A aldeia rebenta pelas costuras com os visitantes que querem ver os Caretos de Podence, e explode de alegria com o regresso dos da terra. A felicidade de fazer parte de algo que é Património da Humanidade só acrescenta ao orgulho que os habitantes de Podence têm por ver uma das suas mais antigas tradições a reinventar-se, sem nunca perder as raízes. Dizem que é o Carnaval mais genuíno de Portugal – e continuam a conseguir vivê-lo.
Alzira Quinteiro já tinha fechado a mercearia da aldeia “há mais de meia dúzia de anos”. Já há muito tempo que em Podence, uma pequena aldeia do concelho de Macedo de Cavaleiros, não há um sítio onde os habitantes comprem pão, manteiga, um pacote de arroz ou uma garrafa de óleo. “Não valia a pena ter a porta aberta, que em Macedo há tudo e por preços que nem sei como conseguem. Na aldeia decidimos fechar e ficámos só com o café”, explica o marido, José Miguel Quinteiro.
Por causa da pandemia, há quase três anos, José e Alzira também tinham fechado o Café Carla, assim batizado por causa do nome da filha mais velha, e que durante anos foi o ponto de encontro privilegiado da aldeia, muito por causa da sua localização central. Ele com 73 anos, ela com quase 70, também pensaram que o tinham fechado de vez.
Mas agora que se aproximava o Carnaval de Podence, e a folia ia voltar a tomar conta da aldeia, as duas filhas insistiram que o café era para abrir. Uma viria de Bragança, outra de Lisboa, e ajudavam no que fosse preciso. A máquina de finos ia voltar a trabalhar e a de café não teria mãos a medir. E haveria bolos e bôlas, tabaco e batatas fritas.
“Isto aqui no Carnaval vira um fim do mundo. É gente que enche as ruas, nem se consegue andar”, avisa Alzira. Ela acha que nem vai sair de trás do balcão – só sairá para ver e ouvir o Pregão Casamenteiro.
Será na segunda-feira à noite, os Caretos sobem ao adro da Igreja e, do alto das escadas, levantam a voz com a ajuda de um embude, o funil de alumínio gigante que servia para encher as pipas de vinho e agora serve para ajudar a chegar mais longe os anúncios dos casamentos entre os da aldeia. Há sempre comentários jocosos e prendas satíricas. Casados há 46 anos, Alzira e José não chegaram a ser alvo destas encomendas.
Mas Alzira lembra-se bem da boa impressão que José lhe deixou, quando trepou a uma varanda e depois saltou de lá para baixo. Ele não a chegou a chocalhar. Mas acabou casada com ele, mesmo que com isso ela contrariasse os pais.
“A minha mãe dizia que de todas as irmãs eu era a que casava pior, porque o Zé estava cá na terra, não emigrou. E que eu estava destinada a andar de tamancas em vez de sapatos engraxados”, conta Alzira. “Ainda bem que não lhe deste ouvidos”, sorri o marido, que anda de sapatos bem engraxados e se tornou um importante comerciante da aldeia.
O café será, então, para reabrir. E enquanto o Carnaval não chega, há que avançar nos preparativos. O vizinho, José Torres, é uma espécie de faz-tudo na aldeia. Vai, por isso, ajudar Alzira e José Quinteiro a recuperar a fechadura da casa de banho dos homens, que “apodreceu pela falta de uso”.
A dois ou três dias da festa, ainda tem tempo para ajudar. Porque “a empreitada” que também tem de fazer em casa dele “já está adiantada”. Nos dias de festa, Torres abre a “Tasca do Intrudo”, serve refeições ao almoço e ao jantar, e petiscos o dia todo – “Trabalhamos como cães. Mas a ginjinha ajuda a aguentar”, brinca José Torres.
Nos quatro dias que dura o Carnaval, mal tem tempo para sair de trás de um balcão a aviar ginjas, a lascar presunto, a assentar reservas de refeições, a servir minis e azeitonas.
Faltam menos de dois dias para o fim de semana mais intenso do ano. E é intenso há já muitos anos, desde que o Carnaval de Podence se tornou conhecido, com a aldeia a ser invadida por milhares de pessoas, entre emigrantes e familiares dos da terra, turistas e curiosos.
