Nasceu em Paris há 34 anos, tem cara de menina, ar sereno, voz pausada. Formou-se em Biologia, especializou-se em fermentação. Quis experimentar a agricultura e a enologia. Apaixonou-se por Uva, terra dos avós onde sempre vinha passar férias e onde as vinhas velhas do avô e as castas tradicionais do planalto se tornaram um desafio difícil de resistir. Apaixonou-se por Emanuele, um italiano que trabalhava como voluntário na aldeia. Hoje estão a construir um ninho, e a educar a primeira bebé nascida na aldeia desde há mais de 20 anos. Eis o seu testemunho.
“As pessoas não acreditavam que uma menina de Paris queria viver em Uva e fazer vinho”
Chamo-me Aline, tenho 34 anos e nasci na região de Paris. Fui lá que cresci, que estudei e que me formei em Biologia. Os meus pais são ambos desta aldeia, mas emigraram para França nos anos 80. Eu vinha cá muitas vezes nas férias de verão. Foi em Paris que eu me comecei a interessar por vinho e por enologia, e foi por isso que deixei a minha formação inicial em Biologia e fui estudar uma coisa mais especifica, a fermentação, sempre a pensar em perceber o vinho.
Eu gostava da minha vida em Paris, mas comecei a ter vontade de ter um projeto meu, de fazer vinho, e pensei logo em Portugal. Mas na verdade não tinha na cabeça esta região dos meus pais. Eu já conhecia a aldeia, sabia que era muito isolada, e nunca pensei que poderia viver aqui. Então em 2017 vim para Portugal e comecei a procurar coisas no Douro. Procurava um sítio onde me podia sentir bem. E acabei por descobrir que onde me podia sentir bem era mesmo aqui em Uva.
Foi depois de começar a passar aqui algumas temporadas, alguns meses seguidos, e que comecei a conviver com toda esta gente da Palombar e das associações que passam por aqui. E depois encontrei estas vinhas velhas, que ninguém explora muito, e apaixonei-me por isto. Foi aqui mesmo que tive vontade de avançar com um projeto.
Claro que fazer vinho aqui é muito diferente de fazer vinho no Douro, por exemplo. Tem outros desafios. São castas muito diferentes, e um clima muito diferente. Aqui é tudo muito mais árido, não temos os mesmos problemas fitossanitários. E é muito mais trabalho manual, porque são tudo vinhas velhas, não é mecanizado. É tudo muito menos explorado.
Comecei com estas vinhas que eram do meu avô, mas o terreno era muito pequeno, mesmo para quem faz uma produção pequena como eu – a minha produção é de dez mil garrafas. Eu não tenho vinhas e a primeira dificuldade foi convencer as pessoas a alugarem-me os seus terrenos. Falei com as pessoas que já não podiam tratar dos terrenos e elas deixaram-me tratar da vinha. Mas percebi que as pessoas ficavam muito surpreendidas. Não percebiam duas coisas: como é que eu, uma menina nascida e crescida em Paris, tinha vontade de viver aqui; e em segundo, como é que tinha vontade de fazer agricultura. No início estavam mesmo desconfiadas. Achavam que a menina de Paris não sabia fazer nada.
Mesmo a minha família, os meus avós e os meus pais, demoraram a acreditar que era possível. O meu avó deixou-me começar. Deixou-me tratar das vinhas dele, e ajudou a desbloquear a situação. Depois, a vizinha do meu avô também acedeu… pouco a pouco, as pessoas foram percebendo que eu ia mesmo tratar das vinhas.
Em 2017 fiz a primeira experiência, 100 garrafas. Não vendemos nada, foi tudo para consumo interno, para experimentar o que se podia fazer com aquelas vinhas. Agora lancei a marca Menina D’Uva. É um vinho feito exclusivamente de vinhas velhas e de castas tradicionais do Planalto Mirandês. Nas vinhas trabalhamos em agricultura orgânica, e na adega também não usamos aditivos enológicos – além de uma dose mínima de sulfitos, mas é o único aditivo. A fermentação é natural, com leveduras espontâneas.
