Andou nas minas a apanhar volfrâmio, andou nas terras a lavrar milho, andou a sachar batatas. Mas é como costureira que se apresenta, se sente e se mostra. Ti Celeste, a Celeste do Alves, Celeste Duarte tem 85 anos, olho azul, memória viva e uma alegria de viver imbatível. Todos os trajes do Rancho de Manhouce lhe passaram pelas mãos. Diz que o melhor da vida e o melhor do mundo são os netos. Eis o seu testemunho.
“A vida na aldeia dá saúde. E eu nunca fui triste.”
Sou Maria Celeste Gomes Duarte. Mas sou mais conhecida por Ti Celeste. Mas se passar por alguém e falar de mim, diga que é a Celeste do Alves. É assim que toda a gente me conhece. Nasci no Salgueiro, numa aldeia pequenina da freguesia de Manhouce, no dia 11 de setembro de 1937. Vou fazer 85 anos, e gosto muito de cá andar. Deus me conserve que eu não tenho pressa nenhuma – e quem já foi, nunca veio do além dizer o que lá se passava. Nunca saí daqui. Foi uma vida de trabalho, mas foi uma vida feliz.
Sou costureira, não há traje nenhum no Rancho de Manhouce que não tenha passado por mim. Mas também fiz outras coisas. Trabalhei na agricultura, claro. E cheguei a trabalhar no volfrâmio. Ainda andei nas Minas das Chãs uns dez anos, ou mais.
Ia para as minas com dois primos meus. Demorávamos uns três quartos de hora a lá chegar, todos os dias. Íamos a pé, que não havia carros nem carroças. Havia burros! Quem ficasse doente e tivesse de ir ao médico a Santa Cruz da Trapa ou a São Pedro do Sul, tinha de ir montado num burro. Nós íamos a pé, claro, procurar o volfrâmio. Nós andávamos na superfície. Era assim: os homens botavam com um pau o entulho fora das minas, e a gente aproveitava aquele entulho e procurava o minério.
Era fácil distinguir as pedras: o volfrâmio, o estanho, as impurezas a que chamávamos pirite. Nós apanhávamos as pedras, britávamos bem britadinhas com uma marreta e púnhamos aquela terra a lavar, numa caleira com água. O volfrâmio ficava no cimo.
Comecei a trabalhar nisso aos dez anos. E a gente ganhava dinheiro consoante apanhava volfrâmio ou não. Eu cá não sei para quem ia o volfrâmio que apanhava, se era para os alemães, se era para os ingleses. Havia um senhor na minha aldeia que comprava.
A gente levava o minério, ia para a separadora, diziam que era para apurar se era volfrâmio ou não. O volfrâmio era pesado e davam um X por quilo. Já não me lembro do que pagavam, mas o preço também variava muito. Lembro-me que numa semana chegou a 1.000 escudos o quilo! Era muito dinheiro!
Eu era catraia, e o meu pai (que andou nas minas muito tempo) explicava que estava um navio à espera e que era preciso acabar a carga. Quando acabou a guerra, acabou o volfrâmio. Ainda o usavam, mas davam uma bagatela pelo minério.
Andou aos altos e baixos, teve outras temporadas, mas nunca foi o embolsão como na altura da guerra. Mas sempre deu dinheiro. Até agora, se eu quisesse vender este volfrâmio que tenho aqui num frasquinho, não faltava quem o comprasse.
Guardo estas coisas de recordação. Tenho aqui volfrâmio em pedra, volfrâmio em areia, e tenho aqui esta pedra parideira. Uma vez fui lá e tirei-a de uma parede. Eu sei que isso não se faz, mas foi mesmo assim e eu tenho de dizer a realidade, não é verdade?
Estou aqui desde que casei, com 27 anos. O meu marido já tinha 43. Ele era daqui do Sequeiro, e eu lá de cima do Salgueiro. Conheci-o uma vez que ele veio do Brasil. Juntavam-se uns 10 ou 12 daqui da freguesia ou desta redondeza e vinham juntos lá do Brasil. Eu conhecia o pai, a mãe, as irmãs, e um irmão dele mais novo. Conheci-o quando ele veio a primeira vez do Brasil. Nessa altura, já tinha acabado o minério nas Chãs, eu andava na agricultura. E costurava, claro. Costurei sempre.
Aprendi a costurar com a minha avó. A minha avó nasceu em Cantanhede mas foi para o Brasil ter com o pai, que era lá mestre linha, nos comboios, e não sabia ler nem escrever. E lá no Brasil tinham um vizinho na porta ao lado que era alfaiate. E ela talhava as camisas de homens, as calças… O irmão dela depois comprou-lhe lá uma máquina, uma Singer, daquelas de dar à manivela, e foi nessa máquina que eu também aprendi a costurar.
Eu aprendi a costurar com a minha avó. E aprendi às minhas custas também, que a cabeça não é só para criar piolhos. Aos 13 anos já costurava, tinha fregueses e tudo. Fazia tudo naquela máquina de mão que era da minha avó. Andava no campo de dia e à noite costurava – antigamente não havia televisão!