Este ano, de 2023, é ainda mais intenso, porque há a energia acumulada pela suspensão dos festejos decretada nos anos anteriores, por causa da pandemia.
O Carnaval são quatro dias, mas em 2023 até são cinco – que o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, quis inaugurar um mural pintado em sua homenagem, logo na sexta-feira. Mas, na verdade, até apareceu na aldeia, sem avisar, logo na quinta-feira à noite, para confraternizar com os aldeões na Taberna dos Bombeiros, outro ponto de encontro do Carnaval de Podence. E que este ano tem o interesse acrescido de estar a assinalar o centenário da corporação dos Bombeiros Voluntários de Macedo de Cavaleiros.
A juntar-se às paredes coloridas (só o artista urbano Trip DTO já assinou mais de 20 murais na aldeia) aparecem cartazes, fitas coloridas, bandeirinhas e instalações sonoras.
Aos poucos, e no espaço de poucos dias, Podence transforma-se. As casas de comércio então fechadas voltam-se a abrir, as garagens convertem-se em postos de venda, os armazéns em restaurantes improvisados. Se durante o resto do ano só há um café e um restaurante abertos na aldeia – até a escola primária já fechou, por falta de alunos – durante os dias do Entrudo Chocalheiro não faltam tascas, restaurantes, bancas de comidas e bebidas.
Não foi sempre assim, claro. Aliás, a tradição, cuja origem se perde no tempo, andou perto de se perder de vez. Com a vaga de emigração primeiro, e com a guerra colonial depois, faltavam homens à aldeia e Caretos à rua.
Os Caretos eram, afinal, rapazes vestidos com as mantas mais antigas que havia lá em casa, e vinham para a rua celebrar o fim do inverno. E se a terra entrava num novo ciclo fértil, os homens também “têm de mostrar que são capazes de fazer produção”, diz Egas Soares, atualmente, o homem com mais idade que ainda sai à rua vestido de Careto. Já o faz há quase três décadas – só não o faz “desde sempre” porque não nasceu em Podence, só veio para aldeia depois de casar.
A tradição passou de geração em geração, assim como os coloridos fatos de Careto, que passaram de avós para netos, de pais para filhos. Ou para filhas – que mesmo nesses já afastados anos das décadas de 60 e 70 do século passado as mulheres também se vestiam às escondidas, também saíam para a rua para chocalhar – e não serem chocalhadas.
Cecília Rosa Reis fê-lo incentivada pelo pai – porque não havia animação nas ruas. Depois por moto-próprio, para se defender das, muitas vezes, violentas investidas masculinas, para “chocalhar” e não ser “chocalhada”. O nome de Entrudo Chocalheiro vem daqui: os chocalhos colocados à cinta do Careto eram atirados com força contra as nádegas das raparigas, numa aproximação assumida ao rito sexual, e que lhes deixava marcas no corpo.
As raparigas fugiam – por isso Alzira viu as folias de José Quinteiro atrás de uma janela. E eles perseguiam-nas, trepando janelas, escalando paredes, saltando varandas. Quase meio século depois, muita coisa mudou – mas o essencial manteve-se.
Hoje em dia há caretos de todas as idades. E sexos. Susana Lameiras diz que cresceu no meio desta tradição, que lhe chegou de tetravós, bisavós, avós. Hoje em dia é mãe, com muito orgulho, de três Caretos – alías, dois Facanitos, o Guilherme, de 10 anos, e o Eduardo, de seis, e uma “Careta”, a Gabriela, que já fez 19.
Os fatos passam de uns para os outros. “A Gabriela, que já é Careto, anda com o fato do primo. Combina com ele quem veste o fato, e quando”, explica a mãe.
“No início foi mais difícil para as pessoas mais antigas da aldeia aceitarem. Mas como os tempos são diferentes, já está tudo a evoluir, começaram a aceitar bem. E também gostam de ver raparigas vestidas, principalmente as daqui da aldeia a participarem também da tradição, porque não?”, diz Gabriela Coutinho.
Denise Soares, filha de Egas, também “rouba” o fato ao pai para sair para a rua com os Caretos. Porque, sublinha, só vestida de Careto é que é poupada. “Com os turistas, os Caretos não são brutos. Mas com as raparigas da aldeia eles são brutos à mesma. E de que maneira!”, relata. Ainda assim, revela, não trocava o Entrudo de Podence por mais Carnaval nenhum do mundo.