No total, faço dez mil garrafas, e trabalho com vários distribuidores. É muito mais prático em termo de gestão e de logística e tudo. Vendo para vários países. Mas 20% da produção acaba por ficar em Portugal – Lisboa e Porto. Depois tenho um distribuidor no Canadá, outro nos Estados Unidos e outro na Bélgica.
A ideia não é muito de crescer e produzir mais. Temos vontade de ficar uma produção pequena e cuidar do melhor das vinhas. Tenho três hectares de vinha velha e estamos a plantar vinha nova, a enxertar castas tradicionais. Aqui as castas tradicionais são principalmente a tinta gorda, no tinto; no branco temos bastardo branco, malvasia e formosa. Também começamos a fazer rosé e um espumante natural – que chamamos Petnat e que é feito como antigamente, com a fermentação na garrafa. Acho que é muito bom.
Mas em vez de querer crescer muito mais, preferimos pensar em outros pequenos projetos. Temos ideias para outras produções. Se calhar fazer queijo. Ou cereais.
As coisas encaminharam-se de maneira muito diferente. O que me fez apaixonar por Uva não foi ser a aldeia dos meus avós. Foi ter uma dinâmica diferente. Porque há aqui muitas pessoas a trabalhar para a associação Palombar, ou para AEPGA mas que também vivem aqui, e isso dinamiza muito a aldeia. Acaba por haver um grupo de jovens que nos permite ter vida social. Foi entre essas pessoas que trabalham nas associações que conheci o Emanuele.
Agora nasceu-nos um bebé, estamos aqui a construir o ninho. As coisas correram bem, na gravidez e no nascimento. Deram-me a escolher e eu optei por ir ter o bebé ao Hospital público da Póvoa do Varzim, percebi que lá o acompanhamento é diferente, humanizado. Correu tudo muito bem. Temos uma vida tranquila, feliz. Dizem que foi há mais de 20 anos que nasceu aqui o último bebé na aldeia, toda a gente o quer conhecer. Na verdade agora o meu filho é que é o menino de Uva.
Mais sobre Uva
Uva, a aldeia dos pombos e dos pombais
Uma aldeia do planalto transmontano com 50 pessoas, 40 pombais, sete burros e dez italianos é diferente de todas as outras. Por tudo isso, e também pelo incrível ambiente comunitário que junta pessoas de várias gerações e geografias no café da aldeia. Um café que só existe para financiar as festas anuais em honra da padroeira, e por onde agora também circula Olmo, ainda num carinho de bebé. A mãe é francesa. O pai é italiano. Mas Olmo “é de Uva”. “Já cá não nos nascia um bebé há 20 anos. E este é lindo como o sol”.
Américo Guedes, o diretor da Palombar
Nasceu no Douro vinhateiro mas mudou-se para o planalto transmontano seduzido pela biodiversidade e pelas ações de conservação da Natureza que uma associação como a Palombar planeia e permite. Começou como técnico, agora está na direção, com a responsabilidade de gerir uma equipa de quase 20 pessoas.
Francesco Turchini, o regressado
Nasceu numa cidade turística em Itália mas sempre quis experimentar o trabalho agrícola. Inscreveu-se num programa de Serviço Civil que, em Itália, substituiu o Serviço Militar Obrigatório, e veio parar a Uva. Trabalhou de maio a maio, no verão voltou para matar saudades e acabou contratado pela Palombar. Aprecia os dias no campo, que são sempre diferentes, e a comunidade de “novos e velhos” que ao fim do dia se junta no café para beber uma cerveja e confraternizar.
Fernanda Pereira, a mulher dos sete ofícios
Nasceu numa aldeia de Vila Real emigrou para França aos 16 anos, viveu clandestina durante mais de dez. Deixou um apartamento de 75 metros quadrados em Paris – “não era qualquer português que conseguia viver assim!” – para poder ter uma casa própria em Portugal, na aldeia do marido. Hoje é a mulher que abre o café e a igreja, a vizinha com quem se espanta a solidão, a tecedeira que garante que se continuam a fazer alforges na aldeia. É uma mulher dos sete ofícios.
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