Naquelas noites de inverno, as senhoras juntavam-se, fiavam a lã, fazia-se meia. E uma candeia de petróleo dava para todas. Estávamos ali à volta da lareira. As lareiras eram grandes, fundas, com uma fogueirada de raízes de mato. As mulheres juntavam-se e costuravam, fiavam… e davam à língua. E cantavam, cantavam muito.
As senhoras sabiam cantar juntas. Umas botavam por baixo, outra botava o raso, e duas outras botavam por cima, mais alto. Sempre se fizeram estas cantarolas. Em todo o lado. Era nas ceifas, em casa, quando íamos à fonte… a gente já esperava a hora para ir para a fonte, para cantar. Agora já não canto nada, que fui operada à garganta e quase não tenho voz.
Hoje tenho pena de ter deixado ir embora aquela máquina de mão que era da minha avó. Era uma relíquia, uma peça de museu. Mas levaram-na quando me trouxeram esta máquina, com que ainda trabalho hoje. Eu tinha 16 anos, nunca mais me esqueci. Foi quando veio a fábrica das Olivas, em São João da Madeira. Quando aqui chegou a máquina foi um momento de alegria, Deus me livre! Sei que já andam para aí umas máquinas com motor e tudo, mas eu gosto é desta, de dar ao pedal, enfia botões, cose as casas, faz tudo!
Arranjei-a por causa de um senhor que era de Valadares, alfaiate, e vinha muitas vezes lá a casa do meu pai. E uma vez perguntou, “ai a pequena cose? É pena ela ter esta máquina”, a apontar para a máquina de mão. E o meu pai disse: “pois é, mas esta máquina era da minha mãe e agora é ela que a usa… Eu até lhe comprava uma máquina…”, dizia o meu pai. E esse senhor disse-lhe que ia ver. “Agora abriu uma fábrica em São João da Madeira, que é a Oliva, e é uma marca muito boa. Vou ver o que se arranja”.
Sei que um dia chegaram lá a casa numa carrinha… e eu fui a correr chamar o meu pai. Ele ficou com a máquina, e pagou logo na hora. E acho que já custou mais de cinco contos! Eles até fiavam, e davam seis meses para pagar. Mas o meu pai puxou do dinheiro e pagou. E eu tenho a máquina até hoje.
Já aqui passou muita roupinha. E do rancho, então, fiz tudo. Ainda era o mestre Silva à frente do Rancho e ainda eu estava lá em cima no Salgueiro e já ele dizia “Ó pequena, ó pequena… hás de fazer isto assim, assim…” Primeiro, cosia mais a roupa da canalha, mas depois também comecei a fazer para eles. Sempre se procurou o que se usava antigamente, trajes de trabalho, trajes de domingo. Sei fazer todos.
Fiz muitos trajes de trabalho, com o que as mulheres levavam nas ceifas, por exemplo, e fiz muitos trajes de homens também. Os meus filhos, que também andavam no rancho, tinham o traje de pastores. O que eu tenho mais dificuldade em fazer são os coletes dos homens. Porque levam quatro bolsos e também têm de vestir mais ou menos bem. Umas calças e tal, eu faço num instantinho, ninguém me atrapalha. E as blusas também faço. Os coletes demoram mais. Mas eu faço tudo. Até os chapéus.
Quando vim aqui para o Sequeiro, também fiz muita roupinha para vestir os que aqui vinham trabalhar para comer. O meu sogro era regedor, o meu marido também foi regedor. Vinha cá muito gente, de toda a freguesia: “Olha, eu vou para tua casa e trabalho, e tu fazes uma camisa para o meu pequeno”… Isto foi sempre uma casa onde havia muitos terrenos. A terra não é riqueza nenhuma, havia mais pobreza. Tinha aqui um vizinho que estava a fazer a terra de renda nossa e tinha uns nove filhos. Trabalhavam aqui a terra, só pela comida. E eu também lhes fazia a roupa. De dia andava junto com as pessoas no campo. Mas depois, de noite ou de dia, lá tinha de dar conta dessas encomendas. Trabalho nunca me faltou, mas vivi sempre bem. Graças a Deus!
Ainda agora, com esta idade, me fazem muitas encomendas. Mas já não aceito tudo. Já gosto de vir para a máquina só para me entreter. Às vezes faço uma saca, uma blusa. Outras vezes não me apetece fazer nada. Mas venho cá sempre, e aviso: “vou para o meu curral”. É como eu chamo ao meu cantinho, o meu atelier.
Tive dois filhos. A mais velha, a rapariga, casou, foi para França, e ainda vive lá. Teve lá três filhos. Um rapaz que já tem 32, outro que tem 26 ou 27, e depois nasceu um serôdio, que tem agora 13. Eles vêm sempre cá no verão, é uma alegria. O meu outro filho, o rapaz, esteve em França e também se casou. Mas agora vive cá, com a minha nora e mais os meus dois netos – a rapariga, que já tem 27 anos e o rapaz, que tem 25, e que estão comigo o ano todo. Sou muito feliz com eles todos, graças a Deus. O melhor de tudo, na minha vida, são os meus netos.
