Em 1985, quando o Grupo de Caretos de Podence foi convidado a participar nas Jornadas da Cultura Popular, em Coimbra, José Luís era o mais novo do grupo. Era o Facanito, o nome que se dá aos Caretos mais jovens, que ainda são crianças mas já integram o grupo. É esse o nome que se dá também à taberna que abre na aldeia por altura do Carnaval. Eis o seu testemunho.
“Sou muito feliz com a minha vida em Podence”
Chamo-me José Luís Bernardo Desidério, tenho 39 anos, nasci e fui criado aqui na aldeia de Podence. Tanto o meu pai como a minha mãe também são aqui da aldeia, sempre viveram cá, em trabalhos ligados à agricultura. Tenho mais duas irmãs, eu acabei por ser o único rapaz. Estou muito ligado a esta terra. Não vivi sempre na aldeia, porque estive alguns anos a trabalhar nos transportes internacionais, passava muito tempo longe de casa. Mas agora já me deixei disso, já percebi que é melhor ficar por aqui, trabalhar na agricultura, estar perto da família.
Sou casado e já tenho duas filhas, que também já se vestem de Careto, sempre que podem. É uma tradição importante, e que é preciso preservar. Passa de pais para filhos.
Quando a gente veste o fato parece que fica com uma adrenalina irresistível. Acho que somos outra pessoa, já não somos o mesmo.
José Luís Desidério
O meu pai também era Careto, desde pequenino. Mas as fardas que eles vestiam naquela altura eram bem mais esfarrapadas. Agora não. Houve uma evolução grande. Os nossos fatos são feitos com colchas de qualidade, quentinhas. Antes dormíamos debaixo delas, agora andamos com elas vestidas.
Eu sou o Facanito mais antigo que apareceu aqui em Podence. Fui o mais novo que acompanhou o grupo de Caretos quando foram convidados para ir a Coimbra, apresentarem-se nas Jornadas da Cultura Popular. Na altura perguntaram aos meus pais se eu podia ir e eu lá fui, o primeiro Facanito. Ainda hoje me conhecem por Facanito aqui na terra. Foi esse o nome que dei à tasca que abro no Carnaval desde há quatro anos. Abrir o restaurante foi boa ideia, mas isso também significa ter menos tempo para andar aí na rua a brincar ao Entrudo.
Eu já não vestia o fato há 12 anos. Desde que a minha mãe faleceu, eu encostei o fato. Uma pessoa parece que perde a vontade. Antigamente também era um pouco para guardar respeito, fazer o luto. Depois parece que falta a auto-estima. Só o voltei a vestir este ano, e porque vinha cá o Presidente da República.
Sabe, quando a gente veste o fato parece que fica com uma adrenalina irresistível. Acho que somos outra pessoa, já não somos o mesmo. Já não temos vergonha, ou aquele medo que às vezes toda a gente sente. Eu saía todos os anos de Careto, mas nos últimos anos têm sido as minhas filhas quem anda com os fatos.
Eu tenho três fardas, foram todas feitas pela minha mãe. A pequenita, de Facanito, que levei a Coimbra e que deu até aos sete ou oito anos, depois a farda média, até aos 13 ou 14, e por fim a farda de adulto. Guardo esses fatos religiosamente, não só porque foi a minha mãe que os fez, mas também porque agora há pouco quem os faça. São como que um tesouro.
Mas este ano, e como vinha cá outra vez o Presidente da República inaugurar um mural com a imagem dele que lhe fizeram aqui na aldeia, eu entendi que era uma boa razão para me juntar ao grupo. De resto, durante o Carnaval não temos tempo para mais nada com o trabalho no restaurante. Passo aqui os dias agarrado ao grelhador, a meter as carnes no assador. Trabalha a minha mulher, ajudam as minhas filhas, e temos de meter muita gente para nos ajudar na cozinha e nas louças. Dá muito trabalho, mas vale muito a pena.
Já pensei em ter o restaurante aberto o ano todo, mas na verdade com tudo o que temos de construir e tudo o que tínhamos de pagar acho que não vale a pena. Acho que tinha de ter aqui quatro casas de banho! São muitas exigências, muita burocracia é um investimento grande, e depois não há retorno. No Carnaval vem cá muita gente, mas no resto do ano Podence é muito calminho, não tem procura que justifique e que tornasse o negócio rentável.
