Uma aldeia do planalto mirandês com 50 pessoas, 40 pombais, sete burros e dez italianos é diferente de todas as outras. Por tudo isso, e também pelo incrível ambiente comunitário que junta pessoas de várias gerações e geografias no café da aldeia. Um café que só existe para financiar as festas anuais em honra da padroeira, e por onde agora também circula Olmo, ainda num carinho de bebé. A mãe é francesa. O pai é italiano. Mas Olmo “é de Uva”. “Já cá não nos nascia um bebé há 20 anos. E este é lindo como o sol”.
Foi a passagem de mais uma daquelas tempestades que levam nomes de pessoas. Era a Aline, desta vez. Fez muitos estragos a Norte, mas em Uva, uma pequena aldeia do concelho de Vimioso, em pleno planalto transmontano, não fez particulares estragos. Naquela quarta-feira de Outubro, depois de uma noite de muita chuva, as ruas estavam lavadas e o sol começava a ganhar às nuvens. O que batia certo com a vontade que os poucos, mas fiéis, devotos habitantes da aldeia tinham de ir à missa.
Em Uva, a missa dominical faz-se às quartas-feiras, o dia da semana que o padre Rufino Xavier, pároco há 14 anos, guardou no calendário em que organiza as atividades que presta a 19 paróquias. A missa não se faz na igreja paroquial (dedicada a Santa Marinha), mas na capela da aldeia, que acaba por ter uma dimensão mais apropriada para os pouco mais de uma dúzia de fiéis que se apresentam para a missa.
Berta Rosa Fernandes
É uma alegria haver sempre tanta gente a chegar à aldeia
A partir das 9h30, pouco antes da missa das dez, parecia que estava tudo pronto para mais um dia de trabalho – sendo que, para muitos, o dia de trabalho não começa sem um trago de café. Mas, nessa manhã, nem Emílio nem Fernanda, marido e mulher, tinham vindo abrir as portas do café no Largo da Capela. Fernanda foi direta para a missa, Emílio foi antes para o trabalho.
Felizmente, Rosa, que tem sangue italiano a correr-lhe nas veias, não deixa ninguém pendurado com falta de cafeína. Mora ao lado da igreja, em frente ao café. E, ao ver quatro almas a olhar para a porta fechada e para o número de telefone que Fernanda afixara na porta, pergunta se queremos uma xícara de café, que ela iria fazer um. Estava dado o mote para esta aldeia do planalto transmontano que parece diferente de todas, e de tudo.
Rosa está de folga. É voluntária na Palombar, chegou em maio a Uva. Divide casa com Paolo, Renato e Nicola. E faz café para desconhecidos quando está de folga. É comum haver desconhecidos a circular pela aldeia. E esse também é mérito da Palombar, a associação para a conservação de natureza e do património que todos os anos organiza campos de trabalho internacionais e recebe voluntários de todo o país – e de Itália também.
Berta Rosa Fernandes leva os seus 80 anos pela rua abaixo, protegida por um xaile. Faça chuva ou faça sol, dia de missa é dia de missa. E ela vai cedo, para não se atrasar. É ela quem nos diz que “é uma alegria haver sempre tanta gente a chegar à aldeia”. E que os italianos são sempre “gente muito bem formada, muito simpática, muito nossos amigos”. “Ainda bem que eles vêm para cá. Acho que é para tratar dos pombais. Mas a verdade é que dão alguma alegria a isto. Caso contrário era só velhos que para aqui estávamos”, discursa.
Na aldeia de Uva habitam em permanência cerca de 50 pessoas. A grande maioria tem já idade avançada, mas os trabalhadores da Palombar ajudam a equilibrar a balança sempre negativa que encontramos nestes territórios amplamente despovoados.
A Palombar funciona na antiga escola primária da aldeia, num lugar altaneiro com vista privilegiada para o casario e para os pombais. Essa é uma particularidade de Uva. Muitas aldeias de Trás-os-Montes têm pombais entre as suas construções, mas nenhuma tem uma concentração tão expressiva como Uva, onde existem 40 pombais.
