Nasceu nas Avenidas Novas, em Lisboa, o gosto pela arte levou-a ao Alentejo, e o gosto pela pintura mural a fresco fixou-a no Alvito, em Vila Nova da Baronia. Já é mais alentejana do que lisboeta, apesar de se considerar uma mulher do mundo, com elasticidade suficiente para fazer doutoramentos na Sorbonne e ter aulas de piano, ao mesmo tempo que vive uma vida despojada e condiciona os seus dias à força da luz do sol e aos caprichos da terra. Assina a Rota do Fresco, aquela que foi a primeira Rota de Turismo Cultural em Portugal, criada há exatos 25 anos. E que se mantém até hoje. Eis o seu testemunho.
“Vim parar a Alvito por gostar muito de História da Arte”
Sou a Catarina Valença Gonçalves, tenho 47 anos, três filhos e dois cães. Nasci em Lisboa, sou das Avenidas Novas, e fui menina de Liceu Francês toda a vida, dos três aos 18 anos. Enfim, sou um desses exemplares da burguesia tradicional da capital, com zero família no campo. Vim parar ao Alvito porque, contrariamente ao que era esperado, não fui para Direito nem para Diplomacia, mas sim para História da Arte.
Logo no primeiro ano de História da Arte, comecei a trabalhar e a estudar pintura. E interessou-me particularmente as pinturas nas paredes, porque têm a particularidade de não poderem sair do sítio. São pinturas que tinham, e têm, uma dimensão humana e social muito particular. Temos de ir aos sítios para perceber as pinturas.
Enquanto que uma Gioconda [obra de Leonardo da Vinci, exposta no Museu do Louvre, em Paris] está fora do contexto onde foi levada a cabo, uma pintura mural permanece no contexto onde foi criada. As pessoas é que mudaram – as que pintaram e mandaram executar, as que a apreciaram e apreciam é que são pessoas distintas. Essa dimensão humana interessou-me muito. Acabei a perceber que a História da Arte, e em concreto o património cultural, era um pretexto para estar com pessoas diferentes.
Como boa burguesa, tinha senhoras que trabalhavam lá em casa e que, invariavelmente, quando chegava a altura da Páscoa ou do Natal, falavam do “ir para a terra”, do “a minha terra”. Eu não tinha nada disso, mas sentia o fascínio por esse sítio. Para mim era um sítio, a terra.
Talvez todas estas dimensões tenham acelerado em mim este interesse pela pintura, e depois mais concretamente pela pintura mural. Essa ideia de um sítio a que pertencemos e aonde regressamos ciclicamente – e que gera essa imensa felicidade. Porque era isso que eu via na cara delas, um entusiasmo muito grande.
Vim para o Alvito em 1997, estava então no terceiro ano da faculdade. Um antigo colega do liceu era descendente de um latifundiário de Alvito. Como tenho dificuldade em estar quieta, fui ver as igrejas todas e constatei que todas tinham pintura mural. Alvito tem 15 monumentos, todos com pintura mural.
Foi então que concorri a uma bolsa – o Prémio Nacional de Jovens Historiadores e Antropólogos – que tive a felicidade de ganhar. Estava no último ano da faculdade. Fiz uma investigação, publiquei o livro. Fui ter com o presidente da câmara – na altura, o Lopes Guerreiro – e perguntar-lhe, com os meus 21 anos, se ele sabia o que tinha aqui, a importância deste património e dizer-lhe que se devia fazer uma rota ligada a esta pintura. E ele, em vez de me mandar passear acolheu a ideia. E fez mais: disse-me que era preciso escala, que era preciso juntar outros municípios. Foi a primeira pessoa a falar-me de escala.
Isso foi em 1998. Começamos a trabalhar na montagem da Rota do Fresco desde essa altura até hoje. Este ano fez 25 anos. Foi a primeira Rota de Turismo Cultural em Portugal. Era mesmo muito miúda e comecei logo com uma posição de coordenação, trabalhando com técnicos das câmaras municipais dos concelhos afetos à Rota do Fresco, com presidentes de câmara e técnicos municipais, pessoas com formação diferente da minha.
Entretanto comecei a fazer um doutoramento e vivia então num mundo muito elástico, entre Lisboa, Sorbonne, Vila Nova da Baronia e Alvito. E sempre gostei muito disso, de me obrigar a adaptar a essa maleabilidade. Eu acredito que faz parte da missão do historiador de arte – adaptar-se ao sítio onde está, para atingir o seu propósito, que é recuperar o património e entregá-lo.