Quando andava nos transportes internacionais estava sempre a pensar em regressar à terra. Felizmente que consegui e agora aqui estou. A minha mulher – que conheci em Mirandela – ficou sempre cá. E agora eu também optei por ficar aqui. Trabalhamos os dois na agricultura. É uma vida um bocadinho dura, mas compensa: produzimos castanhas, batatas, cebolas, tomates, galinhas. Temos para consumo próprio e para vender.
Por isso, não me arrependo nada de ter deixado a vida dos transportes, de maneira alguma. O meio rural também é bom, temos é de nos habituar a ele. O melhor de viver numa aldeia como Podence é o descanso, o sossego que aqui temos. O pior, às vezes, é aquela solidão que a gente sente. Porque às vezes, numa semana, cruzamo-nos com uma ou duas pessoas. Há muito pouca gente a viver na aldeia o ano todo. Devíamos ser mais.
É uma tradição importante, e que é preciso preservar.
José Luís Desidério
Eu tenho duas filhas e, por enquanto, elas gostam de cá viver. A Eduarda é a mais velha, tem 18 anos, e já está em Bragança a estudar no ensino superior. Fica lá em Bragança durante a semana, mas ao fim de semana vem sempre à terra. A mais nova é a Gabriela, tem 11 anos, e vai todos os dias para Macedo de Cavaleiros. Vamos lá a ver o que o futuro reserva. Mas toda a gente que seja de cá, gosta muito de Podence. Fica aqui sempre com qualquer coisa de muito especial. E eu acho que é esta tradição dos Caretos, sem dúvida.
Desde que foi considerado Património da Humanidade, a tradição dos Caretos mudou um bocadinho. Agora há muita dinâmica, há muita gente que nos vem visitar, mesmo durante o ano todo. Para quem vive na aldeia é bom, claro. Só é pena não termos as tabernas abertas durante o ano, nem que fosse só ao fim de semana, ou na época do verão, para acolhermos as pessoas. Assim, fica tudo muito concentrado nos quatro dias de Carnaval.
Mas eu aconselho vivamente a vida na aldeia. O primeiro conselho que eu daria a quem quisesse mudar de vida e vir para uma aldeia como Podence é saber que na agricultura estamos sempre dependentes do clima. Não estamos só dependentes do nosso trabalho. Por exemplo, o ano passado foi um ano muito mau, porque não choveu e o rendimento foi bastante mais fraco. Mas depois há anos melhores. E sossego há sempre.
E como diziam os antigos, por pobres não passamos mas a ricos não chegamos. Sou muito feliz aqui em Podence. Temos de trabalhar na agricultura para ter produção e não haver escassez de nada. Mas, desde que haja saúde, há felicidade!
Mais sobre Podence
Podence, muito mais do que um Entrudo
A aldeia rebenta pelas costuras com os visitantes que querem ver os Caretos de Podence, e explode de alegria com o regresso dos da terra. A felicidade de fazer parte de algo que é Património da Humanidade só acrescenta ao orgulho que os habitantes de Podence têm por ver uma das suas mais antigas tradições a reinventar-se, sem nunca perder as raízes. Dizem que é o Carnaval mais genuíno de Portugal – e continuam a conseguir vivê-lo.
O que fazer em Podence (guia prático)
Guia com tudo o que precisa saber para visitar Podence, no concelho de Macedo de Cavaleiros (Bragança). Inclui o que fazer na aldeia e arredores – museus, praias fluviais e passeios -, onde ficar hospedado e os melhores restaurantes.
Egas Soares, o “velho” Careto
Vive em Podence há 32 anos, veio para a aldeia atrás da mulher que conheceu numa discoteca no Azibo. É Careto há 28 anos e, tendo quase 70, é o Careto com mais idade dentro do grupo daqueles que continuam a envergar o fato. Mas diz que rejuvenesce de cada vez que o veste. Não troca o sossego da aldeia por lugar nenhum.
Cecília Rosa Reis, a mulher-careto
Cecília Rosa foi das primeiras mulheres a vestir um fato de Careto. Fê-lo incentivada pelo pai, quando os homens da terra estavam emigrados, ou mobilizados na guerra do Ultramar. Saiu de Podence aos 12 anos, foi professora do ensino especial no Porto, está reformada, tem 70 anos. Regressa à aldeia todos os fins de semana, sempre que não está doente ou não está a viajar.