Nasceu no Douro vinhateiro mas mudou-se para o planalto transmontano seduzido pela biodiversidade e pelas ações de conservação da Natureza que uma associação como a Palombar planeia e permite. Começou como técnico, agora está na direção, com a responsabilidade de gerir uma equipa de quase 20 pessoas. Eis o seu testemunho.
“Conservar o património rural é conservar a natureza”
Chamo-me Américo Guedes e sou natural de uma pequena aldeia chamada Escávedas, no concelho do Peso da Régua. Foi lá que vivi até aos 18 anos, altura em que fui estudar para a faculdade em Vila Real. Ainda hoje vou com muita frequência a essa minha aldeia, porque os meus pais e toda a minha família continuam por lá a viver. Além disso, a agricultura faz parte da nossa vida, pelo que vou muitas vezes ajudar, sobretudo nos trabalhos na vinha.
Tirei o curso de biologia na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro e depois um mestrado em engenharia agronómica. Durante os meus tempos de faculdade, fui membro do Núcleo de Estudo e Proteção do Ambiente, o Nepa, que é parte da associação académica, e foi aí que fui ganhando o gosto pela biodiversidade, pela natureza, por conhecer. Serviu também um pouco para complementar os estudos que andava a fazer na área da biologia. Realizámos atividades, workshops, voluntariado. Sempre tive gosto no curso de biologia, mas foram estas atividades extracurriculares que acabaram por complementar a minha formação. No início da universidade, fui voluntário no CRATAS – o antigo Centro de Recuperação de Animais Selvagens da Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro.
Acho que desde menino que tenho uma ligação à terra, não só porque sou de uma aldeia pequena, rodeado de natureza e agricultura, mas também porque sempre vivi em meios pequenos, sempre foi algo onde me senti à vontade. A parte agrícola sempre me interessou. Fui também membro fundador de uma cooperativa chamada Rupestris, com outros colegas da universidade, na qual nos debruçamos sobre tudo sobre plantas e em viveiros de plantas autóctones.
Houve um momento em que ainda estava a frequentar o mestrado, a trabalhar na investigação da minha tese e a trabalhar em Vila Real que vi o anúncio de uma vaga para uma pessoa vir trabalhar aqui na Palombar. Eu já conhecia a associação por visitas que tinha feito, com o NEPA, ou mesmo em férias e por curiosidade pessoal. Vinha para aqui ver aves que não se viam na zona de Vila Real. Decidi concorrer a essa vaga, enviei o currículo, chamaram-me para uma entrevista. Fiquei muito entusiasmado. Gostava muito aqui desta zona, sobretudo pela natureza, por manter intacta esta ligação entre o Homem e a Natureza.
Na altura vim duas semanas à experiência, e recordo-me que um dos trabalhos que fiz foi a contagem de dormitórios de milhafres reais em Miranda do Douro e Vimioso. E depois escrevi um breve relatório sobre esse trabalho. A verdade é que isso foi há oito anos, e ainda hoje faço essas contagens. Eu sou um técnico da Palombar, mesmo que agora tenha assumido um lugar na direção.
O meu dia a dia é muito diferente agora porque tenho outras responsabilidades que não tinha na altura. Estou mais ocupado com a gestão da associação e a gestão dos trabalhos, é muito tempo ao computador, muito tempo fechado numa sala. Ainda assim, o meu escritório é numa antiga escola primária, no meio de uma aldeia onde vivem cerca de 50 pessoas. E onde basta vir à rua para estar rodeado de natureza e de biodiversidade por toda a parte. Mesmo no meu caminho, trabalho-casa, o meu trânsito costumam ser as vacas, quando estão a atravessar a estrada,
A Palombar é uma associação de conservação da natureza e de preservação do património rural. Palombar quer dizer pombal, em mirandês, e tem muito significado pelo próprio surgimento da associação. Infelizmente, é uma temática que não tem muitos apoios. Gostávamos de fazer mais pela recuperação dos pombais mas não temos como. Há muita gente a pedir-nos para recuperar pombais tradicionais, mas infelizmente não temos capacidade de o fazer. Atualmente fazemos sobretudo conservação da natureza. Trabalhamos com espécies que estão com estatuto de conservação mais elevado, ou seja, “criticamente em perigo” ou “em perigo”. E, na verdade, até a recuperação de pombais já tem o intuito de conservação da natureza, procurando beneficiar espécies de rapina. Conservar este património rural, conservar os pombais também é conservar a natureza, é garantir que há presas para os predadores. Mas trabalhamos também as técnicas de construção tradicional – a arquitetura tradicional, o promover a arquitetura tradicional e o saber fazer.
