É conhecida por Mila ou por professora. É, de facto, professora do Ensino Básico e, quando começou a dar aulas em Coimbra, acabou colocada em Anaguéis. Tem 66 anos, está reformada. Hoje em dia, numa das últimas escolas onde deu aulas, é a dinamizadora da Associação Herança do Passado. Mais do que um museu, é um ponto de encontro de novas e velhas tecedeiras, gente com sabedoria e experiência para partilhar e com vontade de aprender. Maria Emília nasceu e cresceu em Seia, mas apaixonou-se pela tecelagem de Almalaguês. Eis o seu testemunho.

“Almalaguês é uma terra cheia de vontades”
Chamo-me Maria Emília Pereira, tenho 66 anos, sou natural de Seia. Fui lá nascida e criada. Sou professora do primeiro ciclo e, quando vim para Coimbra dar aulas, acabei por vir ter a Almalaguês, aqui a este povoado chamado Anaguéis, porque casei cá. Quando comecei aqui a viver, fui dar aulas para a teleescola telescola que na altura aqui havia. Eu dava Ciências, e era nessa disciplina que entravam os trabalhos manuais. Preocupei-me em procurar trabalhos aqui da terra.
Foi nessa altura que descobri a tecelagem. Com os alunos, tentava fazer teatros em miniatura; chegámos a fazer alguns em madeira, na parte das oficinas. Apaixonei-me tanto pela tecelagem que quis aprender para saber como era.

Devia ter uns 30 anos quando aprendi a tecer com uma tia, que era uma mestra. A minha tia Júlia, já falecida, tinha pessoas em casa a quem ensinava a tecer e que trabalhavam para ela. Depois, também me ensinou a mim, porque tinha lá o tear da minha sogra. Foi uma forma de aprender. Tudo foi andando devagarinho, sempre conciliando com a minha atividade profissional, que estava em primeiro lugar – a tecelagem era um hobby.
Maria Emília Pereira
O que mais gosto de fazer no tear é inventar: inventar produtos e técnicas.
Não posso dizer que foi difícil aprender. Quando queremos uma coisa, a mente abre-se logo para funcionar. Quando não estamos para isso, é evidente que não temos essa abertura. Mas eu queria muito aprender, até para perceber e poder ensinar aos alunos.
Acabei por trazer o tear para minha casa. Sempre gostei muito de amarelo, e um dia fiz uma colcha amarela. Com isso, candidatámo-nos a um concurso no Instituto da Juventude, e o prémio foi ir à FIL. Digo “candidatámo-nos” porque partilhava o entusiasmo com uma prima. Ela agora está em França, mas, na altura, ajudávamo-nos muito e fizemos muitos trabalhos em conjunto.
Com essa prima, a Anabela, tive uma lojinha em Coimbra, no Centro Comercial Avenida. Tínhamos lá o tear, trabalhávamos ao vivo, fazíamos as peças e vendíamos. Depois, como o Avenida começou a ficar sem teatro, sem cinema, sem nada, acabámos por sair, porque também já não havia tanta população e as vendas caíram.

O tempo passou, e soubemos que esta escola, aqui em Anaguéis, ficou devoluta. A tecelagem, nessa altura, também estava um pouco em baixo. Apesar de se venderem muitas colchas, a tecelagem de Almalaguês passava muito pelos tapetes, que eram vendidos “às carradas”. As tecedeiras estavam sempre a tecer, e vinha um senhor buscar os tapetes a casa. Mas, como eram de qualidade e duravam muito, a procura acabou por decair. Com o tempo, surgiram novos produtos e novas tecnologias.
Pensámos, então, em criar uma associação para juntar pessoas de vários saberes. A ideia não foi só minha. A Rosa Santos, filha da tia Júlia, também pensou nisso. Juntámo-nos e demos o pontapé de saída para fundar a Associação Herança do Passado.
O objetivo era aprender com os mais velhos e dar-lhes visibilidade. Antes que tudo se perdesse, era importante partilhar os conhecimentos. Ao virem para a escola, essas senhoras também saíam de casa, evitando o isolamento. Com a partilha, abriram-se horizontes. Nunca fiz isto, porque não experimentar? Assim surgiram novos produtos, pois cada uma vê e, mesmo que tente copiar, acaba por alterar e criar algo diferente.
A escola não está aberta todos os dias, mas abre-se sempre que alguém quer vir. Temos dias certos para nos juntarmos, pelo menos uma vez por semana. Enquanto cá estamos, fazemos produtos para a associação. Cada tecedeira faz um bocadinho, e depois juntamos tudo num trabalho de patchwork. Muitas peças de vestuário são fruto do trabalho de várias tecedeiras. Quando é vendido, o dinheiro reverte para a associação. Mas, em feiras, cada tecedeira pode vender o seu trabalho e tirar o seu rendimento.
A tecelagem de Almalaguês é muito antiga. Diz-se que o tear foi trazido pelo primeiro homem que veio povoar a aldeia, Zuleiman Al Malaki, em 1088. Antigamente, há quem diga que havia um tear em cada casa; eu acho que havia mais, pois algumas casas tinham dois. Produziam-se os chamados ternos de tapetes: um grande, de 70 cm por 1,40 m, e dois laterais, de 60 cm por 1,20 m.
Hoje em dia, ainda há gente com 90 anos, como a Dona Benvinda, que continua a tecer. O que mais gosto de fazer no tear é inventar: inventar produtos e técnicas. Ao explorar novas possibilidades, surgiram padrões diferentes, que hoje muita gente usa.

