Nascido e criado na aldeia, Fernando Tavares é há 12 anos o presidente da Liga dos Amigos do Alcaide, uma das mais importantes associações locais. Tirou um curso profissional de eletrónica e automação de computadores e mesmo assim, admite, não sabe ligar um fio. Mas aprendeu muito com o associativismo e com a organização de eventos como o Míscaros – Festival do Cogumelo, o evento estrela da associação. Acredita que associações como a sua podem fixar jovens e mudar os destinos de uma aldeia. Eis o seu testemunho.
“O associativismo ajuda-nos a desenvolver bases para a vida”
Chamo-me Fernando Tavares, tenho 32 anos, todos eles passados aqui na aldeia do Alcaide. Sou membro da Liga dos Amigos do Alcaide há 18 anos, mas toda a minha infância fui passada aqui, nos terrenos desta associação. Porque é a associação que tem o ringue, onde nós vínhamos jogar à bola.
A minha infância também teve alguma rebeldia, eu andava sempre na rua. Nós, aqui nas aldeias, temos uma coisa um bocadinho diferente das cidades, que é o podermos andar à vontade. Não temos aquela coisa de os nossos pais estarem sempre preocupados se nos roubam ou se nos fazem isto ou aquilo. Aqui nas aldeias podemos andar por aí como queremos, que os nossos pais não nos dizem nada. E a minha infância foi assim, toda passada com os meus pais e os meus avós.
A minha avó é aquela senhora que está a mandar os papeizinhos à varanda durante o Festival Míscaros. Ela, que não sabe ler nem escrever, mas é daquelas pessoas que colecciona tudo o que é papel e revista que lhe deixam na caixa do correio – folhetos de supermercados e assim – e passa o ano inteiro a cortar os papelinhos. Como não sabe ler e não lhe servem para nada, recorta-os. E passa o festival inteiro a mandar os papelinhos pela varanda abaixo. É a maneira, diz ela, de ajudar o neto a organizar o festival.
E, lá está, nós nas aldeias vivemos muito isto. São nossos a ajudar os nossos. Como se fôssemos todos uma família. E isto faz todo o sentido, porque desde pequeninos que somos criados com toda a gente da aldeia e conhecemo-nos todos uns aos outros. Daí ser muito importante a infância ser passada aqui. Mas o resto da vida também.
Eu quero ficar aqui o resto da vida. Nunca quis imigrar nem procurar vida fora do Alcaide. Não me vejo fazer isso. É certo que às vezes gosto de ir à cidade. Mas quando lá estou mais de uma semana fico farto. Quero voltar para aqui. Na cidade temos algumas coisas que não vemos, ou não temos aqui. Eu, por exemplo, que sou um apaixonado pelo Benfica, posso dizer quem me dera poder ir ao todas as semanas ao estádio ver a bola. Isso é uma coisa que aqui não podemos fazer, porque ainda vivemos a três horas de lá. E a minha vida profissional não me permite.
Eu tirei um curso de eletrónica e automação de computadores, fiz o equivalente ao 12º ano. Mas se me pedirem para ligar um fio, eu não sei. Não foram os estudos que fizeram de mim quem sou. O que me fez foi mesmo o associativismo. Estou nesta associação há 18 anos, sou presidente há 12. Foi nesta associação que me formei como homem, como profissional e como pessoa. Não ganhamos dinheiro, mas ganhamos bondade, coração e principalmente, muita, muita aprendizagem.
O objetivo da Liga dos Amigos do Alcaide é desenvolver atividades durante o ano para toda a população. São cerca de 20 eventos por ano. Durante o Verão temos sempre aqui um bar com uma esplanada aberta, onde trazemos música ao vivo, teatro, fazemos quizzes. E depois fazemos torneios de sueca, torneios de snooker, matraquilhos…
Também fazemos uma prova de vinhos com 40 produtores da nossa aldeia, para a qual trazemos enólogos conceituados para provar o vinho e para darem as suas dicas. A piada desse evento é pôr os produtores a fazer uma prova cega e a classificarem os vinhos, inclusive o dos próprios. Então o que é giro é eles andarem a dizer ‘ah este é o meu, ah, aquele é o teu’ e enganam-se quase sempre. Mas claro que o grande ex-libris da Liga dos Amigos do Alcaide é o mesmo o Míscaros – Festival do Cogumelo.
