Tem 25 anos e dois amores, entre os quais não consegue optar. O desporto, caminho que escolheu para a vida académica e profissional, e o cante, paixão que alimenta e que distribui, seja mantendo o cante tradicional no grupo Rama Verde, seja reinventando o cante com o grupo Oh Laurinda. É professor de cante nas escolas, porque vai a todas as batalhas que permitam salvaguardar a velha tradição. Eis o seu testemunho.
“Gosto muito daquilo que o cante me traz”
Chamo-me João Monte, tenho 25 anos e nasci aqui em Alvito. Estive na creche em Viana do Alentejo, porque na altura não havia em Alvito, mas depois até ao nono ano andei sempre cá. Depois é que tive de voltar para Viana para fazer o secundário, na área de ciências e tecnologia – aqui no Alvito também não havia, mas Viana é muito perto daqui.
Depois fui para a Universidade em Évora onde me licenciei em ciências do Desporto, e agora estou a fazer o mestrado em treino de alto rendimento na faculdade de Motricidade Humana, em Lisboa. Sempre gostei muito de desporto, e é esse caminho que quis seguir a nível académico.
Trabalhei muito tempo num clube de futsal, o Baronia, onde aprendi muito e onde adquiri a minha identidade profissional. Quando saímos da universidade pensamos que sabemos alguma coisa, mas não sabemos. Esse clube ensinou-me muito. Mas agora estou a trabalhar em Évora, num ginásio.
Para além do desporto, eu tenho outra atividade que me preenche muito. Na verdade, tenho duas paixões: o desporto e o cante. Ainda não consegui escolher entre as duas, e não acho que tenha de vir a escolher. Acho que, pelos menos por enquanto, tenho conseguido conciliar. Nem sempre é fácil em termos de tempo e de agenda mas tenho conseguido.
O meu percurso no cante iniciou-se há cerca de 11 anos, quando comecei a ouvir cante alentejano através de um grupo coral formado em Beja, Os Bubedanas. Foi com este grupo que tanto a mim, como a muitos jovens, surgiu a ideia de que o cante não é só para os velhos, que há potencial para os jovens também cantarem à alentejana.
Houve aqui um gap geracional entre aquela geração que cantava a sério, digamos assim. Houve uma geração que se desinteressou e que criou uma espécie de intervalo no que ao cante alentejano diz respeito. Um gap causado pela reforma agrária, pelo pós-25 de abril, que permitiu que o estilo de vida mudasse muito. O cante passou de moda, havia a ideia de que só é cantado por pessoas velhas, que não tem graça nenhuma e que é aborrecido. Os Bubedanas só duraram dois anos, mas começaram, a mudar isso. E a elevação a Património Imaterial da Humanidade fez o resto.
Mas eu sinto, pelo menos para a pouca experiência de vida que tenho, que a minha geração está a conseguir trazer de volta o cante. Não às massas, mas a mais gente.
Surgiram muitos jovem a cantar à alentejana, e jovens que para além de cantarem procuraram saber o porquê de se cantar desta ou daquela maneira, ou o porquê das modas se cantarem de maneiras diferentes em terras diferentes. Eu, por exemplo, sou de Alvito, quis saber mais sobre o Cante de Alvito. Porque o Cante de Alvito é diferente do Cante da Cuba, é diferente do Cante de Serpa, é diferente do Cante de Castro Verde… Todos têm uma forma específica de cantar. Os mestres chamam-lhe preceito.
Eu comecei a cantar nos Papa-Borregos, um grupo aqui de Alvito que já tem mais de 50 anos. E que agora já não tem nenhum dos seus fundadores a cantar, mas ainda tem os mestres vivos.
Há um mestre aqui em Alvito, o António Maria Chanino, que um dia me disse que antigamente para estar num grupo de cante tinha que se saber cantar. E quem não sabia cantar nem sequer tentava. Para entrar no grupo coral, tinha de lhes cantar uma moda., um ponto, ou algum verso para o mestre perceber se tinha o preceito e, se tinha, se cantava afinado.
E aqui há 50 ou 60 anos era impensável um miúdo de cinco ou seis anos cantar à moda ou cantar à alentejana. Porquê? Porque o cante sempre foi associado ao trabalho, e o trabalho sempre foi associado a ambientes de taberna. E esses ambientes não eram ambientes de criança.
O próprio estilo do cante alentejano foge muito aquilo que as crianças gostam. É aquela forma do canto dolente, lento, muito pesado… Hoje em dia já não é assim. Agora é diferente porque sendo património imaterial e sendo a nossa tradição oral nós temos que arranjar uma forma de garantir que ele não se perde no tempo.
Há cerca de um ano e meio, e depois de uma conversa que surgiu nos Encontros de Alvito, fui para os Rama Verde, um grupo de Vila Nova da Baronia, que tem elementos dos 8 aos 80 anos. Fui eu e o Bruno Tesanis, dos Papa-Borregos para lá, com a missão de tentar dar nova vida ao cante de Alvito. Sentíamos que o cante de Alvito se estava a perder, que havia ali pouca transmissão. E que seria uma questão de tempo até as pessoas deixarem de cantar.