Palombar quer dizer pombal em mirandês, e foram estas estruturas que levaram à fundação desta associação de conservação da natureza criada por altura da definição do Parque Natural do Douro Internacional, em 2000. A associação trabalha diariamente com 15 funcionários contratados e cinco voluntários. Nem todos vivem em Uva, mas quase todos passam pela aldeia todos os dias. E isso dá muito movimento à aldeia.
Iván Gutiérrez é biólogo natural de Salamanca, veio à experiência para a Palombar há dois pares de anos. Não voltou a sair, e é agora responsável pela gestão e monitorização dos Campos de Alimentação de Aves Necrófagas. Com esta tarefa a encargo, Iván percorre as arribas do Douro e o planalto para ver de perto como se comportam as populações de grifos, abutres-preto, britangos e águias-real que por ali se alimentam e nidificam.
Iván já viveu em Uva e em Teixeira, agora vive em Atenor. Sempre em aldeias do planalto, ora no concelho de Vimioso, ora no concelho de Miranda, onde consegue uma casa para alugar. Nesta quarta-feira também está em Uva, porque é dia de fazer recolha de amostras nas estações de biodiversidade que integram o projeto LIFEPLAN – um projeto à escala global coordenado pela Universidade de Helsínquia, na Finlândia, que vai ajudar a obter dados sobre a diversidade biológica do mundo. Iván vai fazer uma recolha de pólen, uma recolha de insetos e uma recolha de solos, bem como trocar os cartões das foto-armadilhas e dos gravadores de áudio. Quatro vezes por ano, e até 2027, a Palombar está responsável por realizar estas campanhas de amostragem.
“Hoje é dia de andar no terreno, mas também de vir ao escritório”, sorri. E não se pode queixar do escritório, brinca, “se na hora de almoço posso levantar a cabeça e ver umas águias a vir caçar a um destes pombais”. Iván, garante, já as viu algumas vezes e é sempre um espetáculo bonito.
Essa é uma das razões pela qual a Palombar se mantém tão empenhada em recuperar pombais – e em ter um número sustentável de pombos. A recuperação do património rural e a manutenção do conhecimento de técnicas de construção ancestrais está no ADN da Palombar tanto quanto a gestão de ecossistemas que procura controlar a população de espécies cujo estatuto de conservação está em perigo. Os pombos são essenciais para manter a cadeira alimentar, para preservar o ecossistema.
À volta do escritório de Iván há muitos pombais. Os pombais tradicionais são uma espécie de imagem de marca de Trás-os-Montes, mas não há nenhuma aldeia que os tenha tão concentrados, tão fotogénicos, tão conservados quanto Uva. Há 40 pombais, quase tantos quantos os 50 habitantes que vivem em Uva todos os dias. Os pombais estão muito associados à própria subsistência da comunidade rural que usava os pombos juvenis – os borrachos – para a alimentação. Como os campos estavam quase todos cultivados, os pombos andavam à solta, alimentavam-se nos campos, os donos não precisavam de se preocupar com rações. Hoje em dia já não é assim. Os campos já não estão cultivados, quase ninguém come borrachos às refeições, e quase sempre é preciso comprar ração para os alimentar.
Berta Rosa é dona de um dos pombais, lembra-se de ser “pequenina”, e de às vezes “se comer um borrachinho, nos dias de festa”. “Antigamente comíamos porque também não havia mais nada. Hoje em dia não era capaz de comer um animal tão pequenino. São tão lindos, por aí a voar”, explica. Não faz ideia quantos animais tem dentro do seu pombal. Diz que vai lá por uma saca de trigo de vez em quando. “As águias é que os comem”.
Havia outra razão importante para a existência dos pombais. Em terra de solos áridos, o “pombinho” era o estrume usado para adubar a terra, fertilizar os campos. A Palombar continua a usá-lo. José Alberto Antão, agricultor, também.
