Com 90 anos acabados de fazer, Benvinda Isidoro diz que não se permite parar. Todos os dias, sempre que pode, volta a pôr-se de gatas para entrar no seu tear e tecer, tecer, tecer. Perdeu a conta às peças que fez e às senhoras que ensinou. Mas não se diz mestra: mestra era a sua avó, que ensinou 57 pessoas. Humilde, não deixa de sublinhar que conseguiu fazer coisas que mais ninguém fez, que preza muito o trabalho “fino” e “criativo”, e que agora continua a trabalhar para doar a pessoas da família. Eis o seu testemunho.

“Eu não penso que tenho 90 anos. Não me deixo.”
O meu nome é Benvinda Oliveira Isidoro. Nasci há 90 anos, aqui, nesta casa ao lado. Sempre vivi em Almalaguês. Quando casei, há 70 anos, fiz esta casa pegada à da minha mãe. Depois, os meus pais faleceram e eu fiquei com a parte dos meus irmãos. Agora tenho as duas casas juntas.
Cheguei a ter quatro teares aqui em casa, na casa de baixo. Agora trouxe este para cima, porque é mais confortável, está tudo mais à mão, estou mais quentinha. Trabalhei muito, a vida toda. Fui para o tear com 11 anos. Praticamente nem andávamos na escola, era só trabalho. E agora, com 90 feitos, ainda continuo a tecer, nas horas vagas, aos bocados, enquanto ainda ando bem.

Digo horas vagas porque tenho muitos compromissos. Hoje vou a um almoço de convívio. Às quartas-feiras vou lá abaixo, à associação ou à biblioteca, fazer tricô, bordar, o que calha. À terça e à sexta vou para a piscina. Saio daqui às dez, chego ao meio-dia, meio-dia e pouco. Ainda vou sozinha para a Figueira no comboio. Ainda vou para Coimbra sozinha. Faço a minha vida toda.
Benvinda Isidoro
Parar é morrer.
Neste momento estou a fazer um trabalho com o desenho da armação, que é um desenho muito, muito antigo. Há quem faça coisas mais simples no tear, mas eu sempre gostei de coisas trabalhadas. Cada desenho tem um nome. Nós fazemos amostras ou tiramos ideias das revistas e começamos a fazer. Este estou a fazer a partir de uma amostra que eu própria fiz. Não é para vender, é para ficar para recordação da família. Não tenho filhos, mas vou deixar aos meus sobrinhos. Este já é para um segundo sobrinho. Se fosse para vender, já não me dava a tanto trabalho… Com a idade que tenho, já não faço coisas para fora.
Havia uma senhora da Figueira da Foz que vinha cá buscar as minhas peças e levava tudo o que eu tivesse. Dizia que vendia tudo. E reconhecia o meu trabalho dos outros, porque eu tinha uma forma diferente de rematar.
Quem me ensinou a tecer foi a minha mãe, e ela aprendeu com a minha avó. A minha avó foi uma das melhores tecedeiras desta terra. Ensinou 57 raparigas. Isto dá muito trabalho. Temos de enfiar um fiozinho aqui, em cada buraquinho destes. E depois enfiar dois nesta teia fininha. É preciso ter boa vista. E a minha já é fraca, até tenho cataratas. Tive de aparelhar isto duas vezes. Aparelhar, desaparelhar, aparelhar outra vez. Porque, em vez de botar dois fios, botava quatro. E chegava ao fim… não batia certo. Isto é difícil, mas é o que mais gosto de fazer.
Tantas colchas que já fiz. Ai, tantas. Trabalhei de noite e de dia. Quando temos compromissos, temos de entregar a obra feita. Trabalhei muito no tear. O meu marido era motorista no hospital. Saía à meia-noite e ainda me encontrava no tear. E eu começava de manhãzinha cedo. Ele ia pegar às oito e eu levantava-me antes das sete, para lhe preparar o pequeno-almoço, e vinha logo para o tear.

Mas olhe, não estou nada arrependida daquilo que fiz. E continuo a fazer. Estou a fazer isto porque é muito antigo. É um desenho complicado, mas como é para a família, gosto de fazer as coisas mais trabalhadas.
Gosto muito de desafios. Uma vez consegui fazer uma colcha igual à que todos os anos punham a enfeitar a capela de Nossa Senhora, em maio. Era uma colcha com a imagem de um dragão, devia ter uns 300 anos. Pedi muito que ma emprestassem para fazer um quadro. Mas, na verdade, não fiz o quadro. Fiz a colcha. Quando disse à dona que ma emprestou que tinha feito a colcha, ela nem queria acreditar. Outros já tinham tentado e não tinham conseguido.
Fazer uma colcha em tecelagem de Almalaguês demora bem uns 15 dias ou mais. Rende pouco. Pouca gente aprende. Acho que isto tem tendência a acabar. De pessoas mais novas, há aí duas ou três, pouco mais… E, acabando a minha geração, não sei o que vai acontecer. Porque isto é mal pago. E além disso, o que acabou ainda mais com isto foi termos de nos coletar nas Finanças. Pensavam que a gente ganhava mundos e fundos, mas nunca ninguém enriqueceu com o trabalho do tear. Isto não é para viver, é para sobreviver. E o frio que a gente passa?
Também ensinei muitas raparigas, mas já lhes perdi a conta. Os teares são a minha vida. Normalmente, os nossos teares têm só um metro, mas eu mandei fazer um tear de metro e vinte, para fazer colchas maiores.

