Tem 56 anos de vida, e mais de 43 passados atrás de um tear. Os trabalhos de Almalaguês são quem lhe leva a criatividade e o desafio, e de onde tira alento, e rendimento. Atualmente é a única tecedeira que tem a porta de casa aberta ao público para mostrar os seus trabalhos todos os dias da semana. Não quer que volte o tempo antigo, mas aprecia que a arte esteja de novo a revigorar. Começa a sentir-se cada vez menos sozinha. Eis o seu testemunho.

“Há qualquer coisa que muda em mim” [se estiver dois dias sem ir ao tear]
Chamo-me Cristina Fachada, tenho 56 anos e sou daqui de Almalaguês, nunca saí daqui, nem para trabalhar, nem para casar. Tive um percurso normal. A minha mãe também era tecedeira, eu aprendi a arte com ela. Era o normal, todas as mulheres da minha idade sabem tecer, não há nenhuma desta terra que não tenha aprendido a ir ao tear.
Eu fiz a escola primária e o ciclo, que ainda era a telescola, e depois comecei logo a trabalhar. Comecei aos 13 anos. Comecei logo a tecer. E aprendi a ver a minha mãe. Nunca fui aprender com ninguém. A minha irmã ainda teve uma mestra, aprendeu costura. Eu depois aprendi costura com ela. Foi vendo a minha mãe a tecer, a minha irmã a costurar e fui andando até encontrar, digamos, o que eu procurava.

Primeiro comecei a tecer para outras pessoas. Era o normal, aqui. A minha mãe também tecia para fora. Quanto mais tecíamos, mais recebíamos. Mas fartava-me de estar sempre a fazer a mesma coisa, a repetir a mesma coisa. Eu sabia que punha uma teada de determinada largura, e que ia fazê-la até ao fim. No fim punha outra igual, e depois outra igual e outra igual. Isso chateava-me. Estive pouco tempo a trabalhar para essa senhora, e comecei a trabalhar com a minha mãe.
Cristina Fachada
Eu até acho que agora é que [Almalaguês] está mais em alta.
A minha mãe trabalhava para outras pessoas, que tinham grandes encomendas, mas também havia o cliente final que ia lá a casa. Portanto, eu via que ela conseguia conciliar as duas coisas. Então também comecei a trabalhar por mim, por conta própria. Nós púnhamos as teadas e eu fazia o que me apetecia e as larguras que me apetecia, e comecei a lidar também com os clientes finais – no início com aqueles que iam à minha mãe.
Nesses tempos havia muito muito trabalho. Toda a gente tecia. Se se passasse aqui pelas ruas de Almalaguês abaixo só se ouviam os teares. Em cada janela ouvia um tear. E em cada tear, cada tecedeira estava sempre a fazer o mesmo, a trabalhar as mesmas larguras. Eu, agora, a cada semana ou a cada 15 dias sou capaz de mudar o rolo. Esta semana estou em 45 centímetros. Para a semana posso estar a trabalhar em 80, ou a um metro.
É claro que dá trabalho montar e desmontar. Mas temos de arranjar métodos para conseguir dar a volta a essas coisas. Portanto, eu cada vez que mudo o tamanho não estou a pôr uma teia. Tenho várias peças destas, isto desencaixa tudo, arrumo e ponho a outra. Portanto, estão sempre prontas.

