Cecília Rosa foi das primeiras mulheres a vestir um fato de Careto. Fê-lo incentivada pelo pai, quando os homens da terra estavam emigrados, ou mobilizados na guerra do Ultramar. As mulheres vestiam-se às escondidas, protegidas pelo anonimato da máscara, com luvas a disfarçar mãos femininas, saíam à rua para chocalhar e não serem chocalhadas. Saiu de Podence aos 12 anos, foi professora do ensino especial no Porto, está reformada, tem 70 anos. Regressa à aldeia todos os fins de semana, sempre que não está doente ou não está a viajar. Eis o seu testemunho.
“Ser Careto está-me nos genes, no ADN. Isto dá-me vida!”
Chamo-me Cecília Rosa Reis, nasci em Podence no dia 12 de maio de 1952, por isso já tenho 70 anos!!! Os meus pais também nasceram aqui na aldeia e nós éramos seis filhos – cinco raparigas e um rapaz. O meu pai era lavrador.
Aliás, todas as pessoas da aldeia viviam da lavoura e do gado. Nós tínhamos cinco vacas leiteiras, e duas vacas para trabalhar. Chamavam-se as vacas leiteiras e as vacas de jugo. Tínhamos 150 ovelhas e posso dizer-lhe que uma das piores coisas que havia era mungir as ovelhas, com aquelas tetinhas pequeninas. O meu pai tinha aqui um lameiro, perto deste sítio onde estamos sentados junto à fonte.
Cecília Rosa Reis
As raparigas na altura não se vestiam. Só me vestia eu porque eu era uma sem-lei, e porque não queria ser chocalhada.
Antigamente havia aqui duas pedras namoradeiras, de granito, uma de cada lado. As meninas vinham cá tomar conta da água, lavar a roupa. Foi aqui que eu dei o meu primeiro beijo! E o meu pai estava pertinho. Eu quando o vi fiquei tão vermelha, tão vermelha, tão vermelha!
– Ó Cecília, o que é que foi?, perguntava o meu pai.
– Ó pai, não foi nada.
– O que é que foi, caralho?, dizia o meu pai…. Que o meu pai dizia seiscentos mil palavrões…
– Olhe, dei-lhe um beijo mas foi de chapa…
– Ai tu já dás de outros?
Eu tinha doze anos, lembro-me que já tinha feito o exame da quarta classe, e havia um rapazinho que me andava a cortejar. Aqui arranjaram-se muitos casamentos. Chamávamos a este sítio a Fonte do Caminho de Lamas, porque é daqui que a água ia para os lameiros. Mas naquela altura nem sequer um beijo se podia dar. Deus me livre!
Quando alguém se chegava a nós era um diz-que-disse. Só no Entrudo é que se podia tudo. E os Caretos chegavam-nos bem. As raparigas na altura não se vestiam. Só me vestia eu porque eu era uma sem-lei, e porque não queria ser chocalhada.
Nós fugíamos deles o mais possível. Porque eles davam-nos cada “coça” que ficávamos com as nádegas todas negras, era uma coisa impressionante. Agora somos meiguinhos a chocalhar, é tudo a brincar. Mas naquela altura eles magoavam.
– Veste-te de Careto e ninguém te toca, ou identifica!, dizia o meu pai.
Ele pedia-me para não tirar a careta, usar umas luvas e as botas dele. Eles partiam portas, partiam as janelas, davam-nos cabo da comida, só faziam disparates. A gente escondia-se dentro de casa, e eles trepavam às varandas e janelas. Iam ao fumeiro, tiravam salpicões, linguiças, alheiras… No Carnaval valia tudo. Eles faziam coisas do arco-da-velha.
A primeira vez que me vesti de Careto também foi o meu pai que incentivou. Foi quando estavam inúmeros rapazes aqui da aldeia mobilizados para o Ultramar, em 1969 ou 1970. Aí a tradição dos Caretos esteve em risco, porque ninguém se vestia. Ou porque tinham filhos no Ultramar, uns porque tinham um primo, outros tinham sobrinhos… nas aldeias toda a gente é quase família. Mesmo que não haja afinidade nenhuma de sangue, há um carinho especial porque somos poucos e socialmente estamos todos muito próximos.
