Vive em Podence há 32 anos, veio para a aldeia atrás da mulher que conheceu numa discoteca no Azibo. É Careto há 28 anos e, tendo quase 70, é o Careto com mais idade dentro do grupo daqueles que continuam a envergar o fato. Mas diz que rejuvenesce de cada vez que o veste. Não troca o sossego da aldeia por lugar nenhum. Eis o seu testemunho.
“Os Caretos são bons rapazes!”
Chamo-me Egas Soares, estou aqui em Podence vai para trinta e dois anos. Sou Careto há uns 28 ou 29 anos, nem sei bem. Nasci na Régua, mas vim trabalhar cá para cima, para a Vilariça, em 1977, e por aqui fiquei. Vinha lá de Vila Flor para aqui para o Azibo todas as noites, para a discoteca. Sim, havia uma discoteca no Azibo! Foi lá que conheci, então, a minha cara-metade. E agora cá estou.
O meu início de Careto é um pouco caricato. Eu ia tomar a minha bicazinha da manhã, e fui comprar um maço de tabaco ali ao café, quando me aparecem quatro ou cinco artistas que me convidam a vestir-me de Careto. Ia estar cá o nosso ex e falecido Presidente Jorge Sampaio, no Azibo, e precisavam de mais um rapaz para o grupo.
Eu respondi “ó pá, eu nunca me vesti, não tenho fato nem o caneco”… Mas o falecido tio Albano – que Deus o tenha em bom lugar, que era um grande amigo – disse-me “Nino, anda que eu empresto-te o meu fato”. E fomos lá para a adega dele.
Eram uns cinco ou seis Caretos e obrigaram-me, cada um deles, e por cada um deles, a beber uma canequinha de vinho. Agora imaginem às nove da manhã, com uma bica no fole, dois ou três cigarros fumados, beber seis canecas de vinho, daquelas de lata. É obra!
Lá me fardei. O falecido tio Albano teve o trabalho de me aparelhar em condições, e fomos nós para o Azibo, à espera do Presidente. Entretanto, uma senhora da Câmara veio dizer que o senhor presidente estava atrasado para aí uma hora, hora e meia. “Podeis ir ali para o café que tendes tudo pago… “. Ai o que nós fomos ouvir! Esgotámos as bebidas todas.
Quando o senhor presidente chegou ao início da aldeia, vieram dispor o sítio de cada um de nós, e deixaram-me a mim com o bonequito com a mascote na mão. E eu cumprimentei o presidente, passei-lhe a nossa mascote para a mão… e os outros começaram a saltar. Escusado será dizer que alguns deitaram fora o café e o vinho ficou lá dentro… Eu não, estive sempre certinho e direitinho. Portanto, foi o início um bocado caricato de Careto que eu tive…
A partir daí, depois, fiz mais duas ou três saídas com fatos emprestados. Até que, da segunda vez que fomos à Eurodisney, eu já tinha um fato pronto. Que é o fato que tenho hoje. E que já está bem velhinho.
Há uns dias vi em casa da minha mãe duas colchas e ainda lhe disse, “ó Emilinha, estas colchas são boas para mim, para fazer uns fatinhos novos…”. Mas ela avisou-me logo, “aquelas colchas são para o teu neto!”. Por isso, o meu fato vai ter de aguentar.
Aqui em Podence há a tradição de o fato passar do pai para o filho, e do filho para o neto. Eu, por acaso, como não sou de cá, sou paraquedista aqui na aldeia não herdei nenhum. Mas felizmente tenho aqui um rapaz que já vai ser o seguidor… Para já ainda anda de carrinho de bebé, e é a mãe dele que mo pede. A minha filha veste o fato de Careto muita vez. Chateia-me a cabeça, pede para eu tirar o fato para ela se vestir e andar para aí a pedalar. E eu empresto.
Ela tenta brincar como os Caretos, mas nota-se bem quando é uma rapariga.
Nota-se logo. De longe! É pela forma de chocalhar, é pela forma como se maneiam… Nós aqui não olhamos a gabarolice ou a etiquetice… nós somos verdadeiros, somos genuínos. Por isso é que o Carnaval de Podence é o mais genuíno de Portugal.
Isto é uma adrenalina que ninguém imagina, percebe?
Dou-lhe um exemplo. Uma vez saímos daqui numa quinta-feira à noite no autocarro da Câmara de Albufeira. Juro que não sei o que foi. Se o calor, a má posição, não dormir… sei que ganhei bolhas debaixo dos pés. Cheguei a Albufeira, foram simpáticos e deram-me logo um quarto, e a primeira coisa com que me me preocupei foi em arranjar uns chinelos de meter o dedo… Os outros iam passear, mas eu ficava no hotel. Quando, à noite, enfiava as botas de Careto, parecia que já não havia bolhas. Só no outro dia de manhã, quando as tirava, é que era uma chatice do raio.