Houve, naturalmente, algumas dificuldades. Pessoas que tiveram posição de poder, e de propriedade, em relação a estes bens ou território; houve limitações administrativas… Mas eu não tenho feitio para bloquear com esses problemas. Acho sinceramente que uma boa ideia e o entusiasmo tem mais força que tudo isso.
E as pessoas e o território têm conseguido alimentar este entusiasmo. Eu fiquei surpreendida com o que aqui encontrei, como ficaria qualquer historiador de arte. É verdade que em Portugal havia uma formação muito elitista, mas nos últimos anos as coisas foram mudando. Quando me formei, vir trabalhar para esta área, estes territórios e sobre este tipo de pintura, era trabalhar com algo que não tinha valor.
As primeiras visitas que nós fizemos foi para a comunidade local. Nós acreditamos que o património cultural pertence a todos e a cada um de nós sem discriminação da classe social, de formação, localização geográfica. E que todos têm o dever mas também o direito de fruir desse património cultural. E sabemos que na dimensão da sustentabilidade económica da proteção do património cultural não considerar a população local é condicionar fortemente essa sustentabilidade.
Por trabalharmos sempre com a comunidade local, pudemos constatar que as pessoas daqui, muitas delas analfabetas ou com escolaridade muito reduzida – ou que nunca saíram daqui -, vêem uma igreja de pintura mural do século XV, XVI ou XVII e, sem perceber exatamente o que lá está, ficam absolutamente maravilhadas e comovidas com a beleza.
O património cultural tem essa grande vantagem. Acredito que teríamos resultados muito mais interessantes se percebêssemos que as pessoas sentem primeiro e compreendem depois. Nas nossas visitas perguntamos sempre primeiro às pessoas o que elas estão a ver. E adaptamo-nos ao público que temos pela frente. Sejam investigadores doutorados, sejam operários fabris, camponeses ou pessoas sem formação académica. Todos podem sentir. E compreender.
O que eu acho é que para estar disponível para sentir, e fazer os outros sentir, é preciso estarmos recetivos a essa dimensão e não estarmos num ambiente permanente de entretenimento, alienação, entusiasmo, barulho, redes, televisão.
Lembro-me que quando vim para a Alvito, logo no início, tive a constatação de que aqui o nível de vida é melhor. É mais económico viver aqui. Uma das razões pelas quais é mais económico é que não há nada para comprar nem onde gastar dinheiro. Agora há online, quando eu vim para cá não havia online. A pessoa fica restrita às coisas essenciais, o que pode ser altamente complexo para muita gente. Mas para mim é perfeito.
Vim viver para Alvito em 1998. Comecei por viver no monte de um amigo até 2003, até ter a minha filha mais velha. Quando quis comprar casa pensei sempre em comprar casa em Alvito. Mas não havia casas disponíveis interessantes. Demorei muito tempo a recuperar de não estar na sede do concelho. Mas hoje estou mesmo contente por não estar em Alvito e de estar aqui bem no meio de Vila Nova da Baronia.
Estou nesta casa há 20 anos, e já não me vejo em mais lado nenhum. Talvez conseguisse em Trás os Montes, ou nos Açores. Mas a verdade é que me identifico muito com o Alentejo. Há aqui uma ideia no Alentejo que me agrada que é não ter as montanhas. Há a planura que, para mim, é o mar. Estar na ermida de São Neutel e olhar o horizonte, é ver um mar de verde. É um sítio muito belo, do ponto de vista da beleza natural. E depois há a bondade das pessoas.
O melhor de viver num sítio como este, para mim, é o tempo. A vivência do tempo, os sons, a adequação do dia à intensidade de sol. Eu passeio os meus cães todos os dias, um passeio longo, de uma hora, pelos campos, onde há gado, javalis, monte. De inverno saio do trabalho às quatro da tarde e vou passear os cães. Agora passeio os cães quase às 20h00. Portanto eu giro o meu ano, digamos assim, sujeito à luz do sol. Eu e uma série de outras pessoas. Os agricultores sempre fizeram isso. E eu gosto deste ciclo, de me adaptar ao ciclo, à natureza.