Este rapaz que vive aqui, ai Jesus… só não pego nele ao colo porque já não posso, que ele é muito grande. Ele trabalha numa oficina em Vale de Cambra, mas não há dia nenhum que não venha aqui meter-se comigo. Todos os dias me vem ver. E, quando ele se põe a tocar, também para tudo para o ouvir.
É um rapaz muito habilidoso… sai à avó. E eu fiz questão de os levar ao moinho e de fazer aquelas rezinhas que me ensinaram. O moinho tem de estar a moer, e a gente põe um bocadinho de milho na mãozinha do bebé e, na primeira vez que ele vê o moinho a moer, dizemos: “assim como este moinho anda a moer, este menino tudo o que vir há de fazer, só roubar é que não”. E depois reza-se um Padre Nosso, uma Avé Maria e uma Salvé Rainha. Foi assim que me ensinaram… e funcionou!
Apesar de ter muito trabalho, fui sempre muito alegre. Mas quando eu fui mais feliz foi quando os netos começaram a aparecer… Para os filhos, às vezes, não há tanta paciência, andamos com mais trabalho. Mas os netos, isso Deus me livre. É um amor diferente. Mas muito diferente, muito. Pensando que não, mas é. A gente aos filhos diz, desculpando o termo, vai acolá filho da puta que não fizeste bem. E aos netos não. E se o pai ralhar, a gente ainda vai botar a asa por cima. E não devia botar às vezes…
Eu conheço pessoas, que até são mais novas do que eu, sabem ler e tudo… e se a canalha disser umas graçolas põem-se logo com um não estou para ouvir isso – Pois eu não! Eu meto-me com eles. Ainda passo para os atiçar, eu gosto de os ouvir… e isto não é saúde?
Eu não sei ler nem escrever, nunca fui à escola. Porque do Salgueiro onde vivia até Manhouce, onde é a escola, ainda era longe. E porque quando eu era para ir para a escola, tinha uns oito anos, nasceu-me uma irmã, e eu fiquei em casa para a guardar. Na altura não era obrigatório, e as pessoas tinham aquela mentalidade de que as mulheres não precisam de aprender a ler. Mas está errado!
Eu acabei por aprender a desenhar o meu nome. E também nunca me deixei enganar no posto do leite, sabia somar todos os litros que lá levava a cada quinzena. Eu tenho um sobrinho que é advogado. Ele de vez em quando pergunta-me algumas coisas, eu respondo, eu brinco… E ele diz assim: “Já tive aulas com o Marcelo Rebelo de Sousa e já aprendi mais com você do que com ele…”. E é capaz de ser verdade.
Eles, os meus netos, é que fazem os meus dias bons. Um dia bom, para mim, é ver os meus netos felizes. Aqui, nesta aldeia, eu posso dizer que gosto de tudo.
Antigamente passava por ali mais gente, havia sempre gente a passar, muitos animais. Agora, com esta coisa da Covid, quase que não vem cá ninguém. E se passam pela gente até fogem, não é? Falam de longe. E é triste. Faz muita falta o convívio.
A vida na aldeia dá saúde. E eu nunca fui triste. Sei que sou velha e que o tempo acaba para todos. Deus que me leve quando tiver de levar. Mas eu estou cá muito bem.
Mais sobre Manhouce
Manhouce, a aldeia onde até as pedras cantam
“A música anda sempre aliada a quem quer que tenha nascido e posto o pé aqui nesta terra, nestas serras e nestes montes”. A terra é Manhouce, a serra é a Gralheira e os montes são de perder de vista e vestem um inesquecível traje de gala quando as giestas os pintam de amarelo. A frase é de Isabel Silvestre, a mais conhecida voz de Manhouce, e enquadra o sentimento de pertença que os habitantes desta aldeia de São Pedro do Sul têm para com as suas coletividades e tradições.
O que fazer em Manhouce (guia prático)
Guia com tudo o que precisa saber para visitar Manhouce, no concelho de São Pedro do Sul (Viseu). Inclui o que fazer na aldeia – monumentos, mosteiros e passeios -, onde ficar hospedado, mapas e contactos úteis.
Isabel Silvestre, a voz
Tem 81 anos, mas é como se tivesse 18 se em causa estiver a força de vontade e as coisas que ainda quer fazer. Sempre em prol das tradições da aldeia em que nasceu. Isabel Silvestre, a professora da Benta, correu mundo. Com Rão Kyao, com Rui Reininho, com Vitorino, com as Vozes de Manhouce. Ela é a Pronúncia do Norte, e está agora empenhada em levar o canto de mulheres a três vozes a Património Cultural Imaterial.
Hugo Gomes, o artista
É cantador no rancho e também sabe tocar bandolim e dançar. Tem 22 anos, está a terminar a licenciatura em Artes Plásticas e admite que gostaria de ser professor de desenho numa escola secundária. O que não concebe é desvincular-se das tradições de Manhouce e dos costumes da aldeia onde cresceu e onde vai todos os fins de semana, sem exceção. Hugo Gomes pinta lousas com os trajes tradicionais e é o mentor do projecto Amanhouçar, no qual recolhe as tradições e costumes, recentes e antigos, da aldeia que o apaixona.