O desafio é manter genuíno um património que agora é da Humanidade.
Renascer da tradição
Ser declarado como Património Cultural Imaterial da Humanidade em 2019 foi o culminar de uma caminhada que se fez longa, paciente e, sobretudo, bem trabalhada.
António Carneiro, natural de Podence, gestor bancário na cidade de Macedo de Cavaleiros, é um dos grandes responsáveis por essa caminhada. Foi com ele – e por causa dele e do irmão, que estudava na Universidade de Coimbra – que o grupo de Caretos de Podence foi convidado a participar nas Jornadas da Cultura Popular em 1985. “Antes, a nossa tradição estava muito voltada para dentro. Essa ida a Coimbra foi a nossa primeira digressão. E foi um sucesso”, recorda António Carneiro.
Foi a partir dessa altura que os habitantes de Podence sentiram que podiam criar novas dinâmicas. Tiveram mais saídas, e mais sucessos. Os emigrantes começaram a querer regressar à aldeia no Carnaval, começaram mais homens e rapazes a vestir o fato. “Começou a sentir-se o orgulho que é ser de Podence, a aldeia dos Caretos”, remata.
José Luís Desidério não se lembra bem dessa viagem a Coimbra – mas tem fotos a provar que esteve lá. Nessa primeiríssima digressão foi a única criança com autorização a acompanhar o grupo. Foi o primeiro Facanito a divulgar-se como tal.
Facanito é o nome que se dá às crianças vestidas de Careto e é também o nome que José Luís ainda gosta de usar, apesar de ser um Careto já quase com 40 anos de idade. O restaurante que abriu com a mulher e as duas filhas para servir refeições durante os dias de Carnaval (com a ajuda de duas mãos-cheias de ajudantes, entre familiares e assalariados, que todas as mãos são poucas para estar à volta das panelas ao lume e dos pratos para lavar) o nome só podia ser um: a Taberna do Facanito.
É apenas uma entre as mais de 20 restaurantes, tabernas e tascas que servem refeições e petiscos por estes dias na aldeia. “Só tenho pena de não poder ter aberto o restaurante o ano todo”, lamenta, mas não pensa demasiadamente nisso, porque já assimilou a impossibilidade: o investimento é elevado, as exigências burocráticas são muitas e, no resto do ano, os clientes são poucos.
Desde essa primeira digressão, o reconhecimento tem vindo em crescendo. Pelas aparições públicas, chamaram a atenção do país, e acabaram convidados a participar na na Exposição Mundial de Lisboa, a Expo 1998. Fundaram uma Associação, o Grupo de Caretos de Podence (2002), depois a Casa do Careto (2004). Prepararam uma candidatura a Património da Humanidade, e em 2019 foram reconhecidos pela genuinidade das suas tradições.
Desde então tem sido um importante crescendo. Os alojamentos locais na aldeia aumentaram – graças à recuperação de muitas casas. Miguel Teixeira, ou Miguel Batôto, como é conhecido na aldeia, recuperou duas casas na aldeia e colocou-as no turismo. Mas vai tendo turistas durante todo o ano.
Apareceram novos negócios para necessidades antigas – os fatos, as máscaras, as lembranças de Podence começaram a ser muito procuradas por turistas. João Carvalho, por exemplo, dedicou-se à confeção dos fatos depois de se reformar. Tem quase 70 anos e foi há cinco que se dedicou a aprender a fazer fatos. Compra as mantas, faz as franjas, aprendeu a cozê-las ao fato.
É um trabalho laborioso, e os materiais também são caros. Um fato de Careto pode custar várias centenas de euros. João Carvalho é um dos comerciantes que estão a vender no mercado de produtos tradicionais que todos os anos se monta no adro da escola primária onde ele e Cecília foram colegas de turma – e de carteira.
“Quem viu esta aldeia e quem a vê”, diz Cecília, que saiu de Podence aos 12 anos, mas onde regressa 52 fins de semana por ano (sempre que “não está doente nem está a viajar”). A aldeia onde nasceu e que tinha várias centenas de habitantes, que vivia da agricultura e da criação de gado foi minguando de gente.