Gosto muito do tear e da tecelagem, mas, para ser sincera, o que me agarrou a Almalaguês foram as suas gentes. É uma terra cheia de vontades, com património fantástico e pessoas que amam o que fazem. Mesmo reformadas, dedicam-se a criar, explorar novas ideias e fazer coisas diferentes, como roupa e alpercatas.
O meu sonho é que a Associação se torne uma escola de tecelagem e artes locais. Já fazemos um pouco disso, através de parcerias, mas ainda é um hobby. Gostava que fosse uma escola a sério, para preservar e divulgar esta arte.
Mais sobre Almalaguês
Almalaguês, a aldeia das tecedeiras
Fundada por um árabe há mais de mil anos, Almalaguês resistiu sempre, fiel às suas tradições. Uma das mais relevantes é aquela que põe as mulheres atrás de um tear, tear atrás de um postigo, a tecer, tecer, tecer. Tapetes e colchas. Foi por estar afastada do centro de Coimbra, isolada atrás de estradas pouco acessíveis, que se acredita que resistiu e persistiu. Com alguns desafios. Mas que têm vindo a ser superados pelo orgulho nas raízes e o gosto em se reinventar. A vida corre em Almalaguês, terra de tecedeiras, gaiteiros, nagalhos e arroz doce.
Vítor Costa, o pintor
Foi o menino da aldeia, conhecido de todos por ser afilhado do senhor da Casa Grande, o maior proprietário da terra. Estudou Direito, trabalhou numa farmacêutica, jogou futebol e andebol, mas, se há ofício que o define, é o que expressa através da arte: a pintura. Pinta desde que ganhou uma mala de viagem carregada de materiais num concurso de desenho na escola primária. Foi presidente da Junta e é um dos principais dinamizadores da freguesia – um dos últimos projetos que promoveu foi a exposição de arte pública “Ao Postigo Contigo”.
Benvinda Isidoro, a mestra
Com 90 anos acabados de fazer, Benvinda Isidoro diz que não se permite parar. Todos os dias, sempre que pode, volta a pôr-se de gatas para entrar no seu tear e tecer, tecer, tecer. Perdeu a conta às peças que fez e às senhoras que ensinou. Mas não se diz mestra: mestra era a sua avó, que ensinou 57 pessoas. Humilde, não deixa de sublinhar que conseguiu fazer coisas que mais ninguém fez, que preza muito o trabalho “fino” e “criativo”, e que agora continua a trabalhar para doar a pessoas da família.
Licínio Maurício, o gaiteiro
Professor de Matemática, nasceu em Almalaguês e habituou-se às festas da terra, em que o “gaiteiro” — um trio de músicos composto por gaita de foles, caixa e bombo — percorria as ruas da aldeia para avisar da festa. O pai foi o primeiro gaiteiro de Almalaguês. Licínio seguiu-lhe os passos e, hoje, anda com o afilhado-sobrinho e um amigo de infância a animar as festas de rua.
Cristina Fachada, a tecedeira
Tem 56 anos de vida, e mais de 49 passados atrás de um tear. Os trabalhos de Almalaguês são quem lhe leva a criatividade e o desafio, e de onde tira alento, e rendimento. Atualmente é a única tecedeira que tem a porta de casa aberta ao público para mostrar os seus trabalhos todos os dias da semana. Não quer que volte o tempo antigo, mas aprecia que a arte esteja de novo a revigorar. Começa a sentir-se cada vez menos sozinha.
Com o apoio de:
