daqui para fora. Porque ele disse a missa, com as nossas músicas, o instrumental, o acordeão, as violas, tudo e ele não achou graça nenhuma. Nós fomos ensaiar para conhecermos o órgão e o local onde iríamos cantar. E o organista esteve, mas não disse nada a ninguém. Na altura da elevação arranca a tocar A Portuguesa, e aquilo foi um abanão de todo o tamanho.
No fim do concerto, puseram-se em fila para nos cumprimentarem. Alguns cumprimentavam, davam a volta e tornavam. E quase que não falavam… abanavam. “Eu sou de Trás-os-Montes. Eu sou do Minho, o meu avô era não sei o quê…”. Quer dizer, nós deixámos de ser quem éramos para sermos Portugal. E através de nós eles viam a família que tinham deixado aqui.
Na casa de Viseu do Rio de Janeiro houve um senhor dos seus setenta e muitos anos que esteve o espetáculo todo com a cabeça entre as mãos, do princípio ao fim. No fim daquilo, achei que tinha de ir falar com ele. Perguntei-lhe, “Ficou triste?”. E ele respondeu “não Isabel, você levou-me na malha, levou-me na ceifa, levou-me na Senhora da Laje, levou-me na Senhora da Saúde, levou-me à minha casa”. Tinha ido para o Brasil com 14 anos, nunca mais cá veio. No verão a seguir estava aqui. Ele, a esposa, os familiares. Não veio toda a gente, porque os netos estavam em aulas.
Mas depois fiquei eu com uma dor no peito. É que a casa onde ele nasceu já nem era da família, tinha passado para outra pessoa. Estive à conversa com ele e ele disse-me: “Não se preocupe, porque eu passei por lá e senti a minha família em minha casa”. Isso consolou-me.
Estas pequenas coisas ficam gravadas. A gente vai e consegue chegar dentro do coração deles. Essas são as músicas de que eu mais gosto, as que conseguem chegar ao coração das pessoas. São as que falam a verdade, senão não vale a pena. Eu farto-me de dizer isso quando estamos nos ensaios. “Ó minhas amigas, aquilo que vocês estão a cantar não são palavras… vocês vejam o sentido que as palavras têm, aquilo que vocês estão a dizer tem de ter a capacidade de chegar ao outro. Porque senão são só palavras. Espremidas não têm valor”.
O legado
Agora estou a passar testemunho ao Grupo de Vozes de Manhouce. Eu praticamente já não saio com elas. A gente tem de aprender a sair pelo próprio pé, com bengalas não vale a pena. Isso era o que o meu irmão dizia: “Tu dizes que sais, mas só vais sair disso quando andares de bengala”.
Mesmo durante a pandemia, os ensaios nunca pararam. Vem cá um professor de Sever do Vouga para ajudar na parte técnica. Aquilo que eu digo, as pessoas ouvem. Mas dito por outra pessoa, alguém de fora, é diferente. É outra autoridade.
Eu quero é que as pessoas comecem a responsabilizar-se pelo trabalho que está feito, por aquilo que ainda podem fazer e pelo respeito que têm de ter por aquilo que temos e somos. E isso temos que dar cartas para elas se responsabilizarem, e não estarem sempre à espera de quem está e de quem sempre esteve.
As associações e coletividades têm muita importância. É uma maneira de as pessoas se encontrarem, de haver ocupação sobretudo para a gente mais nova, de haver troca de saberes. Nas Vozes de Manhouce entraram meninas novas, com nove anos já estão a ensaiar.
Uma das coisas que me dá mais prazer é a noite de Cantos e Encantos, em que há um grupo de cada uma das aldeias que se junta para cantar e para mostrar à aldeia do lado. Eu andava com isto na cabeça desde o princípio do mundo: tenho de juntar Manhouce a cantar todo de uma vez. Mas quando eu punha o problema diziam “Ó professora, está tolinha! Então isto só tem meia dúzia de pessoas… Quem é que vem cá cantar? Olha o lugar não sei quantos tem meia dúzia de pessoas… e a maior parte das vezes até vai para França, para ao pé dos filhos…” O que é certo é que eles organizam-se, e às vezes podem ser só três, dois ou um. Mas aparecem. O lugar está representado.
A primeira vez foi uma coisa que nos deu a alegria de que não se faz ideia. Cada um canta as suas cantigas e cada um quer ser melhor do que o outro, e vê-se ali o gosto que eles têm em estar e em cantar. E depois, no final, portanto, há as três vozes – o baixo, o raso e o riba, e cada grupo tem essas vozes… No final já está tudo misturado. Já não há o grupo de Vilarinho, de Sernadinha, de Gestoso, há um grupo de pessoas que estão ali para cantar. Se arrancar com uma cantiga onde quer que esteja o raso, onde quer que esteja o baixo, onde quer que esteja o riba… sai afinado. Eu costumo dizer que em Manhouce até as pedras cantam.