Ainda há um rebanho na aldeia, graças a Guilhermino Pires, que todos os dias vem da aldeia vizinha de Edroso pôr as suas três centenas de ovelhas de raça bragançana a pastar nos terrenos que circundam Podence. E ainda há lavradores.
Mas, na aldeia de Podence, durante o ano, há sobretudo uma população envelhecida que risca os dias no calendário contando os que faltam para o regresso dos familiares que foram para fora da aldeia – e, em muitos casos, do país! – para ganhar a vida e sustento.
“Só não venho quando estou a viajar”, explica. Cecília é auxiliar de educação especial, tem décadas de experiência em várias escolas da cidade do Porto. Só está agora a construir uma casa na aldeia que chama de sua.
“Estive até agora em casa da minha mãe, mesmo não tendo condições nenhumas. Entra frio, o palheiro ate já ruiu. Mas a minha prioridade foi outra. De todos os países a que eu queria ir, e eu queria ir a tudo, só falta montar-me num avião e pôr o pé na Austrália”, avisa.
E a educadora ainda não desistiu desse sonho – vontade não lhe falta, e energia também não. Sobretudo agora, que está com um fato de Careto vestido. “A gente quando veste esta farda parece que não há mal que nos atinja, nem doença que nos apanhe”, afirma.
O fato é pesado (entre 20 a 30 quilos) e é quente. Os saltos, as chocalhadas, as correrias, as gargalhadas, são tudo ingredientes que cansam qualquer um. Mas Cecília parece que não se fadiga. Começou a “Jogar ao Entrudo” na quinta-feira, com a visita do Presidente, e só parou no domingo já a noite ia alta.
A adrenalina que se sente por quem tem o fato vestido também é explicada por Egas Soares, de forma expressiva. “Um dia fomos para Albufeira e eu estava cheio de bolhas nos pés. A minha preocupação foi arranjar uns chinelos de meter o dedo. Os outros Caretos iam passear, mas eu ficava no hotel.
Quando, à noite, enfiava as botas de Careto parecia que já não havia bolhas. Só quando a madrugada ia alta e as tirava, é que era uma chatice do raio. Não consigo explicar o que é isto de vestir o fato de Careto. Não, não tem explicação isso”.
Programação intensa
Os Caretos continuaram sempre a sair da aldeia para fazer apresentações, mas nunca esquecem que Podence é que é a sua casa. E o Entrudo Chocalheiro a sua festa.
Originalmente, entre o domingo e a terça-feira de Carnaval. Eram os dias das “sortidas dos Caretos”, em que estes andavam à solta na rua, a amedrontar quem passava e a chocalhar as mulheres que conseguissem encontrar. “Faziam patifarias do diabo”, diz Cecília Rosa.
E na segunda-feira à noite juntavam-se no adro da igreja, a apregoar casamentos entre as raparigas mais cobiçadas e os rapazes mais ou menos enjeitados, atribuindo dotes satíricos a ambos.
Agora também há todos esses momentos, mas a programação oficial soma outros tantos. “Começámos a ver que havia muita procura, muita gente a visitar Podence, então procurámos ir ao encontro dos interesses de quem nos visita”, explica António Carneiro. O programa começou a contemplar passeios pedestres à albufeira do Azibo e atividades em BTT, exposições de fotografias, lançamento de livros ou atividades “pinta a tua máscara” para miúdos e graúdos. E comes e bebes, o tempo todo.
Durante o ano, Podence tem cerca de 200 habitantes. Na semana do Carnaval o número quadruplica. Há quem tenha emigrado e já não regresse à terra pelo Natal, mas sim no Carnaval.
Carolina Cesário não tem mãos a medir com os preparativos para a festa. Só de alheiras fez “umas 15 ou 16 dúzias”. Matou cinco galinhas velhas, dois patos, carne de porco, juntou-lhe os temperos e o lume nos potes de ferro, e depois pendurou-as para secarem a tempo de saciar os milhares de amigos e visitantes que nos dias do Carnaval passaram pelo Curral do Careto. Foi das primeiras tabernas a abrir ao público durante o Carnaval, pelas mãos de Rui Carneiro e Mário.
Por causa do labor que exige organizar o Curral, Rui Carneiro já não se veste de Careto tantas vezes quanto queria – pelo menos no Carnaval. É dos Caretos mais antigos da aldeia, tem 56 anos, cresceu dentro da tradição, participou sempre nela.