Não consigo explicar o que é isto de vestir o fato de Careto. Não tens explicação para isso. Vive-se. É o momento. Tem de se viver o momento. Nós só queremos mostrar aquilo que somos. Isto é, que somos bons rapazes. Embora digam que os Caretos são maus, os Caretos são bons rapazes! Só que nós temos uma maneira de ser que as pessoas têm medo de nós. E é por terem medo de nós que às vezes se magoam.
Imagine que encontro uma senhora e vou chocalhá-la. Se ela se agarrar a mim, os chocalhos batem uns nos outros, não batem em si nem batem em mim. Portanto, é pelo pavor que as pessoas têm, pela ideia errada que têm dos Caretos que isso acontece… Mas, pronto, são os Caretos de Podence. Não vale a pena dizer mais nada.
O que celebram os Caretos? Celebram o Entrudo, a rebentação das árvores, a refloração, a mudança do solstício, a passagem do inverno para a primavera, o momento em que a terra começa a dar frutos e o Careto tem de mostrar que é capaz de fazer produção. É bonito.
Antes escondíamo-nos uns dos outros, com as máscaras ninguém sabia quem era quem. Mas conhecíamo-nos a todos. Agora é quase impossível conhecermos quem são os tantos Caretos que andam por aqui.
Nos dias fortes, se andar aí pela rua, pode encontrar uns cinquenta ou sessenta Caretos. Não são todos daqui, nem pouco mais ou menos. Muitos são emigrantes que vêm à aldeia. Outros são rapazes de fora que alugam o fato para andarem aí a passear. Mas, digo-lhe, os nossos verdadeiros Caretos, a gente conhece.
Desde que isto passou a Património da Humanidade muita coisa podia ter mudado, mas a pandemia estragou tudo. Havia hipótese de grandes projetos, protocolos que foram assinados, grandes coisas para fazer. Enfim, muitas promessas. Eu também já prometi que ia a pé para a senhora de Fátima. Só cheguei a Vila Real. Portanto… ainda a hei-de fazer.
Antes do nosso Carnaval ter ficado assim, mais industrializado, não havia esta organização toda. Nós juntávamo-nos e pronto. Uma vez, eu estava aqui em casa a acabar de almoçar, e aparecem-me uns artistas aqui da aldeia. Eles estão em França, mas no Carnaval aparecem sempre. E quando nos juntamos, corremos tudo o que é tasca.
Uma altura saí de lá de baixo, junto à casa do Careto, para vir até cá acima à minha casa, junto à igreja, e demorei mais de duas horas. Não é que houvesse muitas tascas, mas enfim, entrávamos onde havia vinho. E dávamos um passo para a frente e dois para trás.
Lembro-me que na casa do falecido Antonio Batôto, até pegávamos nele ao colo para irmos à adega beber um copo. Ele fazia só meia dúzia de garrafões de vinho branco, e era tudo para os Caretos. Portanto, havia um viver totalmente diferente, um espírito muito diferente.
De vez em quando ainda me dá um gosto do caneco atravessar-me um bocadinho, fazer uma patifariazinha, para manter o espírito… Eu algumas vezes extravio um bocadinho e já nem tenho idade para extraviar tanto.
E lá me aguento e vou atrás dos outros. Agora temos de andar para a fotografia, todos bonitos, parecemos manequins. Agora é mais industrializado. Mas continuamos a ser genuínos, não é?
Mais sobre Podence
Podence, muito mais do que um Entrudo
A aldeia rebenta pelas costuras com os visitantes que querem ver os Caretos de Podence, e explode de alegria com o regresso dos da terra. A felicidade de fazer parte de algo que é Património da Humanidade só acrescenta ao orgulho que os habitantes de Podence têm por ver uma das suas mais antigas tradições a reinventar-se, sem nunca perder as raízes. Dizem que é o Carnaval mais genuíno de Portugal – e continuam a conseguir vivê-lo.
O que fazer em Podence (guia prático)
Guia com tudo o que precisa saber para visitar Podence, no concelho de Macedo de Cavaleiros (Bragança). Inclui o que fazer na aldeia e arredores – museus, praias fluviais e passeios -, onde ficar hospedado e os melhores restaurantes.
José Luís Desidério, o Facanito
Em 1985, quando o Grupo de Caretos de Podence foi convidado a participar nas Jornadas da Cultura Popular, em Coimbra, José Luís era o mais novo do grupo. Era o “Facanito”, o nome que se dá aos Caretos mais jovens, que ainda são crianças mas já integram o grupo. É esse o nome que se dá também à taberna que abre na aldeia por altura do Carnaval.
Cecília Rosa Reis, a mulher-careto
Cecília Rosa foi das primeiras mulheres a vestir um fato de Careto. Fê-lo incentivada pelo pai, quando os homens da terra estavam emigrados, ou mobilizados na guerra do Ultramar. Saiu de Podence aos 12 anos, foi professora do ensino especial no Porto, está reformada, tem 70 anos. Regressa à aldeia todos os fins de semana, sempre que não está doente ou não está a viajar.