Esta arte mudou muito ao longo dos anos, houve muitos desafios ao longo destes 40 anos em que já sou tecedeira. Os tempos estão sempre a mudar, a maneira de trabalhar tem de ser diferente. Claro que foi um desafio e grande. Se calhar muitas das colegas acabaram o ofício porque não evoluíram, não mudaram com os tempos. Só aprenderam a fazer tapetes, só faziam tapetes, nunca conseguiram inovar, adaptar-se.
No meu caso, a minha sorte, é que é o desafio que me satisfaz. As coisas estão sempre a mudar e isso desafia-me. Se está melhor ou é mais difícil? Sei lá, é diferente.
Mas, a bem dizer, eu na verdade tenho tudo na mesma. Continuo a ter os clientes, continuo a vender, continuo a fazer o que eu quero, o que eu gosto. Não é bem o que eu quero, mas ao encontrar aquilo que o cliente quer, é o que eu quero. Muitas vezes o cliente também quer ver a peça feita para depois a comprar. Não podemos estar à espera que o cliente nos venha pedir uma peça. Ele também tem de ver, e se gostar depois compra. É assim que eu vendo muita coisa pela Internet.
Eu tenho porta aberta, claro. Mas comecei a vender na Internet por causa da Covid, e depois as pessoas habituaram-se. E as coisas mudaram. Se eu lhe dissesse que em janeiro e fevereiro, por exemplo, era uma altura em que estávamos um bocadinho mais sossegados…. Este ano já não foi verdade. Este ano não consegui parar o mês de janeiro. Estive sempre a enviar.
Os meus dias normais nunca são muito normais. São sempre atribulados. Nunca sei como é que vão ser. Sei que me levanto de manhã, cedo, tomo o pequeno almoço, ponho as máquinas a lavar, e depois é que venho para aqui trabalhar. Não posso deixar nada a meio porque se venho para aqui esqueço-me completamente do que eu deixei a fazer. Normalmente almoço com o meu marido e com o meu filho – vêm sempre os dois almoçar a casa, e quando volto para aqui à tarde, fico até às 20h30, ou mais, até quando calhar.

Os meus dias nunca são iguais, porque nunca sei o que vou fazer. Ainda no domingo tinha um almoço com, convidados em casa e à uma da tarde ainda aqui estava um cliente. Durante a tarde ainda desci aqui mais duas vezes para atender clientes. Não dá para fazer muitos planos.
A maior parte dos meus dias estou ao tear. Também, faço outras coisas, como costuras e acabamentos – tenho muitas colaboradoras a fazer peças para mim, mas sou eu que as termino sempre. E gosto muito de criar peças novas, de inovar um bocadinho. Por exemplo, estas cores, como usar o vermelho ou o preto, foram de certa forma uma novidade. Porque a tapeçaria de Almalaguês usava sempre o fundo branco ou cru. Há muita coisa que eu faço, mas muitas outras vezes sou desafiada pelos clientes.

Tenho muitos clientes que vêm aqui desafiar-me para conseguir adaptar as colchas antigas que eles tem lá em casa às dimensões modernas. Antes as colchas eram muito pequeninas. Agora os colchões são maiores, é preciso arranjar umas barras laterais, por exemplo.
Eu gosto destes desafios. Eu gosto de fazer de tudo. Mas gosto mais de trabalhar no ponto miúdo do que no graúdo. Gosto mais do trabalho fino do que fazer tapetes.
Os tapetes são o trabalho mais grosso, que antigamente se fazia muito. Era daquelas peças que toda a gente fazia, mesmo depois de chegar a casa, depois de um dia de trabalho no campo. Era fácil ir ao tear e fazer um bocadinho, todos os dias. O trabalho miúdo já não é assim. Temos desenhos muito variados, e é preciso muita atenção. Não é fácil entrar ali um bocadinho no tear e dar continuidade.
Eu tenho sempre vários tipos de serviço para fazer, mas a verdade é que se estou um ou dois dias sem lá ir, há qualquer coisa que muda em mim. Fico stressada, embirro com toda a gente que está à minha volta. Mas agora já sei o que é, por isso, vou um bocadinho ao tear, nem que seja uma ou duas horas e já fico bem. Parece que não, mas é a realidade.
Eu nunca saí de Almalaguês e gosto muito da minha terra. Eu digo que é especial – mas se calhar digo o mesmo que dirão as outras pessoas sobre as terras em que nasceram. O que a minha terra tem de mais especial, parece-me, é ainda cultivar muito as nossas tradições. Sobretudo agora. É um processo que tem melhorado muito. Já teve uma fase pior, em que eu senti-me mesmo sozinha aqui em Almalaguês. Tenho de dizer isto porque é verdade. Há 20 anos não havia o movimento que há agora, as pessoas deixaram de fazer tecelagem, houve uma quebra muito grande. Eu continuei sempre, nunca me queixei com a falta de trabalho. Mas nós gostamos que a nossa área tenha vida, alma. E isso quase parou.