Pombas e Pombinho
José Alberto, tem 72 anos. A mulher, Fátima, 68. E, garantem na aldeia, foram os únicos moradores de Uva que nunca emigraram para procurar vida noutro país. A vida no planalto transmontano não é sempre fácil. “Mas fora do planalto também não”, acrescenta Fátima. Fátima e José Alberto escolheram criar os dois filhos sem nunca sair da aldeia, criando gado, plantando cereais, “colecionando tratores”. É José Alberto quem o diz, sorridente, quando abre a porta do armazém para mostrar as máquinas, um pouco antes de ir buscar couves para dar às galinhas ou de abrir o portão para soltar as burras.
José e Fátima criaram muitas vacas. Agora, dizem, já não têm vida para isso. E, por isso, estão a criar burros. “Os burros não dão tanto” – não dão o mesmo rendimento, mas também não dão tanto trabalho. A tradição é para se manter – “e os burros andam aqui felizes, à volta dos pombais”. Marta, Maria, Morena, Quaresma, Uva. E agora a bebé-burra, a Torrona, que está a enfrentar a fase de desmame, tem de aprender a comer, e por isso está fechada numa loja, afastada da mãe.
Nos terrenos de Fátima e José há couves e cebola, grelos e nabiças, batatas e cenouras. “Fazemos para nós e para os nossos filhos. Já não andamos pelas feiras a vender. Aqui toda a gente tem couves para meter numa panela de sopa”. A filha, que trabalha numa empresa em Santa Maria da Feira; e o filho, que trabalha na GNR, também têm sempre legumes frescos cultivados pelos pais. Essa é uma outra característica bonita de Uva. Os quintais estão cultivados, as hortas estão viçosas, os “cegonhos” com que se tira água dos poços estão operacionais e a uso. “Os nossos dias são sempre iguais. E são sempre felizes. Gosto muito de viver nesta minha aldeia, dou-me bem com toda a gente. O melhor aqui é o sossego”, diz Fátima.
Os terrenos de Fátima e José ficam pegados à igreja Matriz, que tem Santa Marinha como padroeira. Há uma curiosidade no posicionamento desta igreja, que contrasta também com o posicionamento das portas de cada um dos pombais. Enquanto que nos pombais, de construção cilíndrica, a respetiva porta está quase sempre virada para a casa do dono (“assim o proprietário não tinha de sair de casa para ver se a porta do pombal estava aberta ou fechada”, explica Emílio Domingues, um dos moradores), a fachada principal da Igreja está de costas para o principal aglomerado da população.
A chave não está na porta, mas está debaixo de uma pedra, toda a gente da aldeia sabe qual, para poder entrar sempre que precisar. “Quem vem para roubar não precisa de chave”, limita-se a justificar Fátima Antão, explicando que a frontaria da igreja não está de costas para o povo, mas sim “está de frente para quem chega”, vindo da aldeia vizinha de Algoso.
Posicionamentos e implantações à parte, a verdade é que casario, igreja e pombais compõem um cenário cinematográfico à aldeia. E hoje em dia, até, uma boa parte dos pombais de Uva não está sequer a desempenhar a sua principal função, de ser abrigo dos pombos. São antes uma espécie de despensa onde agricultores guardam o material da lavoura. De construção rudimentar, muitos precisaram de intervenção. E a Palombar, ao longo das suas décadas de existência foi avançando nos trabalhos de recuperação, a uma média de um pombal por ano, ao ritmo dos campos de trabalho internacionais que organiza para os voluntários.
Foi assim que Ricky Marques, natural de Valença do Minho, 34 anos, pelo menos dez dos quais a trabalhar na vizinha Espanha, veio parar a Uva. Inscreveu-se num campo de trabalho internacional para recuperar património rural. Pensava que seria num pombal. Calhou ser na Curralada, um edifício icónico de arquitetura vernacular que a Palombar detém no centro da aldeia.