Atualmente a associação tem 15 colaboradores, alguns em trabalho remoto, mas a maioria deles estão aqui na região, distribuídos um pouco pelas aldeias aqui, ou mesmo na vila de Vimioso. Somando aos colaboradores os voluntários de longo termo que costumam estar um ano connosco temos cerca de 20 pessoas. É uma responsabilidade grande, que pesa bastante na gestão. Um dos nossos focos é termos capacidade financeira para conseguir manter todas estas pessoas sem ter que despedir ninguém.
Nem todos os colaboradores vivem na aldeia de Uva, até porque é uma aldeia onde é bastante complicado arranjar alojamento. Eu próprio também não vivo em Uva. Vivo numa aldeia do mesmo concelho que se chama Caçarelhos, e que fica a 13km de Uva. E gosto. Tem uma boa localização, facilita a questão do meu miúdo ir para a escola, estou mais próximo dos centros maiores para ir fazer as compras – aqui os centros maiores são Vimioso e Miranda do Douro. Mas Caçarelhos também tem minimercado, é uma aldeia com um pouco mais de movimento, passa o autocarro todos os dias. Uva, para mim, é local de trabalho. Também me faz bem sair de uma aldeia e entrar noutra.
Eu gosto muito de viver no campo. Vila Real não é propriamente uma cidade muito grande, mas já vivi em Vila Real. Já vivi no estrangeiro enquanto fiz Erasmus, numa cidade bastante grande, que tinha cerca de meio milhão de habitantes, e passo temporadas longas em Sevilha – a minha companheira é de lá. Posso passar assim um mês ou dois em Sevilha contínuos. Mas gosto de viver no campo, de ter a minha horta e ter as minhas coisinhas. Gosto muito desse processo todo.
O que eu mais gosto desta vida na aldeia é mesmo do sossego, da tranquilidade, do poder ter um pedaço de terra para cultivar alguns alimentos. E do facto de me poder apetecer sair para dar uma caminhada e estar logo num sítio bonito e cheio de biodiversidade. Tenho um filho de quatro anos, que anda no jardim de infância, na escola pública que há em Vimioso. No início do próximo ano já terá nascido outro, o meu segundo filho, e os meus projetos são banais: ter casa própria (que esta em que estou é arrendada).
A minha companheira tem o curso de design de moda, trabalhou muitos anos com a mãe, como modista. Agora trabalha na área do turismo, a fazer a gestão de casas rurais, e também tem uma marca de roupa interior, que ela faz lá em casa, e vende pela internet. Nós temos uma excelente ligação em fibra, por exemplo. Deste que estou nesta casa, há cinco anos, que tenho fibra. Na minha aldeia em Vila Real, mesmo estando mais próxima de um centro urbano, só está a chegar agora.
Há outras particularidades, como o facto de, por exemplo, como a minha companheira está gravida, já tivemos de nos deslocar mais de 120 km, com ida e vinda, só para ir a uma consulta, a Bragança. E já tivemos de ir a um hospital particular a Amarante para fazer uma ecografia. E não há apoios para as viagens, temos de ir e pronto. Sei que isto na obstetrícia e na saúde em geral há problemas um pouco por todo o país. Mas também sei que, por exemplo, se tiver uma urgência e precisar de ir ao hospital ali em Vimioso vou apanhar pouca gente à minha frente. Ou se for à Loja do Cidadão sou logo atendido.