Antes a Liga desenvolvia muito mais eventos, mas agora faz menos, porque os Míscaros – Festival do Cogumelo dão muito trabalho. Na verdade, andamos o ano todo a trabalhar para os Míscaros. É um evento que organizamos em Novembro, e este ano realizamos em dois fins de semana seguidos. Passaram cerca de 100.000 pessoas em seis dias pela aldeia. Nos outros anos foram 50.000 pessoas em 3 dias, isto numa aldeia com cerca de 600 habitantes. Os nossos velhotes quando vêem tanta gente nas ruas nem querem acreditar que a nossa aldeia está tão cheia.
Mas nós, aqui na aldeia, somos incutidos a isto, a darmos um bocadinho de nós pela nossa aldeia. Foi assim que eu vim parar à Liga, ainda miúdo. E é isso que eu quero transmitir aos mais novos que estão cá. Digo-lhes que faz todo o sentido virem para a associação, porque na Liga dos Amigos do Alcaide vão aprender a fazer muitas coisas.
Aprendem a falar com pessoas como nunca falaram. Aprendem a ter reuniões com patrocinadores, aprendem a ir a reuniões camarárias, aprender a fazer o que for preciso. Através da Liga conseguem desenvolver bases que, se calhar, vão usar para toda a vida. É esta a principal riqueza do associativismo. E quem está no associativismo sabe que isto é verdade.
Tenho aqui jovens com 25, 26 e 27 anos. Outros com 18, 17 e 16 e neste momento temos uma menina com 12 anos que já fez um festival inteiro connosco. Eu já lhe disse que ela vai ser a próxima Presidente da Liga. Ela antes dizia, ‘não, eu não quero ser presidente, não quero ser nada’. Hoje em dia, quando lhe digo isso ela já diz ‘ah…se calhar’. Já começou a ter o bichinho.
E é importante ter este bichinho. Eu, por exemplo, já tenho 32 anos, vou ser pai no próximo ano. E o associativismo, para mim, vai começar a perder-se aí: quando começar a deixar de ter tempo. Por isso é que eu digo que na faixa etária dos 15 aos 30 é muito importante passar pelo associativismo.
No festival dos Míscaros conseguimos transparecer bem tudo o que esta aldeia é. É uma espécie de família, em que tudo é feito por nós. Claro que não agradamos a todos, como é óbvio. Mas 90% das pessoas estão connosco – e nós estamos com elas – e por isso é que conseguimos desenvolver tantas atividades. A minha mulher está sempre a reclamar que eu não paro em casa, mas a verdade é que eu adoro estar aqui. Tenho este bichinho de andarmos sempre a fazer alguma coisa
Os meus dias preferidos são mesmo os da preparação do festival. É incrível, porque temos sempre alguma coisa para fazer. Temos sempre alguém a chegar, alguma coisa a mexer ou que é preciso fazer. Um dia bom para mim é passado assim: a andar com a minha equipa aí pela aldeia, a fazer alguma coisa na nossa aldeia e em prol da nossa aldeia. Isso, para mim, é o mais importante.
Houve uma fase, aqui há uns 10 anos, em que o Alcaide tinha muito poucos jovens. Iam embora, procurar trabalho. Agora estamos a começar a ter outra vez.
Há casais que vêm para cá morar, que têm filhos a nascer aqui. A nossa escola primária tem cerca de 40 miúdos. A nossa creche tem cerca de 50 miúdos. Estamos a falar de quase 100 crianças e só umas 20 ou 30 é que não serão de cá, mas de aldeias vizinhas.