Atrás do imponente portão de madeira e das altas paredes de xisto fica o recinto onde uma família vivia e guardava carros de bois, feno, palha e alfaias agrícolas. Com o restauro da Curralada, a Palombar pretende ter um espaço de acolhimento de voluntários, organização de workshops, eventos comunitários e encontros de arquitetura tradicional e sustentável.
Ricky apaixonou-se pela Curralada, pelos pombais, pela aldeia, pelo trabalho da Palombar. Desistiu do emprego em Espanha (trabalhava numa empresa de gestão e manutenção de máquinas em Vigo), alugou uma casa em Uva, e hoje trabalha para a organização sem fins lucrativos. “O que eu mais gosto dos meus dias é que nunca são iguais. E estou sempre a conhecer gente nova, a fazer amigos”, explica.
Um dos novos amigos de Ricky é Francesco Turchini, um italiano de 22 anos que tem uma história parecida à sua – a diferença é que veio de um sítio mais longe (Rimini, em Itália) e veio fazer voluntariado durante mais tempo.
Para além de organizar campos de trabalho internacionais, a Palombar é uma das associações que recebe, todos os anos, jovens inscritos no Servizio Civile Universale, um serviço cívico financiado pelo governo italiano e que paga o salário, durante um ano, aos jovens que queiram trabalhar em associações sem fins lucrativos um pouco por todo o mundo. Este serviço surgiu como alternativa ao serviço militar obrigatório. Em Itália, tal como em Portugal, já não há obrigatoriedade de cumprir o serviço militar ou civil. Mas em Itália continua a haver muitos jovens interessados em ter uma experiência de trabalho com impacto na comunidade antes de enveredar por uma carreira profissional, qualquer que ela seja.
Francesco Turchini ainda não está a pensar em carreiras. Está a pensar em felicidade e em trabalho com impacto. Em depender das condições metereológicas para definir o dia, em andar a limpar pombais e a fazer sementeiras, em fazer trabalhos de campo e no campo. “E em conviver com os habitantes da aldeia. Esta foi uma das coisas que mais gostei de Uva, o facto de aqui haver um sentido de comunidade. No fim do dia vais até ao café e sabes que tens companhia para beber uma cerveja ou comer uns petiscos, fazer um churrasco, passar um bom bocado”, diz Francesco.
Formado em estudos agrários, Francesco Turchini veio fazer serviço de voluntariado em maio de 2021. Ficou um ano, até maio seguinte. Teve tantas saudades que voltou a Uva no verão desse mesmo ano, para rever os amigos. Reencontrou Américo Guedes, um dos membros da direção da Palombar, que ao vê-lo de regresso lhe perguntou se queria voltar a trabalhar na Palombar. Francesco não pensou duas vezes. Foi a Rimimi buscar as malas e avisar os pais. Está em Uva, como técnico de campo da Palombar, desde setembro de 2022.
“No início os meus pais acharam estranho que eu quisesse vir para uma aldeia em Portugal longe de tudo, onde só há velhotes e nada para fazer. Mas quando vieram cá visitar-me, perceberam melhor porque é que eu gostava tanto disto”, explica, humildemente. Francesco gosta dos voluntários – dos que estão em Uva, dos que já foram embora e dos que, tal como ele, foram-se embora a dizer que querem voltar. E gosta dos habitantes de Uva. Gosta de Rogério Pereira, a que carinhosamente Francesco chama “a mascote de Uva”. Gosta de fazer mimos ao “Monstrinho”, o cão que é de todos sem ser de ninguém.
“As pessoas da aldeia são muito fixes. O Rogério está sempre disponível para conviver, para brincar. Não me esqueço que há dois anos não havia ninguém para ficar com o café da aldeia, e ficou ele. Pagou a conta da luz do próprio bolso. Mas ele percebe que numa aldeia destas tem sempre de haver um café a funcionar”, conta Francesco.
Normalmente as contas da água e da eletricidade do café da aldeia são pagas pela Junta de Freguesia, e a gestão é assegurada por um dos moradores que queira assumir o trabalho cuja receita reverterá sempre para a organização das festas da aldeia, a 14 de setembro.
