Nasceu em Angola e trabalhou durante décadas como comissário de bordo da TAP. Reformou-se aos 50 e ainda experimentou a vida urbana de Londres. Depois viu o anúncio de uma quinta à venda na serra da Gardunha, apaixonou-se pelo local e descobriu o mundo maravilhoso dos cogumelos. Está à frente da Quinta Vale d’Encantos e é um dos maiores especialistas em micologia em Portugal. Identificou, só na sua quinta, quase 500 espécies de cogumelos. Desenhou-os a todos. Eis o seu testemunho.
“Ando há 17 anos a estudar cogumelos e ainda não sei tudo”
Chamo-se José Matos, tenho 70 anos e não sou daqui. Não sou sequer deste continente, porque nasci em Angola. Mas vim para cá, para Portugal, como todos vieram, expulsos da terra. Tive de fugir escondido.
Trabalhava na TAP em Angola e umas semanas antes da independência fui mobilizado para a guerra do Agostinho Neto. Como já tinha feito quatro anos de guerra forçada no exército português, não estive para fazer mais guerras. Escondi-me no cockpit de um avião e fugi. Vim para Portugal. A TAP disse que a única vaga que tinha para mim era de comissário de bordo, e eu lá fiz o curso.
Trabalhei trinta anos e reformei-me aos 50 anos. Fiquei com síndroma pós-traumático, depois da guerra. Eu pensava que era coisa de americano, mas, afinal de contas, aquilo era grave. Tinha mesmo de me reformar. E, quando me reformei, fui para Inglaterra durante sete anos. Mas depois, também por circunstâncias várias, fui obrigado a vir para cá. E resolvi arranjar um sítio para viver sem ser ao pé do aeroporto. Apareceu um anúncio para esta propriedade, a dizer que tinha mais de 20 hectares.
Viemos cá e estava uma autêntica Amazónia, porque esteve durante 10 ou 12 anos abandonada. Esta casa, por exemplo, estava coberta de silvas até ao teto. Mas também foi por isso que não houve adição de produtos químicos no terreno e os cogumelos acharam terreno ideal para florescer. No primeiro ano já via cogumelos a aparecer por todos os lados, de todas as cores possíveis e imaginárias. E eu pensei: tenho que aprender qualquer coisa sobre isto.
Por sorte, nesse primeiro outono apareceu-me um convite na caixa do correio para fazer um passeio micológico aqui no Alcaide. Era feito por um especialista aqui da zona da Beira Baixa, que é uma pessoa que sabe muito e que me deu as bases todas. Foi um vício que me ficou. A micologia é um mundo em que nunca sabemos tudo, por muito que a gente estude. Eu ando há 17 anos a estudar cogumelos, já identifiquei mais de 540 espécies só aqui na minha quinta. E ainda não sei tudo.
Eu apaixonei-me pelos cogumelos. E por desenhar cogumelos. Eu sou péssimo fotógrafo, não sei fotografar coisa nenhuma. Nada que eu fotografo fica decente. Agora com as modernas tecnologias já é mais fácil, mas mesmo assim eu prefiro recorrer a esta habilidade natural. Quando eu vivia em Angola dedicava-me a uma outra ciência, à ornitologia. Comecei a desenhar aves, tenho mais de 500 espécies de aves de Angola. Um dia mando-os para o Museu de História Natural de Angola, porque não tenho a quem os deixar.
Quando cheguei aqui comprei um livro em branco e comecei a desenhar o património natural da quinta, com todos os animais. Isto é um autêntico jardim zoológico. Como não sou caçador, não corro com os animais, e como os animais também não são burros, sabem que aqui têm segurança, há aí veados, javalis, lontras, saca-rabos, raposas. Tudo o que pássaro, tudo que é animal, aparece para aí.
Esta quinta tem cerca de 400 anos (o esqueleto dela é de 1687) e tem uma história curiosa. Eu só a descobri depois de vir para cá. Dizem que a quinta pertenceu a um filho bastardo do rei D. Carlos, senhor D. Fernando de Almeida e Silva. Terá sido ele quem mandou construir um açude a uma ribeira que atravessa esta quinta.
Ele mandou fazer um açude, e uma caleira, uma levada para trazer água para aqui. Como a caleira era muito grande, em granito, o povo chamava-lhe o calão. Diziam que esta era a Quinta do Calão, mas eu não conhecia a história nem conhecia este nome. E não gostei. Para mim calão é alguém que não trabalha.