E um ano, o meu pai disse:
– Ó Cecília, isto nem parece Carnaval! Veste-te lá de Careto e vai dar uma volta ao povo, vais ver que ninguém te reconhece.
E eu, pronto, habituei-me. Não queria outra coisa. Que esta farda parece que nos dá forças.
Às vezes estava com gripe, com febre… sei que se veste o fato e eliminam-se as toxinas todas. Não fica cá nada. São fatos feitos de colchas de linho e de lã, são muito pesados e muito quentes. Por cima das colchas ainda lhes pregam franjas, todas em lã. O fato é pesadíssimo!!! Eu agora só trago três chocalhos. Mas naquela altura, quanto mais chocalhos, melhor. Mais rico era o Careto! Dizem que os Caretos encarnam o diabo, e o que eu sei é que quando vestimos o fato, sentimos uma energia, a gente tem de fazer diabruras. Eu até ao Marcelo [Rebelo de Sousa] fiz diabruras….
Passados estes anos todos, eu não deixo esta prática. Ser Careto está-me nos genes, no ADN. Isto dá-me vida! Tenho três hérnias gémeas discais, mas quando venho para aqui não há hérnias. Na verdade, fiz a acupuntura antes de vir.
Eu saí da aldeia muito nova, com 12 anos. Primeiro, fui para Bragança fazer o exame de admissão nas freiras do Arco. Fizemos a prova escrita e depois tínhamos de estar lá à espera da prova oral …. Eu tinha tantas saudades do meu pai que me punha a chorar, “eu quero-me ir embora, quero ir para Podence”. E pus-me a andar, a pé, julgava que era pertinho. Em Santa Comba de Roças tinha um primo na GNR, em Bragança, e andava na mota – era o Famel foguete, um motão. Ele trouxe-me até aqui, mas a minha mãe recambiou-me. Bem podia dizer que tinha saudades do meu pai. Olhe, puseram-me nas Doroteias, em Lisboa. De lá eu não podia fugir.
Eu estudei, fiz o magistério, e fiquei a trabalhar muitos anos no Porto. Ainda estive aqui um ano em Alfândega da Fé, nos Cerejais, porque me enganei a concorrer. Mas trabalhei quase sempre no Porto. Corri aquelas escolas todas, aqueles bairros todos, sempre professora de ensino especial.
Não tive vagar de arranjar filhos, porque na verdade também tive uma vida familiar muito complicada. Quando o meu irmão veio do Ultramar , vinha bastante “avariado”. Nessa altura a minha mãe teve um acidente, caiu e faleceu e ele ficou de cama. Nunca lidou bem. E depois teve uma embolia cerebral, ficou com lesões, uma paralisia do lado esquerdo, esteve dezoito anos comigo. Eu namorei e tudo, mas para ter filhos acho que não sentia segurança. Sei lá. E quando o meu irmão morreu já era tarde. Já era uma mãe muito velha.
Acompanhei casos bastante complicados, mas tenho muitas saudades desses meninos. Alguns ainda me ligam hoje. Um deles está na Finlândia, já tem 14 anos, e acabou lá numa casa de acolhimento. Liga para mim porque não tem mais ninguém que fale português com ele.
Setembro era o mês mais difícil. Era quando fazia as entrevistas aos pais, e conhecia histórias tão difíceis. Os casais que têm um filho deficiente são muito infelizes. Também há pais que ficam infelizes, mas a maior loucura é das mães. As mães nem têm o direito de morrer tranquilas.
Agora já estou reformada. Tenho casa no Porto mas venho para Podence cinquenta e duas vezes por ano, todos os fins-de-semana. Cheguei a esta idade e ainda não tenho uma casa de jeito, mas ao menos vi desse mundo o que queria. Só me falta montar num avião e pôr um pé na Austrália. Sou uma pessoa pobre em bens materiais – como digo, nem sequer tenho uma casa em condições aqui em Podence – mas já viajei muito. Estados Unidos, China, Argentina, Peru, Brasil… Conheço de norte a sul, desde Manaus, Pará até ao Iguaçu. Eu no Brasil fiz doze viagens, doze voos internos. Ninguém gasta muito dinheiro no Brasil, mas eu gastei um balúrdio.
