Ela tem origem na serra, nasceu na Covilhã há 27 anos. Ele tem a mesma idade mas é de perto do mar, da zona da Lourinhã. Conheceram-se na Escola de Hotelaria e Turismo do Estoril e tiveram, cada um, várias experiência nas cozinha de reputados e estrelados restaurantes. Quiseram abrir um projeto com assinatura própria, algo que respeitasse o tradicional com o olhar inovador. Escolheram uma aldeia como o Alcaide para poderem privilegiar o projeto e o produto. Eis o seu testemunho.
“Os projetos que se diferenciam acabam sempre por atrair público”
Chamo-me Roberto Lopes, tenho 27 anos, e conheci a Ana na Escola de Hotelaria e Turismo do Estoril, há quase dez. Tiramos lá o curso de Produção Alimentar em Restauração, éramos da mesma turma mas na altura nem nos falávamos. Aliás, éramos até de grupos rivais.
Entretanto, acabamos a licenciatura e acho que foi quando começamos a trabalhar, cada um no seu lado, que acabamos por nos conhecer um bocadinho melhor. Ingressamos os dois no Mestrado de Inovação em Ciências e Artes Culinárias, percebemos que temos gostos gastronómicos parecidos, mesmo que tenhamos visões diferentes. E foi um bocadinho por aí.
Em 2021 abrimos o nosso primeiro negócio na zona da Lourinhã com um conceito de street food, muito focado no produto, nos produtores locais e na sustentabilidade. Mas sempre quisemos dar o salto, ter um restaurante físico, e por isso procuramos vários espaços.
Nós não tínhamos um sítio como prioridade. Quando nos falaram do Alcaide, e antes de virmos ver o espaço ficamos, aliás, um pouco na reserva. Não porque íamos passar do litoral para o interior, mas sim porque era uma aldeia. Não estaria um bocadinho afastado do Fundão, da Covilhã, de Castelo Branco? Será que numa aldeia vamos ter público? Vamos conseguir chamar público para lá?
Mas depois de ver o espaço, e de fazer alguma pesquisa, percebemos que aqui é um bocadinho o contrário. Os projetos que se diferenciam acabam sempre por atrair público. Andamos a ver muita coisa, mas se calhar o que nos fez decidir acabou por ser o retorno do investimento. As coisas na zona litoral estavam demasiado saturadas, quer em termos de pessoas, quer em termos de negócios. E aqui oferecia um retorno muito mais alto. Para além de que nos dava a possibilidade de nos distinguirmos, de nos diferenciarmos em relação àquilo que existe.
Ou seja, perante aquela ideia inicial de que seria arriscado, de que poderia não ter público ou clientela, pensamos que aqui poderia ser até o contrário. As pessoas procuram cada vez mais projetos diferentes. O nosso restaurante não deixa de ser um restaurante tradicional, mas acaba por trazer uma diferenciação no serviço e uma diferenciação na própria comida que servimos.
[Ana Batista] A ideia foi sempre pegar no tradicional, na gastronomia local, e desenvolvê-lo ao máximo – mas dando sempre o nosso toque muito pessoal. Foi o que aconteceu aqui: pegámos na gastronomia da Beira Baixa, tentamos procurar o melhor que existe na zona, os produtores locais … Trabalhamos com o produto local da região, temos os nossos fornecedores estabelecidos e tentamos ao máximo apoiar o produto e os produtores quer do Alcaide, quer aqui da da zona em redor.
E depois utilizamos a nossa aprendizagem ao longo do tempo, da influência dos sítios por onde passámos. Temos tentado dar o nosso toque, criar os pratos diferentes do normal. Acima de tudo, e temos notado isso nestes últimos meses, sabemos que o público da zona não se importa de fazer quilómetros, desde que seja para comer bem, desde que seja para ter boa uma experiência.
Uma coisa que nos surpreendeu bastante pela positiva foi a capacidade do Alcaide em atrair pessoas. Aqui próximo existem alojamentos locais que não tínhamos noção do movimento que tinham. Eles encaminharam-nos imensos clientes no arranque do projeto, foi uma ajuda muito boa.
Às vezes ficam a conhecer o nosso restaurante por termos a história do Francisco Cunha Leal no próprio restaurante. Querem conhecer o que existe. Depois acabam por ficar para almoçar ou para jantar. Mas a procura por conhecer a aldeia surpreendeu-nos bastante, porque não estávamos a contar que existisse tanto…
[Roberto Lopes] Eu acho que a própria aldeia e os seus habitantes são muito dinâmicos. Talvez por vir de uma aldeia do litoral, e por ver que por lá as coisas se estão a extinguir, as pessoas a envelhecer, não esperava chegar aqui e ver o contrário. Às vezes saímos do restaurante bastante tarde e quando vamos para casa e passamos pelo centro do Alcaide vemos que há muita gente, há muitas crianças, muitas pessoas novas que estão na rua …Surpreendeu-me o dinamismo e a atividade que a aldeia ainda tem, mesmo sendo uma aldeia de montanha do interior.
O melhor desta aldeia, sinceramente, acho que são as pessoas. Nós não somos da aldeia e a abertura que tiveram para connosco e para com o projeto acho que foi bastante grande. Também gosto muito de termos uma vista brutal para a Cova da Beira. Eu adoro paisagens e esta aqui, na Serra da Gardunha, tem ainda o privilégio de nos dar produto muito bom.
[Ana Batista] Está a ser uma belíssima experiência. Estarmos num projeto conjunto, a fazer algo que queremos muito diferenciado. Trazemos perspetivas diferentes – porque nós temos gostos gastronómicos parecidos mas não somos exatamente iguais no momento de criar. Mas normalmente tudo o que o que é servido ao cliente é algo criado pelos dois.
