Nasceu numa aldeia de Vila Real emigrou para França aos 16 anos, viveu clandestina durante mais de dez. Deixou um apartamento de 75 metros quadrados em Paris – “não era qualquer português que conseguia viver assim!” – para poder ter uma casa própria em Portugal, na aldeia do marido. Hoje é a mulher que abre o café e a igreja, a vizinha com quem se espanta a solidão, a tecedeira que garante que se continuam a fazer alforges na aldeia. É uma mulher dos sete ofícios. Eis o seu testemunho.
“Aprendi a usar o tear com a D. Ester. Ela dizia alguém tem de aprender a fazer isto”
Nasci Fernanda Pereira, em Abaças, uma aldeia de Vila Real, era a única filha no meio de sete irmãos. A minha mãe ainda pôs alguns a estudar, mas eu nunca quis seguir os estudos. Então depois ela deu-me aquela máquina e mandou-me aprender costura. E eu aprendi, e costurava e costuro, mas naquela altura eu vi as dificuldades que eles tinham, e que a costura não nos ia tirar dali. Meti na cabeça que tinha de ir para a França, como tinham ido alguns irmãos.
Na minha família não queriam que eu fosse. Porque eu era rapariga, a única rapariga da família. E as raparigas que emigravam muitas vezes “perdiam-se”, iam para os bailes, arranjavam divorciados, enfim, falava-se muito. Os meus irmãos diziam: “ui, se tu fazes asneiras eu mato-te”; outro dizia, “ai se fazes asneiras, eu nunca mais cá venho”… Mas eu pensei pela minha cabeça e eu disse “eu vou”. Esperei por ter idade, e fugi. Tinha feito 16 anos no dia 16 de agosto, fui para a França a 30 de agosto.
Fui direta para a casa de uma senhora que tinha uns gémeos com outro meses, um menino e uma menina. Foi uma prima minha que me arranjou este serviço. Ela trabalhava noutra casa mas ia a esta passar a ferro e fazer limpezas ao sábado de manhã. Então, a patroa, como vinha de ter as crianças, perguntou-lhe se conhecia alguém para lá ir entreter um pouco os garotos. Que não precisava de todos os dias, mas pelo menos dois dias por semana. Meteram-me a mim.
As primeiras pessoas que eu vi quando cheguei a Paris foram aquelas crianças. Criei-os como se fossem meus. Eu tinha 16 mas dizia que tinha 18, que já tinha corpo para isso. Eu estava clandestina em França, mas a senhora logo fez confiança em mim, e meteu-me as duas crianças na mão. Estive lá até os meninos terem oito anos. Foram uns pais para mim, pagaram a clínica para eu ter o meu primeiro filho, o Rafael. Como estava clandestina, tive de pagar. E ela assistiu ao parto do meu filho, praticamente. Lembro-me que nesse dia pagou uma multa de 900 francos, porque tinha um carro mal estacionado. Quando ela entrava para dentro da sala de partos, as enfermeiras perguntavam-lhe “mas quem é você?”. “Eu sou a segunda mãe dela, não tem nada que me ralhar comigo!”. E era mesmo uma segunda mãe. Ela tinha mais 20 anos que eu…
Eu fui para França em 1981, quando o presidente Miterrand entrou pela primeira vez e atualizou os clandestinos todos. Só que eu era menor, não podia fazer papéis. O homem que me levou disse-me, mais tarde, que podíamos ter feito os papeis. Pelo menos podiam ter feito uma “carta de séjour”, que é uma carta de estar, com a qual podia estar segura, sem arriscar nada. Não podia trabalhar, mas podia estar em França.
E aquela eleição do Miterrand foi um ano: quem fez os papéis naquele ano, fez; quem não fez, não fez depois. Eu estava clandestina, continuei clandestina, casei clandestina, tive o meu filho clandestina. Estive clandestina 10 anos. Foi a altura em que eu poupei dinheiro.
Eu conheci o Emílio por causa de uma irmã dele, que chegou a viver no meu quarto dois anos. O homem que me levou a mim para França também a levou a ela. Demo-nos muito bem, e foi ela quem começou a dizer que eu tinha de conhecer o irmão, e de casar com ele. Eu conheci o Emílio num casamento que houve lá na minha terra. Depois eu vim aqui a Uva a um batizado, e começamos a namorar. Andamos assim uns cinco anos, mas a namorar por carta, como era antigamente. Não era a ver-nos. Porque eu estava em França e o Emílio aqui.