Este ano é Emílio Domingues e a esposa, Fernanda Pereira, quem garante que a porta é aberta, e que há sempre cafés para acordar os espíritos e cerveja para encher os copos. “Temos de dar o corpo ao manifesto. Isto não é nada para ficar para nós, o trabalho sai-nos do corpo, e é mais uma preocupação para nos ocupar. Mas ao menos a aldeia continua a ter uma festa como deve ser”, conta Fernanda.
Património rural e humano
Fernanda nasceu numa aldeia de Vila Real, emigrou para França aos 16 anos, esteve lá clandestina quase uma década. Veio para a aldeia do marido, criar os filhos e construir vida. “Uma mulher do campo é assim, não tem medo do trabalho e faz o que é preciso. E tanto é preciso semear os campos, como limpar a casa, tomar chá com a vizinha ou fazer tapetes no tear. Sou uma faz-tudo. Agora também sou empregada de café”, brinca.
A importância de um café numa aldeia como a de Uva pode aferir-se, também, no palco em que se transforma para marcar encontros e organizar convívios. Há o “Salão do Povo”, propriedade da Junta de Freguesia, que tanto serve para salão de festas como para dormitório improvisado para participantes em campos internacionais – ter uma cozinha equipada a modo industrial, e ter um espaço de refeições ao ar livre equipado com churrasqueira ajuda à polivalência.
E depois há o café da aldeia, onde o 60º aniversário de Rogério não vai ser passado em branco. E, como ele coincide no fim de semana em que também fazem anos Rosa Sallustio e Carlo Lucchetti, mais razões há para comemorar. Para o fim da tarde de sexta-feira prepara-se uma patuscada onde não faltarão carnes para o churrasco nem pizzas ou focaccias para aperitivo.
Emanuele
Viver numa aldeia como Uva, com todas as suas dinâmicas de aldeia, pode ser muito intenso. Acho que é a presença de associações como a Palombar e a AEPGA, que fazem toda a diferença.
Rosa é natural de Roccaviara, na região de Campobasso, a zona montanhosa de Itália. Formada em turismo, Rosa já tinha estado a fazer um estágio em regime de Erasmus em Lisboa. Carlo é estudante de matemática e apaixonado por línguas. Ela é voluntária da Palombar. Ele é voluntário da Associação para o Estudo e Protecção do Gado Asinino (AEPGA), com sede em Atenor, e que também recebe voluntários do Servizio Civile.
Entre voluntários e funcionários das duas associações há cerca uma dezena de italianos a viver na aldeia de Uva – ou a visitá-la com frequência. As primeiras dificuldades sentidas por estes voluntários é a língua, e os falsos amigos que há entre o português e o italiano. Mas nada que uma espécie de dicionário caseiro, afixado no espelho da sala que também é cozinha e salão de festas e ponto der encontro não ajude a ultrapassar.
É, porventura, este dinamismo particular que permite que a aldeia continue a cativar novos habitantes. Leonor Carvalho é natural de Valhelhas e está habituada à vivência do mundo rural – Valhelhas é uma aldeia serrana, do concelho da Guarda. Mas admite “o impacto” que é ter o mundo dentro de uma aldeia. “Não é só o mundo dos que emigraram e decidiram voltar. É o mundo dos que são de outros países e querem vir para aqui viver o nosso, como nós”, afirma. Leonor está em Uva para concluir um mestrado em Comunicação de Ciência, através de um estágio na Escola do Lobo Ibérico, um pequeno centro interpretativo na vizinha aldeia de Vale de Frades.
A importância da Palombar no quotidiano da aldeia é muito expressivo. Não só pelos voluntários e profissionais que agrega, mas também pelos trabalhos e serviços que consegue fazer. “Gostávamos de ter capacidade de fazer ainda mais coisas. Nomeadamente de recuperar mais património rural. Mas o financiamento não chega para tudo”, admite Américo Guedes, membro da direção da Palombar.