No dia a dia é o Roberto que costuma estar na sala. Consideramos que seria muito importante o próprio serviço, tentarmos que haja uma explicação do prato. Isso só seria possível se um de nós estivesse na sala. E devido à disposição do restaurante, e a termos a cozinha no piso de baixo, era impossível estar nos dois lados ao mesmo tempo. Por enquanto o Roberto está na sala, no piso de cima, e eu na cozinha, no piso de baixo.
O facto de sermos tão jovens às vezes é estranho. Já tivemos clientes que pedem para chamar o Chef. Depois apareço eu, mulher. Depois dizem… ‘Ah, mas o responsável…?’ Somos nós os responsáveis. ‘Não, não… a figura, o responsável…’ Nessa altura estava o meu Irmão ao balcão e explica ao cliente ‘são eles e só eles, e não há mais ninguém’. Parece que as pessoas estão à espera de alguém mais velho à frente do negócio. Isso também nos acontecia no litoral, não é só aqui. Mas nós também já começamos a conseguir lidar com a situação lá. Já trazemos alguma estaleca.
[Roberto Lopes] O nosso foco, o objetivo, é tentar sempre ao máximo passar para o produto local e para o produto da zona. Os cogumelos vêm de um fornecedor certificado que nos traz cogumelos aqui da Gardunha. Os enchidos são do Fundão, de uns fornecedor que ainda os faz de forma tradicional. O queijo também é de um produtor do Fundão. Em toda a nossa carta está referido sempre o produtor a quem nós adquirimos o alimento. Achamos que isso é importante também para o cliente final, que vai perceber que tivemos o cuidado de ir buscar as amêndoas àquele sítio. E, efetivamente, a qualidade aumenta.
Se nós formos buscar a amêndoa à senhora que está a produzir um amendoal de cultura regenerativa, ou se nas conservas de peixe do rio que compramos ao produtor e ele nos explica todo o processo, que o peixe foi capturado de tal forma, em determinada altura do ano… Enfim, é conhecimento que nós conseguimos passar para o cliente. E essa informação incrementa a qualidade, incrementa o serviço. De certa forma, acho que é essa diferenciação que acaba por cada vez trazer mais pessoas ao espaço.
[Ana Batista] Também tentamos sempre respeitar o produto sazonal. Durante o período em que temos à disposição determinados alimentos tentamos aproveitá-los ao máximo. Nem que seja para fazer uma conserva, para fazer uns picles, para fazer um fermentado. Para tentarmos mantê-lo para as restantes épocas.
Primeiro porque são técnicas que já eram usadas pelos nossos avós e bisavós, e achamos que é importantíssimo recuperá-las. E, por outro lado, porque conseguimos ter produtos no seu melhor estado de maturação e mantê-los para as restantes épocas, o que seria impossível de outra forma.
[Roberto Lopes] Agora acho que o próximo passo vai ser o mesmo conseguirmos encontrar uma casa, ou um espaço para remodelar, para nos mudarmos para aqui próximo. Nós estamos a sair daqui muito tarde e a entrar cedo. A meia hora de viagem que passamos para ir dormir à Covilhã pode parecer pouco, mas acaba por por fazer diferença no final do dia. Então, acho mesmo que esse vai ser o próximo passo. De preferência queríamos arranjar alguma coisa aqui no Alcaide.
Mais sobre Alcaide
Alcaide, a aldeia dos cogumelos
Ficou conhecida por causa da organização do festival dos Míscaros e por atrair milhares de pessoas à Serra da Gardunha no que poderia parecer pouco convidativo mês de Novembro. Com cerca de 580 habitantes, o Alcaide é uma aldeia que merece ser visitada o ano todo – e é a aldeia que alguns urbanos já escolheram para viver. Pela qualidade de vida, pela natureza abundante, pelas boas ligações tecnológicas, pelas acessibilidades rodo e ferroviárias. Numa das zonas mais despovoadas do país.
Fernando Tavares, o líder associativo
Nascido e criado na aldeia, Fernando Tavares é há 12 anos o presidente da Liga dos Amigos do Alcaide, uma das mais importantes associações locais. Tirou um curso profissional de eletrónica e automação de computadores e mesmo assim, admite, não sabe ligar um fio. Mas aprendeu muito com o associativismo e com a organização de eventos como o Míscaros – Festival do Cogumelo, o evento estrela da associação. Acredita que associações como a sua podem fixar jovens e mudar os destinos de uma aldeia.
Rui Pelejão e Filipa Gambino, o jornalista e a editora de vídeo
Têm raízes familiares no mundo rural, mas sempre foram urbanos e cosmopolitas. Até que em 2018 acharam que queriam mudar de vida e envelhecer numa aldeia. Escolheram o Alcaide porque encontraram uma casa para alugar e porque perceberam que havia comunidade, uma população que se organizava e entreajudava. Cinco anos depois têm uma filha, tiveram uma tasca no festival dos Míscaros e já começaram a construir uma casa. “É para ficar”.
Ler Artigo Rui Pelejão e Filipa Gambino, o jornalista e a editora de vídeo
José Matos, o micólogo
Nasceu em Angola e trabalhou durante décadas como comissário de bordo da TAP. Reformou-se aos 50 e ainda experimentou a vida urbana de Londres. Depois viu o anúncio de uma quinta à venda na serra da Gardunha, apaixonou-se pelo local e descobriu o mundo maravilhoso dos cogumelos. Está à frente da Quinta Vale d’Encantos e é um dos maiores especialistas em micologia em Portugal. Identificou, só na sua quinta, quase 500 espécies de cogumelos. Desenhou-os a todos.
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