Têm raízes familiares no mundo rural, mas sempre foram urbanos e cosmopolitas. Até que em 2018 acharam que queriam mudar de vida e envelhecer numa aldeia. Escolheram o Alcaide porque encontraram uma casa para alugar e porque perceberam que havia comunidade, uma população que se organizava e entreajudava. Cinco anos depois têm uma filha, tiveram uma tasca no festival dos Míscaros e já começaram a construir uma casa. “É para ficar”. Eis o seu testemunho.
“Fomos dois forasteiros que chegaram à aldeia e que foram muito bem recebidos”
Chamo-me Filipa Gambino e o Alcaide aconteceu na minha vida de forma muito peculiar. Eu nunca tinha ouvido falar do Alcaide, mal sabia da existência da Beira Baixa, quase. Falando a sério, não vinha cá muitas vezes. Só quando comecei a namorar com o Rui é que começámos a vir cá alguns fins de semana ou férias. Gostei muito, gostei das praias fluviais, de andar na estrada, das paisagens…
Nessa altura estávamos a morar em Lisboa e dizíamos aquela coisa: ‘quando nos reformarmos vamos para lá’. Mas depois, no dia em que fomos abrir uma conta conjunta no banco – e este é o nosso momento matrimonial mais formal, com uma assinatura, um compromisso financeiro – começaram com aquelas coisas de nos impingir uma aplicação a cinco anos. E aí começamos a pensar: então, o que é que nós estaremos a fazer daqui a cinco anos… se calhar, comprar uma casa, mas em Lisboa não…
De repente, começamos a pensar em antecipar a reforma e nos mudarmos para a Beira Baixa. Escolhemos a Beira Baixa por causa da ligação do Rui a esta região. Eu senti que era uma ligação muito forte. Eu também tenho ligações fortes aos meus sítios. Sou meia madeirense, meia ribatejana e esses lugares também fazem parte da geografia sentimental. Mas pensámos na Beira Baixa, logo no início. E, quase ao mesmo tempo, o Rui recebeu um convite para abraçar o projeto novo do Jornal do Fundão. Então achámos que era um sinal, que era mesmo para ser. Foi assim que decidimos vir.
Mas nós não queríamos morar no Fundão, preferíamos morar numa aldeia. Então passámos uma tarde a percorrer as aldeias todas à volta do Fundão, para ver qual seria a aldeia onde nos víamos a morar. E foi esta. Foi mesmo o Alcaide. Senti que tinha uma boa energia!
Lembro-me que nesse dia ia haver uma caminhada noturna. Vi pessoas a reunirem-se na praça com coletes refletores. E pensei “bolas, uma aldeia que organiza caminhadas noturnas? É para aqui que eu quero vir morar”. Outra coisa que também ajudou muito foi o facto de esta ser a única aldeia que tinha uma placa a dizer “arrenda-se”. Na verdade não há mercado de arrendamento, sobretudo nas aldeias. Mas aqui havia uma casa disponível.
Isto aconteceu no verão de 2018. No fim de outubro, aí uns 15 dias antes do Festival dos Miscaros, fizemos a mudança para o Alcaide. E, de repente, já lá vão cinco anos!
Por um lado, está a ser tudo o que eu esperava. A pessoa tem muito aquela ideia romântica de “vou para a aldeia, todos os meus problemas vão acabar. Vou ter uma horta, vou pôr as mãos na terra, vou ter mais tempo, vou fazer milhares de coisas”.
Fiz uma horta, é certo. Mas depois abandonei-a quando engravidei. A verdade é que fizemos muitas coisas e aconteceram muitas coisas. Eu acho que é uma vida muito diferente daquela que se tem Lisboa. E eu queria ter essa experiência de ter uma vida diferente. Depois rebentou a pandemia, ainda antes da Maria Rita ter nascido. E, nessa altura, foi mesmo lançar as mãos ao céu e agradecer por estarmos aqui no Alcaide, porque fez toda a diferença. Estávamos assim a um passinho da natureza.
Aqui podias sair, ir fazer caminhadas. Nós seguíamos ciclos de cinema, fizemos montes de coisas. A nível profissional para mim foi muito trágico porque faço edição e produção de vídeo. E em dois dias todos os trabalhos que tinha marcados para esse ano foram cancelados. Fiquei um bocado aflita. Mas a verdade é que no Alcaide o custo de vida é muito mais baixo. A nossa renda era de 200 euros, o que é muito pouco sobretudo se compararmos com a realidade em Lisboa.
A pandemia passou e eu agora até não estou tão focada na parte da produtora, porque estou com um trabalho a full time. Neste momento sou uma espécie de nómada digital, porque estou a fazer trabalho remoto para uma produtora do Reino Unido. É um full time mesmo. Depois, aos fins de semana, e meio fora de horas, vou tentando manter a minha produtora à tona, aceitar outros projetos.