Entre o património que está na posse da Palombar não se contam, sequer, pombais. “Na verdade, somos proprietários de meio pombal. É uma estrutura que ruiu parcialmente e que nós aproveitamos para transformar em centro de interpretação, para mostrar aos visitantes como funciona um pombal”, explica Américo. A Palombar detém a Curralada e é proprietária também da velha forja de José Antão, um belíssimo edifício em xisto situado na margem da ribeira de Uva. “É mais um edifício para recuperar, quando houver tempo e dinheiro”, diz Américo.
O edifício está à espera de melhores dias, mas isso não deixa José Antão particularmente nostálgico. A vida segue, a vida corre. “Fiz muitas peças naquela forja junto ao rio. Mas agora nem naquela forja, nem aqui”, diz José Antão, o velho ferreiro, dentro da sua oficina. José Antão e a esposa Glória também tentaram a sorte em França. Estiveram muitos anos, mas regressaram mal puderam para José dar gosto à paixão e montar a serralharia que ambicionava. “Os meus pais eram agricultores, como toda a gente aqui. Mas eu não gostava de agricultura. Preferia estar aqui à volta do lume e do ferro, a fazer as alfaias que eles precisavam para a lavoura. Depois comecei a fazer portas e portões, e nunca faltou trabalho”, explica o velho ferreiro.
Com o avançar da idade e a diminuição da audição, e da saúde, tem-se dedicado a fazer facas e navalhas. “Aprendi com os de Palaçoulo. Não é para ganhar dinheiro. É mais para me entreter. Arranjei maneira de lhes por nas lâminas o símbolo de Uva, que são as pombas e os pombais, e a verdade é que tenho vendido algumas”, admite.
José Antão não se queixa, foi dos que conseguiu prosperar em Uva. Mas na sua geração quase todos emigraram. Iam famílias inteiras. Os irmãos Domingues, por exemplo. Eram seis. Foram todos para França. Adérito voltou há 20 anos, mas deixou os quatro filhos na zona de Paris. O irmão, Eduardo, tem 78 anos, e ainda anda “entre cá e lá”. “Estive lá mais de 40 anos, sempre a trabalhar na mesma empresa de limpezas. Nasceram-me lá os quatro filhos. Agora tenho filhos lá e aqui”. Aqui, em Uva, tem a filha Aline, agora com 34 anos, e mãe do mais recente bebé nascido em Uva.
O avô babado admite que nem sempre aplaudiu a decisão da filha. “Eu no início não acreditava muito. Lá tinha bons empregos, não percebia como é que a Aline queria vir para aqui. Perguntava-lhe o que vinha fazer para uma aldeia destas, onde só há velhos, fica longe de tudo, não há cá ninguém”, confessa Eduardo. Hoje mudou de ideia. A filha, Aline, mostrou-lhe que ele não tinha razão. “Já admiti que estava enganado. Agora tenho-lhe dado os parabéns por tudo o que conseguiu”, admite o pai.
Américo Guedes
Gostávamos de ter capacidade de fazer ainda mais coisas. Nomeadamente de recuperar mais património rural. Mas o financiamento não chega para tudo.
Aline queria fazer vinho em Portugal. Apaixonou-se pelas vinhas velhas do avô, e consegue fazer vinho branco, tinto, rosé e, este ano, também, um espumoso, o petnat. Criou a marca Menina D’Uva, faz uma produção anual de 10 mil garrafas. Este ano, em junho, deu à luz o pequeno Olmo.
“Não foi muito fácil no início convencer as pessoas a alugar-me as vinhas. Não acreditavam que uma menina de Paris queria vir para aqui fazer vinho. Mas a verdade é que agora já acreditam. As coisas levaram um rumo que nem eu imaginava. De repente, encontrei a pessoa certa e estou aqui a construir o meu ninho”.