O grupo Rama Verde surgiu por iniciativa de uns poucos jovens, como o Diogo e o Filipe, que foram muito importantes para manter a dinâmica. Hoje em dia somos cerca de 40, e destes há pelo menos uns 12 que têm menos de 15 anos. A forma que encontramos nos Rama Verde, e um bocadinho por todo o Alentejo, é trazer o cante para as escolas e para os miúdos terem contacto com o cante mais cedo.
Para isso também estou a dar aulas de canto na escola, e há um projeto com vários concelhos no âmbito das Atividades de Enriquecimento Escolar (AEC) que é o “cante nas escolas”. Antes um miúdo tinha um peão para brincar e, se tivesse sorte, ainda tinha se calhar um berlinde ou uma bola de trapos. Hoje em dia tem mil e uma coisas. Ele abre um tablet e tem toda a informação do mundo disponível. Portanto o foco que ele tem por exemplo para o cante alentejano é muito inferior do que tinha naquela altura simplesmente porque a oferta é muito maior.
Então se eles não chegam lá por eles próprios, não têm essa curiosidade, temos nós de ir buscá-los. Com os Rama Verde é isso que fazemos. Quando vamos à escola nunca dizemos ‘devias ir ao ensaio, devias experimentar’. Eles vêm porque querem e se quiserem. E quando querem, temos as portas abertas. Mas daqui a dez, quinze anos podemos colher os louros. Nem todos vão ser cantadores. Um ou dois poderão interessar-se e poderão estar aqui no meu lugar, a falar que o fenómeno do cante continua a passar, de geração em geração.
Embora não seja da mesma maneira, nem com os mesmos fins do que era antigamente, hoje em dia o cante é mesmo uma tradição oral. E nós cantamos a moda para ela não se perder. Eu pelo menos gosto muito. E gosto muito daquilo que o cante me traz. Traz-me amigos, traz-me convívio.
Também foi o cante que me trouxe um projeto novo, os Oh Laurinda, que fundei com quatro amigos. Agora só estamos três, mas estamos numa fase importante, lançamos o primeiro CD. Estamos a tentar trilhar o nosso caminho, sem nunca dizer que aquilo é cante. Tem génese no cante, porque todos nós temos um pé na tradição, estamos em grupos corais – eu nos Rama Verde, eles no Grupo Coral da Vidigueira. Mas queremos também criar uma nova roupagem do que são as modas, sem nunca dizer que aquilo é cante. Aquilo não é cante, aquilo são os Oh Laurinda.
Se tivesse de explicar a alguém o que é o cante ou como é viver em Alvito não sei se conseguiria fazê-lo, se me conseguiria explicar na totalidade. O que posso dizer é que estou feito a isto. Gosto das pessoas, gosto de morar aqui, gosto de acordar aqui. Eu gosto de ir a um sítio e conhecerem-me. O bom dia, boa tarde é importante. O que eu faria era tentar que esse alguém se sentisse como eu me sinto. E a única maneira era trazê-la cá, levá-la a uma taberna a ouvir cante, e tentar que ela perceba que o Alentejo é um sítio calmo, e que tem todas as valências.
Não sei onde vou estar daqui a dez anos. Eu sou uma pessoa que pensa muito a curto prazo. Espero que já seja pai. Uma coisa que é certa é que o cante e o desporto têm de estar na minha vida, para o resto dela. Seja em que área for, seja profissional seja recreativo. Porque são as coisas que eu amo, e como eu costumo dizer, foi por isso que a minha mãe me cá pôs. Para dar alguma coisa nestes dois campos.
Mais sobre Alvito
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É um dos concelhos mais pequenos de Portugal, com apenas duas freguesias cuja população junta não chega aos 2.300 habitantes. No coração do Alentejo, bem servida pela ferrovia e por infraestruturas de comunicação, Alvito e Vila Nova da Baronia são duas pequeníssimas vilas onde há uma grande concentração de pintura mural a fresco e vestígios manuelinos. E, garante quem lá mora, há qualidade de vida, há beleza e há comunidade. E há futuro. Até no cante.
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Nasceu nas Avenidas Novas, em Lisboa, o gosto pela arte levou-a ao Alentejo, e o gosto pela pintura mural a fresco fixou-a no Alvito, em Vila Nova da Baronia. Já é mais alentejana do que lisboeta, apesar de se considerar uma mulher do mundo, com elasticidade suficiente para fazer doutoramentos na Sorbonne e ter aulas de piano, ao mesmo tempo que vive uma vida despojada e condiciona os seus dias à força da luz do sol e aos caprichos da terra. Assina a Rota do Fresco, aquela que foi a primeira Rota de Turismo Cultural em Portugal, criada há exatos 25 anos. E que se mantém até hoje.
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Formado em vídeo e com experiência em filmes publicitários, uma década de trabalho em Lisboa chegou-lhe para ter a certeza que é dos espaços pequenos e dos locais onde pode ter contacto com a natureza que gosta e é onde quer ver os filhos a crescer. É o mentor dos Encontros de Alvito, um festival que une as artes à natureza e que, gostaria Gonçalo, procura agitar consciências.
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