Mas a verdade é que estou aqui, no Alcaide, a editar para o mundo, a ter reuniões com pessoas que estão na Austrália e mais não sei onde. E a ter remunerações de uma produtora britânica. O que é muito bom, e nos dá alguma tranquilidade nos projetos, porque começamos a construir uma casa aqui na aldeia. Como somos malucos, começamos a fazer a casa ainda antes deste emprego, sempre a pensar que ia dar certo. Não ia. Mas, mais uma vez, a coreografia mágica do universo operou e pronto.
O meu pai era de uma aldeia no Ribatejo e eu passava lá muito tempo nas férias. Por isso tinha alguma experiência do que era a vida numa aldeia, e a parte rural. Nunca fui uma criança que não sabe de onde vem os ovos e essas coisas. Viver numa aldeia nunca seria uma coisa totalmente desconhecida, sempre pensei que nos fossemos adaptando bem. E adaptámos.
Quando viemos para cá eu dizia muito ao Rui uma coisa que hoje em dia já não posso dizer e que é: estamos perante uma página em branco com todas as pessoas deste sítio. Não temos uma história, não temos quezílias, todas podem ser, potencialmente, boas relações. Ao fim de cinco anos, claro que já não é totalmente assim. Há pessoas com quem nos damos mais, há outras com quem nos damos menos. É a realidade.
[Rui Pelejão] A verdade é que fomos dois forasteiros que chegaram à aldeia e que foram muito bem recebidos. E então a partir do momento em que tivemos a Maria Rita, que é a nossa embaixadora, saía e dizia olá, cumprimentava toda a gente, parecia que estava em campanha… Isso ajuda as pessoas a criarem empatia connosco. Mas ainda antes disso, acho que as pessoas gostam de ter gente nova na aldeia. Vão querer que te sintas bem. Fomos bem acolhidos.
Depois, o torneio do burro, o festival dos míscaros, são eventos que te ajudam a integrar. Nós vínhamos à Tasca do Esteves, a Filipa jogava, eu bebia uns copos, estava tudo bem. Depois, no Festival dos Míscaros, se participares, se fizeres uma tasca e ajudares na organização passas mesmo a ser um membro da comunidade.
E depois há aquela coisa espetacular, e que era o sonho da vida rural da Filipa, que é quando nos tocam à campainha a dar cabazes. Por acaso hoje é bom exemplo, um vizinho acaba de nos dar aí umas carpas congeladas e fumadas – e o nosso vizinho da frente está sempre a levar-nos coisas da horta.
Existe aquela ideia de que numa aldeia não se passa nada e que o interior é uma pasmaceira. O importante quando estás numa aldeia é também a proximidade das cidades. E, por exemplo, aqui temos o Fundão e Castelo Branco. Se quisermos, e se tivermos vida para isso, temos espetáculos de teatro, de música, de cinema, festivais de rua. Todos os fins de semana tens coisas para fazer. Na aldeia propriamente dita, vais tendo ao longo do ano alguns momentos. Não há todos os dias, não há nada para fazer a não ser ir ao café e à tasca. Mas vai havendo.
Uma pessoa não vive só na sua aldeia, tens outras aldeias à volta onde acontecem coisas. Por exemplo, temos uma aldeia aqui ao lado, que é Fatela, que organiza o maior festival punk português, que é o Fatela Sónica. É nosso amigo, estamos aqui a 5 km, portanto há um fim de semana por ano, temos aqui uma experiência punk, não é? Este ano eram bandas punks do País Basco.
Estás a ver, não é uma coisa que se quer em Lisboa possam imaginar que possa haver… festivais de cinema. Ou seja, há sempre coisas a acontecer. Basta a gente querer envolver-se.
[Filipa Gambino] Há aldeias que podem ser uma pasmaceira, mas esta seguramente não é uma delas. Tem coisas incríveis como, por exemplo, meditação à sexta com taças tibetanas, organizada por uns novos alcaidenses que também vieram viver para cá. E depois é uma aldeia que tem creche e escola primária. Isso também é um luxo. Acordar de manhã e levá-la a pé à escola, voltar para casa para trabalhar, depois ir buscá-la ao fim do dia sem tempos no trânsito. Tudo isso é um luxo muito grande, sim.
Mas acho que posso dividir a vida aqui em 2 momentos que é o Verão e o Inverno. O verão aqui é espetacular. Temos uma qualidade de vida ótima, vamos buscá-la e vamos dar mergulhos em praias fluviais, bebemos cerveja e comemos caracóis. O Inverno é duro, cá. A proximidade da natureza também se sente mais na parte agreste e mais dura da coisa. Agora quando chega o fim do verão já não fico tão deprimida porque penso que os Míscaros estão quase a acontecer. O Festival dos Míscaros é um momento de espécie de renovação do meu amor pela aldeia. Que às vezes esse amor está meio tremido. Mas depois, quando se chega aos míscaros, esse amor volta com força.