Naquela fotografia sou eu com 18 anos. Casei pouco depois, tinha 19. Não andei a namorar ao postigo muito tempo. Foram só três meses. O meu marido era corrido à pedrada. Ele não era de cá. E os rapazes daqui iam corrê-lo à pedrada, daqui para fora.
Almalaguês é uma terra muito bonita. Gosto muito de viver aqui, sou feliz aqui. A festa mais bonita é a da Comunhão das Crianças, no verão. Mas a festa maior, a mais bairrista, é a de São Sebastião, em janeiro. Este ano vieram gaiteiros de todo o lado… do norte, de Espanha, de Santiago de Compostela… sei lá, era gente que era o fim do mundo. Depois há os bailaricos à noite, as fogaças. Veio cá o Toy. E eu lá fui um bocadinho, mas desde que o meu marido morreu, já não vou muito a festas.

Eu não penso que tenho 90 anos. Não me deixo. Sou ativa, mas é que eu não posso estar parada. Tenho de estar sempre a mexer. Quando vou lá para baixo… Elas nem fazem ideia das coisas que já fiz. A senhora nem faz ideia. Ainda bem. Vamos almoçar fora. Eu não paro. É sempre a andar.
Parar é… Parar é morrer.
Mais sobre Almalaguês
Almalaguês, a aldeia das tecedeiras
Fundada por um árabe há mais de mil anos, Almalaguês resistiu sempre, fiel às suas tradições. Uma das mais relevantes é aquela que põe as mulheres atrás de um tear, tear atrás de um postigo, a tecer, tecer, tecer. Tapetes e colchas. Foi por estar afastada do centro de Coimbra, isolada atrás de estradas pouco acessíveis, que se acredita que resistiu e persistiu. Com alguns desafios. Mas que têm vindo a ser superados pelo orgulho nas raízes e o gosto em se reinventar. A vida corre em Almalaguês, terra de tecedeiras, gaiteiros, nagalhos e arroz doce.
Vítor Costa, o pintor
Foi o menino da aldeia, conhecido de todos por ser afilhado do senhor da Casa Grande, o maior proprietário da terra. Estudou Direito, trabalhou numa farmacêutica, jogou futebol e andebol, mas, se há ofício que o define, é o que expressa através da arte: a pintura. Pinta desde que ganhou uma mala de viagem carregada de materiais num concurso de desenho na escola primária. Foi presidente da Junta e é um dos principais dinamizadores da freguesia – um dos últimos projetos que promoveu foi a exposição de arte pública “Ao Postigo Contigo”.
Maria Emília Pereira, a professora
É conhecida por Mila ou por professora. É, de facto, professora do Ensino Básico e, quando começou a dar aulas em Coimbra, acabou colocada em Anaguéis. Tem 66 anos, está reformada. Hoje em dia, numa das últimas escolas onde deu aulas, é a dinamizadora da Associação Herança do Passado. Mais do que um museu, é um ponto de encontro de novas e velhas tecedeiras, gente com sabedoria e experiência para partilhar e com vontade de aprender. Maria Emília nasceu e cresceu em Seia, mas apaixonou-se pela tecelagem de Almalaguês.
Licínio Maurício, o gaiteiro
Professor de Matemática, nasceu em Almalaguês e habituou-se às festas da terra, em que o “gaiteiro” — um trio de músicos composto por gaita de foles, caixa e bombo — percorria as ruas da aldeia para avisar da festa. O pai foi o primeiro gaiteiro de Almalaguês. Licínio seguiu-lhe os passos e, hoje, anda com o afilhado-sobrinho e um amigo de infância a animar as festas de rua.
Cristina Fachada, a tecedeira
Tem 56 anos de vida, e mais de 49 passados atrás de um tear. Os trabalhos de Almalaguês são quem lhe leva a criatividade e o desafio, e de onde tira alento, e rendimento. Atualmente é a única tecedeira que tem a porta de casa aberta ao público para mostrar os seus trabalhos todos os dias da semana. Não quer que volte o tempo antigo, mas aprecia que a arte esteja de novo a revigorar. Começa a sentir-se cada vez menos sozinha.
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