Quando, em 1976, Noémia Delgado esteve em Podence a filmar o “Máscaras”, um documentário de antologia que aborda os rituais seculares do nordeste transmontano, Rui Carneiro andava por lá, vestido de Facanito, atrás dos Caretos com uma máscara de cartão na cara. “Se um Careto entrasse pela casa de alguém e tombasse o pote que estava ao lume, ninguém dizia nada. O Careto era a figura do diabo!”, recorda.
Nos últimos anos tem assistido – e também contribuído – para a evolução dos tempos e para a forma como as investidas dos mascarados se foram suavizando – “Não queremos afugentar os turistas, queremos que eles nos venham visitar!“, brinca Rui.
A mulher de Rui, Maria José, confirma que a abordagem dos Caretos, sobretudo com os visitantes, mudou muito. “Não sou assim do tempo da avozinha, mas no nosso tempo ainda não podíamos sair à rua como agora. Vínhamos espreitar, a ver se ouvíamos os chocalhos, depois escondíamo-nos e eles tinham de ir à procura. Mas estávamos sempre à espera, a ver quando é que vinham atrás de nós, ou quando anunciavam o nosso nome no pregão casamenteiro. Sim, que se não o ouvíssemos, lá pelos 16 anos, até era de estranhar”.
Agora, ao domingo e terça-feira de Carnaval quase não há espaço para chocalhar, tantas são as pessoas que percorrem as ruas da aldeia, para cima e para baixo, para baixo e para cima. Durante o dia – e também à noite – não falta música e animação. Bombos, gaitas de foles, concertinas, há muitos grupos convidados que se misturam na multidão e ajudam a fazer a festa. E há matrafonas, homens vestidos de mulheres, como também houve sempre, em todos estes carnavais de Trás-os-Montes.
As coisas mudaram muito, mas não quer dizer que se estragaram, ou que ficaram piores. É a evolução dos tempos. “Antes, era a sociedade que tinha de se adaptar ao Careto; agora é o Careto que tem de se adaptar à sociedade”, sintetiza Rui Carneiro.
Rui e Maria José casaram, tiveram filhos, um rapaz e uma rapariga. “E agora esse é o meu maior orgulho, ver o meu filho já aí a andar vestido com um fato de Careto. E é um Careto a sério”, diz Rui Carneiro.
Continuidade
O filho chama-se João Carneiro, tem 23 anos, estuda em Vila Real e participa em muitas atividades dos Caretos ao longo do ano. Nos dias de Carnaval ajuda na taberna dos pais, mas tem mais tempo do que eles para andar na rua a envergar o colorido traje e a dar corpo à tradição que se quer que permaneça.
“O mais importante é mesmo esta passagem de testemunho, passar de pais para filhos. Eu já andei pequenino, atrás do meu pai. E agora ando eu, à frente dos Facanitos”, argumenta.
Ele ainda não tem filhos, mas houve muitos Caretos que conheceram as mulheres nas festas de Carnaval. “Houve um Careto que até foi parar à Costa Rica, porque chocalhou uma antropóloga de lá que veio a Podence fazer um estudo e acabaram a ter um filho”, diz Maria José que, ainda assim, não tem pressa para ter netos.
João participa em todas as atividades da aldeia, mas aquela que mais gosta de integrar é mesmo aquela que não aparece no programa para os turistas: depois de queimar o Entrudo, e se assinalar o fim da festa, os Caretos de Podence, os da aldeia, os amigos, os primos, os emigrados andam de porta em porta, a entrar nas casas onde há mesa posta, vinho à farta e braços abertos.
As casas fechadas durante grande parte do ano – como a de Elisabete Montalvão, que vive em Chaves – abrem-se para receber os Caretos e dessa forma assinalar a entrada num novo ano. “Esta é a tradição que é importante manter preservada. É aqui que revemos amigos e vizinhos, não consigo imaginar um carnaval em que não venha aqui abrir-lhes a porta”, argumenta.
João Xavier não aceita um Carnaval sem estar em Podence. A mãe, Maria, faz este ano 78 anos, e teve até um coro de Caretos a cantar-lhe os parabéns. “Ela até ficava chateada se não lhe viessem bater à porta”, conta João. Virgílio Rodrigues, já não tem a mãe viva, morreu no passado mês de junho.