Um colega na TAP, que era arquiteto e que foi a primeira pessoa que aqui entrou, porque eu queria que fosse ele a fazer o todo o projeto de recuperação, mostrou-me que isto era um vale. E o António, quando chegou aqui disse “ah que encanto!”. E assim ficou: Quinta do Vale d’Encantos.
Claro que quando cheguei comecei a desenhar cogumelos. No primeiro passeio micológico que fiz, levei o meu caderninho. Nunca mais parei. Até para identificar os cogumelos, eu não os fotografo. Eu desenho-os.
Há vários parâmetros para identificar um cogumelo. Para começar, o aspeto deles, a cor deles. E só um fotógrafo profissional em laboratório consegue fotografar o cogumelo com a cor exata e com as características exatas, porque… não é um fotógrafo qualquer e que faz fotografias de cogumelos. E eu no desenho consigo pôr a cor exata, tal como está na natureza.
Tenho passado muitas horas a estudar cogumelos ao longo deste anos. É um facto que acumulei muito conhecimento sobre a micologia, também com a ajuda da internet. Há dois anos apareceu-me um convite no Facebook de grupo de especialistas italianos a convidarem-me para pertencer ao grupo deles. Eu respondi-lhes que ficava muito honrado, mas primeiro queria aprender a falar italiano. E eu lá aprendi. Agora quando tenho alguma dúvida mais complicada, os italianos dão-me uma ajuda. Há uma troca de conhecimentos.
Este gosto pelos cogumelos só me apareceu aqui na quinta. Primeiro porque são bons. Eu nunca tinha comido cogumelos silvestres. E depois, porque é um património que infelizmente é muito desconhecido. É uma ciência que exige muita paciência e muito estudo. Eu queria dar uma contribuição.
Em Portugal há uma grande ignorância acerca dos cogumelos silvestres. A comunicação social, principalmente as televisões, têm culpa de as pessoas não consumirem certos cogumelos. Porque nas notícias só dizem: morreram não sei quantas pessoas envenenadas com cogumelos. Depois as pessoas pensam que quem comer cogumelos silvestres morre envenenado. Nunca dizem quais foram os cogumelos que comeram, nem quais são as características deles.
Uma vez o presidente da Câmara do Fundão disse que eu sou património da região e que por minha causa nunca mais morreram pessoas. Não sei se é verdade. Sei que tenho feito muito barulho por causa da apanha de cogumelos e que já dei formação a muitos apanhadores.
Costumo dizer que se os pescadores têm que ter uma licença para pescar e os caçadores têm uma licença para caçar, os apanhadores de cogumelos também deviam ter. Não é para enriquecer o Estado – porque a licença dos apanhadores de cogumelos na Comunidade Europeia é uma coisa irrisória. Mas Portugal é o único país da Comunidade Europeia que não tem qualquer tipo de legislação quanto à colheita de cogumelos silvestres. Por isso Portugal torna-se um supermercado a céu aberto onde, todos os anos, literalmente, vêm autocarros com multidões de apanhadores de toda a Europa. Infelizmente, estragam mais do que o que apanham.
Nós fazemos passeios micológicos aqui na quinta. Desde que me apareceu, há coisa de dois anos, uma dor na perna que não consigo perceber de onde vem, não sou eu que os faço. Tenho aqui dois ajudantes, que são 2 irmãos que vivem aqui connosco, comigo e com o António, para nos ajudarem nas tarefas do campo. E a verdade é que um deles, o Zé Pedro, entusiasmou-se tal e qual como eu… e se o Zé Pedro hoje não sabe os nomes científicos deles todos, sei que os sabe identificar. Eles recolhem os cogumelos que o quando tem dúvidas para eu identificar e depois eu identifico aqui.
Eu aqui faço questão sempre de que as pessoas provem os cogumelos. Não é importante só aprenderem a distinguir os cogumelos, mas é aprender também importante saber prová-los. Então, o António, que é um especialista de culinária, faz-nos a degustação dos cogumelos. Ele é um verdadeiro chef.
Eu plantei centenas de árvores para ter um ambiente propício aos cogumelos. Porque eles precisam de determinadas árvores, determinada terreno para crescer. E também por isso tem havido tantas variedades. No ano passado, infelizmente, houve aqui um incêndio, ardeu 80% da quinta. Escapou a casa e pouco mais. Mas graças ao seguro e a um construtor honesto que consegui arranjar aqui na aldeia, vamos fazer a reconstrução. Naquele celeiro vamos fazer uns quartos, para que as pessoas que vieram fazer passeios mitológicos quando faço passeios micológicos, as pessoas pegarem ficar alojadas aqui por cima.
