Professor de Matemática, nasceu em Almalaguês e habituou-se às festas da terra, em que o “gaiteiro” – um trio de músicos composto por gaita de foles, caixa e bombo – percorria as ruas da aldeia para avisar da festa. O pai foi o primeiro gaiteiro de Almalaguês. Licínio seguiu-lhe os passos e, hoje, anda com o afilhado-sobrinho e um amigo de infância a animar as festas de rua. Eis o seu testemunho.

“O meu objetivo é que a experiência de ser gaiteiro seja cada vez melhor”
Chamo-me Licínio Maurício, tenho 52 anos e sou filho do gaiteiro que fundou o primeiro trio aqui em Almalaguês, algures pelos anos 70 ou 80. O meu grupo, Gait’Arte, formou-se há 11 anos e, na verdade, pode dizer-se que é atualmente o grupo mais antigo da freguesia.
Não posso dizer que haja muitos ensaios entre nós. Na verdade, os ensaios fazem-se com a prática, e a prática tem-se é nas festas. O gaiteiro prepara a música e, nas festas, experimenta-se, ensaia-se ao longo do evento. Escolhem-se os momentos em que há menos pessoas e ensaia-se. Fizemos isso mais no início, acertámos algumas coisas quando começámos.
Os grupos de gaiteiros são requisitados sobretudo para festas. Na maioria das aldeias, as festas são no verão, mas aqui em Almalaguês a nossa festa principal é mesmo em janeiro: as festas de São Sebastião. Aqui nunca deixaram de ser no inverno.
O meu objetivo é manter a tradição e que o gaiteiro seja cada vez melhor.
Licínio Maurício
Agora as coisas mudaram muito. Havia festas que duravam sábado, domingo e segunda. Aqui ao lado havia uma festa que ia até terça e quarta. Nessa altura, lembro-me do meu pai a fazer ginástica para trocar turnos no trabalho e conseguir ir às festas. Hoje, a maioria dura um ou dois dias, normalmente ao fim de semana. Quando calha durante a semana, já é complicado por causa dos empregos. Todos temos profissões fora disto: eu sou professor de matemática na escola de Mortágua, o Fernando trabalha nas Águas de Coimbra e o meu sobrinho, que também é meu afilhado, é engenheiro químico numa cimenteira.

O que faz o gaiteiro, na altura das festas, é percorrer as aldeias com a Comissão de Festas para recolher donativos. Normalmente convidam-nos para tomar um copo e comer qualquer coisa. Tanto podemos ter umas bolachitas e uma broa, como uma caçoila de chanfana à nossa espera. E assim vamos tocando, comendo e andando. Em aldeias grandes, andamos nisto de manhã à noite, e às vezes é complicado gerir a situação. Não podemos recusar, mas também não podemos beber sempre. Por isso, vamos bebendo à vez.
Comecei a tocar gaita por causa do meu pai. Com a idade, vieram as doenças, e muitos dos senhores mais velhos foram desaparecendo. Havia vários grupos sem gaiteiros. Mesmo o grupo do meu pai tinha dificuldades sempre que ele não podia ir. Como já estava ligado à música, disse-lhe que ia aprender gaita e que, quando fosse preciso, eu ia às festas sem problema.
A música entrou cedo na minha vida. Em miúdo, tocava órgão na igreja. Comecei pelo piano, mas o saxofone passou a ser o meu instrumento principal. Ainda hoje toco saxofone em muitos eventos com outra formação. Na verdade, compensava mais financeiramente, mas a gaita de foles, mesmo sendo mal remunerada, permite manter a tradição. E é isso que nos anima.
A gaita de foles aprende-se tocando. Aprende-se nas festas, onde há emoção. Cheguei a tocar com o meu pai, inclusive num Encontro de Gaiteiros de Almalaguês, onde ele foi homenageado. Em casa, ele é a minha inspiração. As músicas que tocava são as que eu toco. Podia seguir outro caminho, tocar um estilo mais celta, mas ele tocava o mais tradicional e é esse o estilo que se toca aqui. Fiz questão de transcrever tudo em partitura, para que um dia, quem quiser continuar, tenha a música já feita.