Mas emprestou o fato ao filho, e ambos vieram de França para participar nesta romaria às casas dos vizinhos, e entrar em casas modestas e casas faustosas, todas parecem pequenas para tanto carinho e animação. “É esquisito vir à aldeia e não ter a minha mãe à minha espera. Mas a tradição é para se manter – é ela que nos dá força e vontade de continuar”, afirma, emocionado.
Findo o Carnaval, a quarta-feira é de cinzas para os católicos, e cinzenta para os de Podence. É fim de festa de cinzas, hora de recuperar energias, arrumar a casa e arrumar a aldeia e de se começarem a fazer algumas despedidas.
Tal como previsto, Alzira e José Quinteiro mal tiveram tempo para sair de trás do balcão. Mas ficaram imensamente felizes com todas as visitas. José Torres, mulher e filhos, vão precisar de uns dias para recuperar da azáfama do fim de semana do Carnaval. José Luís Desidério também. Mas nenhum deles se queixa – pelo contrário.
António Carneiro vai continuar a lutar por um crescimento sustentado do Carnaval de Podence. E não esconde que a sua preocupação não se limita à aldeia, mas a todo o nordeste transmontano, que enfrenta um problema transversal: o despovoamento. “Não duvido, nem ponho reservas à continuidade da festa. Temos muita gente que gosta dos Caretos e que nos quer vir visitar. Mas se a aldeia não tiver gente, é um problema. A festa faz-se por elas e para elas.”
Mas também aqui os aldeões mostram a sua resistência – e resiliência. Na semana antes do Carnaval faleceram duas moradoras da aldeia. E quando acabou o Entrudo chegou também a notícia do falecimento de Luís Filipe Costa, um jovem de menos de 40 anos e um dos principais dinamizadores das atividades culturais da aldeia, e responsável, também, pela sua efervescência económica, criando o projeto turístico da Quinta do Pomar.
Luís Filipe tirou o mestrado em Arte e Património na Universidade de Coimbra, é autor do livro “Caretos de Podence: História, Património e Turismo”, o primeiro com uma visão autorreflexiva sobre esta tradição milenar. Nos últimos meses travou uma luta intensa contra o cancro – e acabou por perder, deixando uma pequena vitória: a filha, Valentina, nascida em janeiro.
A pedido de Luis Filipe não houve missa nem flores nas exéquias finais. Houve trajes de Careto e donativos à Liga Portuguesa contra o Cancro. E a promessa de Sofia Pombares, a esposa, de que o sonho de ambos vai continuar.
Veja também o guia prático com o que fazer em Podence.
Mais sobre Podence
O que fazer em Podence (guia prático)
Guia com tudo o que precisa saber para visitar Podence, no concelho de Macedo de Cavaleiros (Bragança). Inclui o que fazer na aldeia e arredores – museus, praias fluviais e passeios -, onde ficar hospedado e os melhores restaurantes.
Egas Soares, o “velho” Careto
Vive em Podence há 32 anos, veio para a aldeia atrás da mulher que conheceu numa discoteca no Azibo. É Careto há 28 anos e, tendo quase 70, é o Careto com mais idade dentro do grupo daqueles que continuam a envergar o fato. Mas diz que rejuvenesce de cada vez que o veste. Não troca o sossego da aldeia por lugar nenhum.
José Luís Desidério, o Facanito
Em 1985, quando o Grupo de Caretos de Podence foi convidado a participar nas Jornadas da Cultura Popular, em Coimbra, José Luís era o mais novo do grupo. Era o “Facanito”, o nome que se dá aos Caretos mais jovens, que ainda são crianças mas já integram o grupo. É esse o nome que se dá também à taberna que abre na aldeia por altura do Carnaval.
Cecília Rosa Reis, a mulher-careto
Cecília Rosa foi das primeiras mulheres a vestir um fato de Careto. Fê-lo incentivada pelo pai, quando os homens da terra estavam emigrados, ou mobilizados na guerra do Ultramar. Saiu de Podence aos 12 anos, foi professora do ensino especial no Porto, está reformada, tem 70 anos. Regressa à aldeia todos os fins de semana, sempre que não está doente ou não está a viajar.