Já cá estamos há 17 anos. Fomos muito bem recebidos na aldeia. Mesmo não sendo de cá. Primeiro diziam que esta era a quinta dos ingleses. Como viemos de Inglaterra e trazíamos um carro inglês, por mais português que a gente falasse nós éramos ingleses. Depois começaram a dizer íamos fazer aqui um Jardim zoológico, porque na altura eu desenhei um logotipo para a quinta, que era a cabeça de um pássaro a comer uma cereja…
Depois, tínhamos aí uns cavalos de um vizinho que nos pediu para pôr os cavalos a pastar gente que nós queríamos fazer um centro Hípico e por aí afora. Na aldeia inventam várias coisas. Agora, pronto, chamam-me sempre por causa dos cogumelos e do Festival dos Cogumelos. E eu todos os anos faço desenhos e um calendário para o festival.
Gostamos muito de viver aqui. Só há uma coisa que me faz falta, que é a parte cultural. Aqui deve ser a única cidade do mundo onde não há cinema. Mas agora como tenho Internet, vejo os filmes na Internet, concertos da música disto e daquilo.
Mas aqui há a qualidade de vida que não tinha em Lisboa. Quando trabalhava dizia que quando me reformasse ia deixar de andar a correr. Mas cheguei à conclusão que é a própria cidade que nos obriga a correr. Quando vim da Inglaterra, pensei num sítio com sossego. No meu caso, com a idade, começaram a aparecer as doenças e tenho a sorte de ter um hospital aqui perto, a sete quilómetros daqui, que é o hospital da Covilhã, o hospital universitário, e que tem uma equipa de médicos extraordinária.
Em Lisboa, quando queria uma consulta, tinha de me pôr numa lista de milhares de pessoas. Aqui tenho sete médicos às minhas costas que não me largam. Cheguei ao ponto do meu cardiologista me telefonar a perguntar, “Senhor Matos, precisa de alguma consulta? Precisa de vir cá?” Há pessoas que dizem que têm um anjo da guarda. O meu anjo não é da guarda é da Covilhã. É o doutor Luís Oliveira, que se não fosse ele eu já não estava vivo.
Mais sobre Alcaide
Alcaide, a aldeia dos cogumelos
Ficou conhecida por causa da organização do festival dos Míscaros e por atrair milhares de pessoas à Serra da Gardunha no que poderia parecer pouco convidativo mês de Novembro. Com cerca de 580 habitantes, o Alcaide é uma aldeia que merece ser visitada o ano todo – e é a aldeia que alguns urbanos já escolheram para viver. Pela qualidade de vida, pela natureza abundante, pelas boas ligações tecnológicas, pelas acessibilidades rodo e ferroviárias. Numa das zonas mais despovoadas do país.
Fernando Tavares, o líder associativo
Nascido e criado na aldeia, Fernando Tavares é há 12 anos o presidente da Liga dos Amigos do Alcaide, uma das mais importantes associações locais. Tirou um curso profissional de eletrónica e automação de computadores e mesmo assim, admite, não sabe ligar um fio. Mas aprendeu muito com o associativismo e com a organização de eventos como o Míscaros – Festival do Cogumelo, o evento estrela da associação. Acredita que associações como a sua podem fixar jovens e mudar os destinos de uma aldeia.
Rui Pelejão e Filipa Gambino, o jornalista e a editora de vídeo
Têm raízes familiares no mundo rural, mas sempre foram urbanos e cosmopolitas. Até que em 2018 acharam que queriam mudar de vida e envelhecer numa aldeia. Escolheram o Alcaide porque encontraram uma casa para alugar e porque perceberam que havia comunidade, uma população que se organizava e entreajudava. Cinco anos depois têm uma filha, tiveram uma tasca no festival dos Míscaros e já começaram a construir uma casa. “É para ficar”.
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Roberto Lopes e Ana Batista, o casal de chefs
Ela tem origem na serra, nasceu na Covilhã há 27 anos. Ele tem a mesma idade mas é de perto do mar, da zona da Lourinhã. Conheceram-se na Escola de Hotelaria e Turismo do Estoril e tiveram, cada um, várias experiência nas cozinha de reputados e estrelados restaurantes. Quiseram abrir um projeto com assinatura própria, algo que respeitasse o tradicional com o olhar inovador. Escolheram uma aldeia como o Alcaide para poderem privilegiar o projeto e o produto.
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