O que me motiva a continuar? Isto nem se explica. Apesar do cansaço, das corridas contra o tempo, há algo no convívio, no conhecer pessoas novas, que nos anima. E estar com este trio é um prazer.
Agora, o meu objetivo é manter a tradição e que o gaiteiro seja cada vez melhor. E é bonito quando junto estas duas vidas. Atualmente dou aulas em Miranda do Corvo, mas quando comecei fui colocado em Côja. Anos depois, estava a tocar em Barril de Alva e acabei à porta de um ex-aluno do 5.º ano. Foi emocionante vê-lo já chefe de família.
O meu sobrinho, quando começou, queria claramente ganhar uns trocos. Começou antes dos 20 anos e preocupava-se em ficar bronzeado apenas de um lado, porque o outro estava escondido pelo bombo… Mas a verdade é que o pessoal mais novo está a recuperar esta tradição, à medida que os mais velhos desaparecem.
Isto é cíclico. Agora está na moda tocar gaita de foles. Houve tempos em que era visto como um instrumento menor. Até gozavam. O gaiteiro era muitas vezes rotulado como uma cambada de bêbados. E, antigamente, com alguma razão. Cheguei a tocar com pessoal mais velho e eles contavam que de manhã ainda tudo corria bem, mas à tarde… cadê o gaiteiro? Hoje, as comissões de festas são mais exigentes. E ainda bem.
Esta região de Coimbra sempre teve tradição de gaiteiros. Eram sempre convidados para a Queima das Fitas. Agora, estamos a recuperar uma identidade própria. As vestimentas das gaitas estão a ser feitas com tecelagem de Almalaguês. Faz todo o sentido. Ainda não tenho a minha, mas já está encomendada.
Mais sobre Almalaguês
Almalaguês, a aldeia das tecedeiras
Fundada por um árabe há mais de mil anos, Almalaguês resistiu sempre, fiel às suas tradições. Uma das mais relevantes é aquela que põe as mulheres atrás de um tear, tear atrás de um postigo, a tecer, tecer, tecer. Tapetes e colchas. Foi por estar afastada do centro de Coimbra, isolada atrás de estradas pouco acessíveis, que se acredita que resistiu e persistiu. Com alguns desafios. Mas que têm vindo a ser superados pelo orgulho nas raízes e o gosto em se reinventar. A vida corre em Almalaguês, terra de tecedeiras, gaiteiros, nagalhos e arroz doce.
Vítor Costa, o pintor
Foi o menino da aldeia, conhecido de todos por ser afilhado do senhor da Casa Grande, o maior proprietário da terra. Estudou Direito, trabalhou numa farmacêutica, jogou futebol e andebol, mas, se há ofício que o define, é o que expressa através da arte: a pintura. Pinta desde que ganhou uma mala de viagem carregada de materiais num concurso de desenho na escola primária. Foi presidente da Junta e é um dos principais dinamizadores da freguesia – um dos últimos projetos que promoveu foi a exposição de arte pública “Ao Postigo Contigo”.
Maria Emília Pereira, a professora
É conhecida por Mila ou por professora. É, de facto, professora do Ensino Básico e, quando começou a dar aulas em Coimbra, acabou colocada em Anaguéis. Tem 66 anos, está reformada. Hoje em dia, numa das últimas escolas onde deu aulas, é a dinamizadora da Associação Herança do Passado. Mais do que um museu, é um ponto de encontro de novas e velhas tecedeiras, gente com sabedoria e experiência para partilhar e com vontade de aprender. Maria Emília nasceu e cresceu em Seia, mas apaixonou-se pela tecelagem de Almalaguês.
Benvinda Isidoro, a mestra
Com 90 anos acabados de fazer, Benvinda Isidoro diz que não se permite parar. Todos os dias, sempre que pode, volta a pôr-se de gatas para entrar no seu tear e tecer, tecer, tecer. Perdeu a conta às peças que fez e às senhoras que ensinou. Mas não se diz mestra: mestra era a sua avó, que ensinou 57 pessoas. Humilde, não deixa de sublinhar que conseguiu fazer coisas que mais ninguém fez, que preza muito o trabalho “fino” e “criativo”, e que agora continua a trabalhar para doar a pessoas da família.
Cristina Fachada, a tecedeira
Tem 56 anos de vida, e mais de 49 passados atrás de um tear. Os trabalhos de Almalaguês são quem lhe leva a criatividade e o desafio, e de onde tira alento, e rendimento. Atualmente é a única tecedeira que tem a porta de casa aberta ao público para mostrar os seus trabalhos todos os dias da semana. Não quer que volte o tempo antigo, mas aprecia que a arte esteja de novo a revigorar. Começa a sentir-se cada vez menos sozinha.
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