Eu acho que o que mais falta nesta região, o que se sente mais, é a falta da atividade cultural. Temos de saber criar a nossa própria atividade cultural. Aqui é hábito fazer muitos convívios, jantaradas. Há as festas nas aldeias, muitos eventos organizados por nós ou pela AEPGA, na verdade há muita vida social. Eu agora, com um filho tão pequeno ando mais afastado.
O meu dia perfeito é aquele dia em que eu consegui fazer tudo o que tinha previsto fazer no trabalho, um dia produtivo, em que corre tudo bem, sem sobressaltos, sem problemas, e depois chegar a casa e ainda fazer qualquer coisa. Se for um dia de verão ir até a horta, regar, apanhar uns legumes para o jantar, fazer uma salada e estar com o meu filho e com a minha companheira.
Viver no campo tem implícito fazer muitas atividades, e eu gosto de fazê-las. Gosto dos trabalhos agrícolas, que as pessoas da aldeia fazem, eu também os faço. Gosto de apanhar a minha lenha. Apanhar, arrumar a lenha para o Inverno todo, fazer arranjos em casa, pequenas obras… Agora vem aí uma altura de que gosto muito, o tempo dos cogumelos. Apesar do meu filho ainda ser pequeno, gosto que ele vá comigo fazer pequenas caminhadas, desfrutarmos da paisagem e da natureza, apanhar uns cogumelos e chegar a casa e comer uma bela refeição de cogumelos silvestres apanhados na hora. Esse vai ser um dia muito bom.
Mais sobre Uva
Uva, a aldeia dos pombos e dos pombais
Uma aldeia do planalto transmontano com 50 pessoas, 40 pombais, sete burros e dez italianos é diferente de todas as outras. Por tudo isso, e também pelo incrível ambiente comunitário que junta pessoas de várias gerações e geografias no café da aldeia. Um café que só existe para financiar as festas anuais em honra da padroeira, e por onde agora também circula Olmo, ainda num carinho de bebé. A mãe é francesa. O pai é italiano. Mas Olmo “é de Uva”. “Já cá não nos nascia um bebé há 20 anos. E este é lindo como o sol”.
Aline Domingues, a Menina d’Uva
Nasceu em Paris há 34 anos, tem cara de menina, ar sereno, voz pausada. Formou-se em Biologia, especializou-se em fermentação. Quis experimentar a agricultura e a enologia. Apaixonou-se por Uva, terra dos avós onde sempre vinha passar férias e onde as vinhas velhas do avô e as castas tradicionais do planalto se tornaram um desafio difícil de resistir. Apaixonou-se por Emanuele, um italiano que trabalhava como voluntário na aldeia. Hoje estão a construir um ninho, e a educar a primeira bebé nascida na aldeia desde há mais de 20 anos.
Francesco Turchini, o regressado
Nasceu numa cidade turística em Itália mas sempre quis experimentar o trabalho agrícola. Inscreveu-se num programa de Serviço Civil que, em Itália, substituiu o Serviço Militar Obrigatório, e veio parar a Uva. Trabalhou de maio a maio, no verão voltou para matar saudades e acabou contratado pela Palombar. Aprecia os dias no campo, que são sempre diferentes, e a comunidade de “novos e velhos” que ao fim do dia se junta no café para beber uma cerveja e confraternizar.
Fernanda Pereira, a mulher dos sete ofícios
Nasceu numa aldeia de Vila Real emigrou para França aos 16 anos, viveu clandestina durante mais de dez. Deixou um apartamento de 75 metros quadrados em Paris – “não era qualquer português que conseguia viver assim!” – para poder ter uma casa própria em Portugal, na aldeia do marido. Hoje é a mulher que abre o café e a igreja, a vizinha com quem se espanta a solidão, a tecedeira que garante que se continuam a fazer alforges na aldeia. É uma mulher dos sete ofícios.
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