Uma vez eu vim a Portugal ao casamento de um meu irmão. E um outro meu irmão, que estava em França, perguntou ao meu Emílio se não queria ir para lá. Esse meu Irmão trabalhava perto de Bordéus. Era uma zona de vinhas e de vinho, era mais fácil encontrar trabalho. Perguntou-lhe se queria ir por três meses para a França. Ele disse que sim, mas os pais dele não queriam que ele fosse. Porque o Emílio era o damo da casa, ele é que ajudava os pais… O meu irmão arranjou trabalho e disse “Então, o Emílio vem ou não vem? Tenho que dar resposta ao patrão”.
Eu e a irmã dele estávamos juntas, fomos ligar. Tínhamos de correr Paris inteiro para encontrar uma cabine telefónica, que não havia telefones nem nada. Ele disse que não ia. Eu depois escrevi-he uma carta. Com duas folhas.
Ele recebeu-a no dia de Santa Cruz, que é o dia da festa de cá. Ficou com as orelhas a ferver, ficou a pensar dois dias, telefonou a dizer que ia. Eu só lhe disse que se ele pensava que ia casar comigo para ficar em casa dos pais, então podia já ficar com eles. Ia cada um para seu lado, mais nada.
E ele lá foi para Paris, Mas aquilo foi uma complicação no início, não arranjou logo emprego, ele também estava clandestino, chegaram a dizer que a polícia andava atrás dele. Uma confusão. Mas depois tudo se compôs. Nasceu o Rafael, e eu já estava grávida da minha Sara quando fizemos os papéis. Mas depois decidimos vir para cá. E até estávamos muito bem. Eu tinha um trabalho bom e tudo, o Emílio também trabalhava nas obras. Só que pagávamos renda.
Estávamos a viver num apartamento de 75m². Era um apartamento bom, que não era qualquer português que se dava ao luxo de viver assim. Só que pagávamos renda e também dizíamos “isto não é vida, estamos aqui a pagar renda, o apartamento nunca é nosso”. Mas para comprar uma casa, ainda andamos a ver, tínhamos de sair fora de Paris, ir para os arredores. Em Paris tínhamos de ficar num apartamento, os apartamentos eram mais caros, o Rafael era pequeno, num apartamento é sempre a mesma treta, não se pode fazer barulho.
Viemos para Portugal em 2002. Nós tínhamos comprado esta casa logo a seguir a casarmos. Era de um primo do Emílio, que precisava mesmo de vender a casa e nós aproveitamos porque a casa para a época não era cara. Vínhamos de férias para aqui sempre. E para as férias servia. Mas depois no inverno não tinha conforto, a casa era fria, os meninos estavam habituados a outra coisa. Ainda agora eles dizem que não sabem como é que aguentaram aqui três Invernos.
Resolvemos quando compramos a casa que era aqui pegada, uma antiga moagem e azenha. Deu para juntar as duas, e agora temos melhores condições. Nós passamos para a casa de cima, em 2005, esta aqui está de apoio. Quando comprei o tear, já tinha sítio para o meter.
Eu aprendi a fazer tapetes com a senhora Ester. Desde que cheguei à aldeia que ela andava a dizer “tem que se meter no tear, porque quando eu deixar de fazer alguém tem de saber fazer isto”. Ainda fiz tapetes lá no tear dela, enquanto não arranjei este, que fui comprar a Vale de Algoso. Demorei algum tempo a aprender, claro. Mas agora para mim não é difícil. Faço tapetes, jogos completos de tapetes de farrapos, tapetes de casas de banho, alforges para os burros.
O tear é um vício. Mas tem de se ter vagar e aqui a Fernanda tem muita coisa para fazer. Está aqui e está a pensar noutra coisa já. A coisa já era complicada e agora que assumimos o café ainda pior. Quando o Emílio está em casa, tudo bem, mas quando ele vai trabalhar é ver a Fernanda como uma barata tonta, para baixo para cima. E eu bem gosto disto. Como gosto de fazer muitas outras coisas, mas já foi tempo. Primeiro, estava até às duas ou três da manhã a fazer crochet. Agora, já não tenho pica. O telemóvel deu cabo de tudo. Na verdade, acho que foi isso.
Eu gosto de viver aqui. Habituei-me bem a Uva. Os meus dias aqui são bons. Estou a tratar da minha mãe, vou tomar café com a vizinha, vou dar de comer ao gado (os porcos e as galinhas), vou abrir o café sempre que o Emílio não está, faço o almoço para a minha mãe, faço o jantar para todos. Também faço trabalhos no campo, e não há nada que eu não faça ou não goste. Ah! Há uma coisa que faço e não gosto. Limpar o pó. Nunca gostei, mesmo na França, nos 21 anos que lá estive. Prefiro estar quatro ou cinco horas a passar a ferro do que limpar uma sala. E gosto muito de fazer coisas para os meus netos. Já tenho dois.
O que é que eu sou? Sei lá. Agricultora e tecedeira. Não sou nada, sou doméstica. Aqui dizem que eu sou a mulher dos sete ofícios. É isso.
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