Outra coisa: há três anos não tínhamos hotéis ou restaurantes na aldeia. Hoje temos um hotel com 12 quartos e um restaurante topo de gama. As coisas começam a mudar. E eu acredito que foi através do desenvolvimento que a Liga dos Amigos do Alcaide trouxe à aldeia, com a organização de um festival como o Míscaros.
E acredito que isto é que faz sentido e que é por isto que eu nunca precisei de ir para fora. Tive oportunidades de ir, mas não fui. Primeiro, porque não quero deixar isto por nada. O associativismo deu-me essa oportunidade. Posso dizer que foi através do associativismo que eu fui trabalhar para a Câmara Municipal do Fundão. E que depois de tudo isso é que agora consegui ter uma empresa de organização de eventos. Só o consegui por causa da experiências acumulada, e da base de contatos que fui construindo.
O papel da Liga dos Amigos vai continuar a passar por aí, a ajudar a garantir mais postos de trabalho. Neste momento estamos a tentar criar, em parceria com a Junta de Freguesia, uma reserva micológica, que vai ser a primeira do país. E queremos requalificar este espaço da Liga dos Amigos, que está muito degradado. Queremos criar aqui um cowork. Vamos fazer uma candidatura através do Instituto Português do Desporto e Juventude para conseguirmos ter aqui um espaço onde as pessoas possam vir trabalhar.
Mas o meu maior projeto de vida vai ser mesmo a minha filha, que está quase a nascer. Quero continuar a ver a minha empresa a crescer e quero que esta associação também siga no bom caminho. Vai haver eleições em breve, e ainda estamos a ver se nos candidatamos ou não. Mas há aqui projetos, como o da requalificação da sede que ainda precisa de ser acabado.
Mais sobre Alcaide
Alcaide, a aldeia dos cogumelos
Ficou conhecida por causa da organização do festival dos Míscaros e por atrair milhares de pessoas à Serra da Gardunha no que poderia parecer pouco convidativo mês de Novembro. Com cerca de 580 habitantes, o Alcaide é uma aldeia que merece ser visitada o ano todo – e é a aldeia que alguns urbanos já escolheram para viver. Pela qualidade de vida, pela natureza abundante, pelas boas ligações tecnológicas, pelas acessibilidades rodo e ferroviárias. Numa das zonas mais despovoadas do país.
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Têm raízes familiares no mundo rural, mas sempre foram urbanos e cosmopolitas. Até que em 2018 acharam que queriam mudar de vida e envelhecer numa aldeia. Escolheram o Alcaide porque encontraram uma casa para alugar e porque perceberam que havia comunidade, uma população que se organizava e entreajudava. Cinco anos depois têm uma filha, tiveram uma tasca no festival dos Míscaros e já começaram a construir uma casa. “É para ficar”.
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José Matos, o micólogo
Nasceu em Angola e trabalhou durante décadas como comissário de bordo da TAP. Reformou-se aos 50 e ainda experimentou a vida urbana de Londres. Depois viu o anúncio de uma quinta à venda na serra da Gardunha, apaixonou-se pelo local e descobriu o mundo maravilhoso dos cogumelos. Está à frente da Quinta Vale d’Encantos e é um dos maiores especialistas em micologia em Portugal. Identificou, só na sua quinta, quase 500 espécies de cogumelos. Desenhou-os a todos.
Roberto Lopes e Ana Batista, o casal de chefs
Ela tem origem na serra, nasceu na Covilhã há 27 anos. Ele tem a mesma idade mas é de perto do mar, da zona da Lourinhã. Conheceram-se na Escola de Hotelaria e Turismo do Estoril e tiveram, cada um, várias experiência nas cozinha de reputados e estrelados restaurantes. Quiseram abrir um projeto com assinatura própria, algo que respeitasse o tradicional com o olhar inovador. Escolheram uma aldeia como o Alcaide para poderem privilegiar o projeto e o produto.
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