As pessoas mais velhas, que tinham aqui as oficinas como eu tenho, foram deixando este trabalho, foram ficando doentes, ficaram velhas, outras já morreram. E muitas não conseguiram dar o passo para outros trabalhos. Eu lidava muito com pessoas mais antigas e diziam que o nosso trabalho tinha que ser assim, tinha que ser assado, e não podia sair dali. Não podíamos coser nada à máquina, por exemplo. Nem pensar em fazer uma peça destas que eu faço, coloridas, e cortá-la toda aos bocados e fazer o que eu quiser dela. Isso era impensável.
Certo é que, a determinada altura, eu achei-me muito sozinha. Mas neste momento já não é assim. Eu até acho que agora é que está mais em alta. Tivemos muita coisa a ajudar, como a Confraria dos Negalhos, o encontro dos Gaiteiros, a Confraria do Arroz Doce. Acho que eles sempre puxaram isto um bocadinho para cima, há mais coisas a mexer. Mesmo a Associação Herança do Passado voltou a trazer alguma atividade às pessoas mais velhas, estão mais apoiadas. A tecelagem de Almalaguês está, por isso, numa boa fase.
Mais sobre Almalaguês
Almalaguês, a aldeia das tecedeiras
Fundada por um árabe há mais de mil anos, Almalaguês resistiu sempre, fiel às suas tradições. Uma das mais relevantes é aquela que põe as mulheres atrás de um tear, tear atrás de um postigo, a tecer, tecer, tecer. Tapetes e colchas. Foi por estar afastada do centro de Coimbra, isolada atrás de estradas pouco acessíveis, que se acredita que resistiu e persistiu. Com alguns desafios. Mas que têm vindo a ser superados pelo orgulho nas raízes e o gosto em se reinventar. A vida corre em Almalaguês, terra de tecedeiras, gaiteiros, nagalhos e arroz doce.
Vítor Costa, o pintor
Foi o menino da aldeia, conhecido de todos por ser afilhado do senhor da Casa Grande, o maior proprietário da terra. Estudou Direito, trabalhou numa farmacêutica, jogou futebol e andebol, mas, se há ofício que o define, é o que expressa através da arte: a pintura. Pinta desde que ganhou uma mala de viagem carregada de materiais num concurso de desenho na escola primária. Foi presidente da Junta e é um dos principais dinamizadores da freguesia – um dos últimos projetos que promoveu foi a exposição de arte pública “Ao Postigo Contigo”.
Maria Emília Pereira, a professora
É conhecida por Mila ou por professora. É, de facto, professora do Ensino Básico e, quando começou a dar aulas em Coimbra, acabou colocada em Anaguéis. Tem 66 anos, está reformada. Hoje em dia, numa das últimas escolas onde deu aulas, é a dinamizadora da Associação Herança do Passado. Mais do que um museu, é um ponto de encontro de novas e velhas tecedeiras, gente com sabedoria e experiência para partilhar e com vontade de aprender. Maria Emília nasceu e cresceu em Seia, mas apaixonou-se pela tecelagem de Almalaguês.
Benvinda Isidoro, a mestra
Com 90 anos acabados de fazer, Benvinda Isidoro diz que não se permite parar. Todos os dias, sempre que pode, volta a pôr-se de gatas para entrar no seu tear e tecer, tecer, tecer. Perdeu a conta às peças que fez e às senhoras que ensinou. Mas não se diz mestra: mestra era a sua avó, que ensinou 57 pessoas. Humilde, não deixa de sublinhar que conseguiu fazer coisas que mais ninguém fez, que preza muito o trabalho “fino” e “criativo”, e que agora continua a trabalhar para doar a pessoas da família.
Licínio Maurício, o gaiteiro
Professor de Matemática, nasceu em Almalaguês e habituou-se às festas da terra, em que o “gaiteiro” — um trio de músicos composto por gaita de foles, caixa e bombo — percorria as ruas da aldeia para avisar da festa. O pai foi o primeiro gaiteiro de Almalaguês. Licínio seguiu-lhe os passos e, hoje, anda com o afilhado-sobrinho e um amigo de infância a animar as festas de rua.
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