A pessoa certa foi Emanuele, voluntário do Servizio Civil da AEPGA há quatro anos. Emanuele é natural de Marche, “uma zona de Itália muito fixe”, diz o próprio, “com montanhas e com os problemas do interior que há em todo o mundo”. Isto é: “o desinteresse dos mais jovens, a questão económica, o despovoamento”.
Emanuele fundou com um amigo uma associação em Itália para debater estes problemas. Veio fazer um Erasmus para Portugal (calhou-lhe Coimbra), veio fazer voluntariado para Vimioso. “Queria aprender com a Palombar como se recupera património rural e levar esse conhecimento para a minha aldeia”, comenta, entre sorrisos. Mas, depois, afinal, não chegou a regressar à sua aldeia. “Acabei em Uva, a plantar videiras e a fazer vinho”, sorri, com um sorriso quase tão luminoso quanto o do seu bebé.
Aprendeu a fazer vinho, aprendeu a fazer azeite, aprendeu a fazer pão. Vai aprender a fazer queijo. “Viver num sítio como Uva, com todas as suas dinâmicas de aldeia, pode ser muito intenso. Acho que é a presença de associações como a Palombar e a AEPGA que fazem toda a diferença. Acho que nem eu nem a Aline teríamos aguentado se não fosse isso”, argumenta. Emanuele e Aline pegam no bebé e vão até à cidade sempre que precisam de descansar. A Bragança, a Zamora, ao Porto, à Póvoa do Varzim (onde Aline escolheu ter o filho).
Aline era o nome da tempestade que assolou o norte de Portugal naquele mês de outubro. Mas aquela Aline parece ter trazido apenas tranquilidade e bonança. E à aldeia trouxe um bebé. “Já cá não nos nascia um bebé há 20 anos. E este é lindo como o sol”, diz Berta Rosa.
A tempestade foi embora e não chegou a pôr em risco a festa de Rogério, de Rosa e de Carlo. No café da aldeia, pois claro.
Mais sobre Uva
Américo Guedes, o diretor da Palombar
Nasceu no Douro vinhateiro mas mudou-se para o planalto transmontano seduzido pela biodiversidade e pelas ações de conservação da Natureza que uma associação como a Palombar planeia e permite. Começou como técnico, agora está na direção, com a responsabilidade de gerir uma equipa de quase 20 pessoas.
Aline Domingues, a Menina d’Uva
Nasceu em Paris há 34 anos, tem cara de menina, ar sereno, voz pausada. Formou-se em Biologia, especializou-se em fermentação. Quis experimentar a agricultura e a enologia. Apaixonou-se por Uva, terra dos avós onde sempre vinha passar férias e onde as vinhas velhas do avô e as castas tradicionais do planalto se tornaram um desafio difícil de resistir. Apaixonou-se por Emanuele, um italiano que trabalhava como voluntário na aldeia. Hoje estão a construir um ninho, e a educar a primeira bebé nascida na aldeia desde há mais de 20 anos.
Francesco Turchini, o regressado
Nasceu numa cidade turística em Itália mas sempre quis experimentar o trabalho agrícola. Inscreveu-se num programa de Serviço Civil que, em Itália, substituiu o Serviço Militar Obrigatório, e veio parar a Uva. Trabalhou de maio a maio, no verão voltou para matar saudades e acabou contratado pela Palombar. Aprecia os dias no campo, que são sempre diferentes, e a comunidade de “novos e velhos” que ao fim do dia se junta no café para beber uma cerveja e confraternizar.
Fernanda Pereira, a mulher dos sete ofícios
Nasceu numa aldeia de Vila Real emigrou para França aos 16 anos, viveu clandestina durante mais de dez. Deixou um apartamento de 75 metros quadrados em Paris – “não era qualquer português que conseguia viver assim!” – para poder ter uma casa própria em Portugal, na aldeia do marido. Hoje é a mulher que abre o café e a igreja, a vizinha com quem se espanta a solidão, a tecedeira que garante que se continuam a fazer alforges na aldeia. É uma mulher dos sete ofícios.
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