Vila Nova da Baronia tem uma estação de caminho de ferro que nos liga a Lisboa dez vezes por dia, cinco em cada sentido, em hora e meia, o que torna este território viável. Quando foi preciso fechar estações, as estações de Viana do Alentejo e de Alvito, eram fora da vila; e a de Vila Nova da Baronia estava na vila. A verdade é que ficou a nossa a servir as duas sedes de concelho. Foi uma decisão corajosa, e que faz toda a diferença do ponto de vista de mobilidade. E que tornou este território viável.
A Spira, a empresa que detém a Rota do Fresco, organiza passeios à medida, que faz consultoria e tem muitas actividades, tem funcionários a viver em Lisboa, em teletrabalho. Mas dia de vir ao escritório é dia de vir a Vila Nova da Baronia. É aqui que temos a sede. Instalamo-nos numa velha mercearia e somos também um dinamizador cultural. No verão fazemos ciclos de cinema que são uma forma de trazer, também, alguns expatriados (antigos residentes na África do Sul, Congo, Estados Unidos) que escolheram o Alentejo para morar.
A ferrovia tem um papel absolutamente determinante para o desenvolvimento de um território. Para os meus filhos, que já estão crescidos e que vão e voltam e trazem amigos, é determinante. De início, quando os miúdos eram pequenos, eu não sentia isso, mas de há dez anos a esta parte tornou-se evidente. Os meus filhos não estudaram aqui. A certa altura foram para Lisboa, para o mesmo colégio. O pai estava em Lisboa, acabamos por nos organizarmos de outra maneira.
Não sei se com outro contexto familiar teria permanecido em full time em Alvito. Mas acho que era muito limitativo para eles estarem com uma mãe como professora, mãe como criadora, mãe como cuidadora, mãe como tudo. Acho que foi uma boa opção para eles. A mais velha tem 20 anos, o do meio tem 18, o mais novo tem 15.
O meu filho mais novo disse-me uma vez, “tenho pena que tenhas nascido em Lisboa, devias ter vivido sempre aqui, sempre assim”. Ele estava a dizer aquilo a sério. “Nasceste no sítio errado”. Talvez. Nasci no sítio errado. Mas pronto, mais de metade da minha vida já estou no sítio certo.
É o sítio onde coleciono dias bons. Como os que me levanto às seis da manhã para ir dar uma corrida (fui atleta de alta competição) até Viana do Alentejo. São cerca de 40 minutos de treino, vou pela estrada a ver os animais, a ver o sol a nascer, a sentir a força do sol. Depois venho trabalhar e, como tenho um trabalho muito internacional, onde estamos a falar com gente muito diferente, acredito que isso também contribui muito para diluir qualquer dimensão mais negativa deste espaço.
Os meus dias bons também têm os fabulosos quinze minutos de sesta, antes de continuar a trabalhar com a equipa. E, desde há dois anos, tenho uma aula de piano, às seis e meia. É de facto um exercício fantástico aprender música já crescida, é uma forma de ser sempre chamada à humildade. E depois passear longamente os cães até às nove e meia e acabar o dia lá fora com um mergulho, um copo de vinho branco com azeitonas e a escrever qualquer coisa.
Foi um dia perfeito, e depois vou dormir com as janelas abertas e ouvir este silêncio absoluto, onde, de facto, não há silêncio. Porque num sítio como este, o silêncio proporciona as outras existências. Estar atenta a esse detalhe interessa-me.
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Alvito, terra do fresco e do cante
É um dos concelhos mais pequenos de Portugal, com apenas duas freguesias cuja população junta não chega aos 2.300 habitantes. No coração do Alentejo, bem servida pela ferrovia e por infraestruturas de comunicação, Alvito e Vila Nova da Baronia são duas pequeníssimas vilas onde há uma grande concentração de pintura mural a fresco e vestígios manuelinos. E, garante quem lá mora, há qualidade de vida, há beleza e há comunidade. E há futuro. Até no cante.
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Formado em vídeo e com experiência em filmes publicitários, uma década de trabalho em Lisboa chegou-lhe para ter a certeza que é dos espaços pequenos e dos locais onde pode ter contacto com a natureza que gosta e é onde quer ver os filhos a crescer. É o mentor dos Encontros de Alvito, um festival que une as artes à natureza e que, gostaria Gonçalo, procura agitar consciências.
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