Uma vez ouvi a Simone de Oliveira a falar e identifico-me muito com o que ela disse. Eu olho para trás e fico com a alma lavada. Quer dizer, gostei de fazer aquilo que fiz. E isso alegra-me. Não fiz mais porque não pude. Tudo aquilo que fiz, quis fazer o máximo do que eu podia fazer.
[No Brasil] nós deixávamos de ser quem éramos para sermos Portugal. E através de nós, eles [os imigrantes] viam a família que tinham deixado aqui.
Isabel Silvestre
Uma vida com significado deixa as pessoas descansadas, com o sentido de dever cumprido. E eu já estou aí. Mas continuo ativa e a fazer coisas – não volto a meter-me em política, estive na Junta de Freguesia apenas um mandato, e disse que era para nunca mais. Mas não desisto de fazer o que acredito. Estou muito empenhada – e à espera – do resultado da classificação do Canto a Três Vozes Feminino a Património Imaterial Cultural da Humanidade. Sempre disse que o cantar de Manhouce tinha qualidade. A candidatura seguiu com muitos grupos. Aguardamos.
Estou, também, muito ativa a acompanhar os destinos do Centro Social. Demorámos 20 anos a pôr aquilo no ar, mas é indispensável que ele exista, e cresça. Para já é só Centro de Dia, mas é muito importante para as pessoas: vão buscá-las e levá-las, dão-lhes banho, tomam conta delas. E os emigrantes que estão fora sabem que os seus familiares estão bem tratados. Também tenho as Casas da Benta para voltar a pôr no Alojamento Local – elas chegaram a estar abertas, mas veio a pandemia e bom… eu também sozinha não tenho tempo para tudo. Gostava de ter tempo para fazer mais coisas. E tem-se feito coisas muito engraçadas, e Manhouce está a virar.
O meu próximo projeto é acabar de construir um pequeno anfiteatro ao ar livre no cimo da aldeia. Ainda hei de abrir aquilo ao público e ir lá cantar. Por agora tenho ido sozinha. A primeira que eu cantei aqui foi a canção “Muito lindo é o céu”. Porque o sítio é bonito, e o céu estava a ver e estava-me a acompanhar. Não sei que nome hei de dar a esse espaço. Pode ser Silvestre, porque não? É o nome de família, e remete para a natureza, para o estado puro.
Ser de Manhouce é ter tido a sorte de pertencer a uma terra onde a natureza, o homem e Deus ainda estão de mãos dadas. É ter a capacidade e a felicidade de, quer a parte cultural, quer a maneira de ser das pessoas, ainda estarem próximas umas das outras. É ser gente que gosta da natureza, que gosta da terra, que gosta daquilo que lhe foi legado e que tem obrigação de o preservar, dar a conhecer, motivar os mais novos para que o conheçam e para que Manhouce continue a ser igual a si própria.
Mais sobre Manhouce
Manhouce, a aldeia onde até as pedras cantam
“A música anda sempre aliada a quem quer que tenha nascido e posto o pé aqui nesta terra, nestas serras e nestes montes”. A terra é Manhouce, a serra é a Gralheira e os montes são de perder de vista e vestem um inesquecível traje de gala quando as giestas os pintam de amarelo. A frase é de Isabel Silvestre, a mais conhecida voz de Manhouce, e enquadra o sentimento de pertença que os habitantes desta aldeia de São Pedro do Sul têm para com as suas coletividades e tradições.
O que fazer em Manhouce (guia prático)
Guia com tudo o que precisa saber para visitar Manhouce, no concelho de São Pedro do Sul (Viseu). Inclui o que fazer na aldeia – monumentos, mosteiros e passeios -, onde ficar hospedado, mapas e contactos úteis.
Celeste Duarte, a costureira
Andou nas minas a apanhar volfrâmio, andou nas terras a lavrar milho, andou a sachar batatas. Mas é como costureira que se apresenta, se sente e se mostra. Ti Celeste, a Celeste do Alves, Celeste Gomes tem 85 anos, olho azul, memória viva e uma alegria de viver imbatível. Todos os trajes do Rancho de Manhouce lhe passaram pelas mãos. Diz que o melhor da vida e o melhor do mundo são os netos.
Hugo Gomes, o artista
É cantador no rancho e também sabe tocar bandolim e dançar. Tem 22 anos, está a terminar a licenciatura em Artes Plásticas e admite que gostaria de ser professor de desenho numa escola secundária. O que não concebe é desvincular-se das tradições de Manhouce e dos costumes da aldeia onde cresceu e onde vai todos os fins de semana, sem exceção. Hugo Gomes pinta lousas com os trajes tradicionais e é o mentor do projecto Amanhouçar, no qual recolhe as tradições e costumes, recentes e antigos, da aldeia que o apaixona.