Acho lindo que haja uma festa que reúne todo o esforço de uma aldeia para acontecer. A festa propriamente dita é incrível, o ambiente que se vive na aldeia, a animação de rua, as bandas de fanfarra, o hidromel… E as pessoas abrirem as garagens para fazer tascas, são as pessoas que cozinham. Nós já abrimos uma tasca um ano e também foi uma experiência maravilhosa. Por isso os Míscaros são uma interrupção no inverno de renovação de energia e de amor. Depois passa o Natal e vem o período mais duro, que é janeiro e fevereiro. É muito frio, tudo fechado, tristonho, dias muito curtos, sem luz.
Mas depois chega março e tudo melhora. As coisas de que sinto mais falta são as minhas amigas do coração. E da minha família. Não estão assim tão longe e nós estamos juntos muitas vezes, mas mesmo assim é diferente de quando eu morava em Lisboa, de irmos beber um copo ao fim do dia. Era muito fácil nos encontrarmos. Claro que tenho amigos próximos cá, de quem eu gosto muito. Mas não são aquelas pessoas da vida inteira. E disso eu sinto muito falta.
[Rui Pelejão] O melhor de viver numa aldeia como o Alcaide é mesmo a proximidade da natureza, que aqui é mesmo uma coisa muito, muito forte. Mesmo que às vezes tu andes aqui a embrenhado no teu dia a dia e não sintas isso, de repente sais a pé, de carro ou de mota e tens um momento de deslumbramento. Em Lisboa podes ter outros, mas aqui essa proximidade com a natureza sente-se. É o céu que está sempre a mudar, ou as nuvens que estão sempre a mudar. As estações são todas muito mais presentes, outono, primavera, verão… Sentes sempre mais a natureza. Podia dizer que o melhor são as pessoas, mas para mim acho mesmo que é esta proximidade com a natureza.
O pior acho que é perderes o anonimato. O anonimato numa aldeia é impossível. E mesmo numa cidade como o Fundão é impossível. Por um lado isso é bom. Não há aquela coisa da cidade em que não sabes como se chama o vizinho de cima, nem o que faz. As pessoas adoravam cumprimentar o seu vizinho de cima lá na cidade todos os dias. Mas na verdade depois sentem falta de poder não o fazer.
Enfim, sinto a falta do anonimato e também a falta de algum cosmopolitismo. Falta-me aquele bar para beber um copo ao fim da tarde, ou num dia de fecho de de um jornal, estar a beber uns copos. Há a tasca, mas não tem boa música nem aquele ambiente de barzinho.
O mesmo com os restaurantes. A partir do momento em que vives aqui, passado um ano já foste a todos os restaurantes umas dez vezes. O que fazemos é metermo-nos no carro ou no comboio (tentamos ir e comboio, porque é mais económico) e passamos três horas está em Lisboa ou em Madrid. Apanhamos esse banho de cosmopolitismo e vimos embora.
Mais sobre Alcaide
Alcaide, a aldeia dos cogumelos
Ficou conhecida por causa da organização do festival dos Míscaros e por atrair milhares de pessoas à Serra da Gardunha no que poderia parecer pouco convidativo mês de Novembro. Com cerca de 580 habitantes, o Alcaide é uma aldeia que merece ser visitada o ano todo – e é a aldeia que alguns urbanos já escolheram para viver. Pela qualidade de vida, pela natureza abundante, pelas boas ligações tecnológicas, pelas acessibilidades rodo e ferroviárias. Numa das zonas mais despovoadas do país.
Fernando Tavares, o líder associativo
Nascido e criado na aldeia, Fernando Tavares é há 12 anos o presidente da Liga dos Amigos do Alcaide, uma das mais importantes associações locais. Tirou um curso profissional de eletrónica e automação de computadores e mesmo assim, admite, não sabe ligar um fio. Mas aprendeu muito com o associativismo e com a organização de eventos como o Míscaros – Festival do Cogumelo, o evento estrela da associação. Acredita que associações como a sua podem fixar jovens e mudar os destinos de uma aldeia.
José Matos, o micólogo
Nasceu em Angola e trabalhou durante décadas como comissário de bordo da TAP. Reformou-se aos 50 e ainda experimentou a vida urbana de Londres. Depois viu o anúncio de uma quinta à venda na serra da Gardunha, apaixonou-se pelo local e descobriu o mundo maravilhoso dos cogumelos. Está à frente da Quinta Vale d’Encantos e é um dos maiores especialistas em micologia em Portugal. Identificou, só na sua quinta, quase 500 espécies de cogumelos. Desenhou-os a todos.
Roberto Lopes e Ana Batista, o casal de chefs
Ela tem origem na serra, nasceu na Covilhã há 27 anos. Ele tem a mesma idade mas é de perto do mar, da zona da Lourinhã. Conheceram-se na Escola de Hotelaria e Turismo do Estoril e tiveram, cada um, várias experiência nas cozinha de reputados e estrelados restaurantes. Quiseram abrir um projeto com assinatura própria, algo que respeitasse o tradicional com o olhar inovador. Escolheram uma aldeia como o Alcaide para poderem privilegiar o projeto e o produto.
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