Uma vez disse que era de Podence e eles lá já conheciam os Caretos. Perguntaram-me porque não levava o fato. E eu disse, para aqui? Com este calor? Então é que eu morria… Também estive na Argentina, no Peru, mas nem gostei nada, só de Lima. Também fui a Cuzco e a Machu Picchu, mas o nosso Douro ainda é mais bonito do que aqueles socalcos. E fiquei muito impressionada com a pobreza no Lago Titicaca.
Cecília Rosa Reis
As raparigas na altura não se vestiam. Só me vestia eu porque eu era uma sem-lei, e porque não queria ser chocalhada.
O que lhe digo, e ao que ainda se vê por esse mundo fora, é que nós temos muita sorte em ter nascido mulheres aqui em Portugal. Temos muita sorte. Também não deixo que ninguém diga mal do Serviço Nacional de Saúde – que depois de ter estado na Escócia com umas amigas, e não encontrar quem lhe desse nada para uma bolha que ela fez nos pés e que ficou em sangue, eu já não preciso de ver mais nada.
Eu gosto muito de Portugal e gosto muito da minha aldeia. Gosto de tudo. Alheiras, salpicões, de linguiças, feijoada à transmontana. Aqui há coisas que são únicas. Por exemplo, milhos de tomate com frango frito… ai, é de bradar aos céus. Gosto de folar, gosto de económicos, gosto de calços, que são os nossos bolos típicos da Páscoa. É por isso que eu sou gordinha. Gosto tanto de comer!
E depois, em Podence é tudo muito bonito. De inverno, com a neve – há ali um friso na serra que não coalha, não derrete – a paisagem é muito bonita. Mas para mim o melhor é no verão, vamos para a barragem tomar banho.
Agora, Podence é conhecido nos quatro cantos do mundo, há muito turismo, mas na verdade não temos estruturas para tanta gente como para aquela que nos visitou da primeira vez que o Marcelo veio cá. No primeiro dia em que esteve cá o Marcelo não se cabia. Não temos estruturas para tanta gente.
Eu vou aprender a fazer franjas e a cozê-las nos fatos de Careto. Quero fazer três fatos para os meus sobrinhos – é para a tradição continuar, e os fatos são muito caros. Vou ver se aprendo eu a fazê-los.
Mais sobre Podence
Podence, muito mais do que um Entrudo
A aldeia rebenta pelas costuras com os visitantes que querem ver os Caretos de Podence, e explode de alegria com o regresso dos da terra. A felicidade de fazer parte de algo que é Património da Humanidade só acrescenta ao orgulho que os habitantes de Podence têm por ver uma das suas mais antigas tradições a reinventar-se, sem nunca perder as raízes. Dizem que é o Carnaval mais genuíno de Portugal – e continuam a conseguir vivê-lo.
O que fazer em Podence (guia prático)
Guia com tudo o que precisa saber para visitar Podence, no concelho de Macedo de Cavaleiros (Bragança). Inclui o que fazer na aldeia e arredores – museus, praias fluviais e passeios -, onde ficar hospedado e os melhores restaurantes.
Egas Soares, o “velho” Careto
Vive em Podence há 32 anos, veio para a aldeia atrás da mulher que conheceu numa discoteca no Azibo. É Careto há 28 anos e, tendo quase 70, é o Careto com mais idade dentro do grupo daqueles que continuam a envergar o fato. Mas diz que rejuvenesce de cada vez que o veste. Não troca o sossego da aldeia por lugar nenhum.
José Luís Desidério, o Facanito
Em 1985, quando o Grupo de Caretos de Podence foi convidado a participar nas Jornadas da Cultura Popular, em Coimbra, José Luís era o mais novo do grupo. Era o “Facanito”, o nome que se dá aos Caretos mais jovens, que ainda são crianças mas já integram o grupo. É esse o nome que se dá também à taberna que abre na aldeia por altura do Carnaval.