Foi o menino da aldeia, conhecido de todos por ser afilhado do senhor da Casa Grande, o maior proprietário da terra. Estudou Direito, trabalhou numa farmacêutica, jogou futebol e andebol, mas, se há ofício que o define, é o que expressa através da arte: a pintura. Pinta desde que ganhou uma mala de viagem carregada de materiais num concurso de desenho na escola primária. Foi presidente da Junta e é um dos principais dinamizadores da freguesia – um dos últimos projetos que promoveu foi a exposição de arte pública “Ao Postigo Contigo”. Eis o seu testemunho.

“Os meus afetos familiares são muitíssimo alargados, estendem-se à comunidade”
Chamo-me Vítor Costa, tenho 66 anos e sou de Almalaguês. Nasci na Sé Nova, em Coimbra, como a grande maioria das pessoas que nasceram na maternidade. Mas sou daqui. Cresci em Almalaguês, no Largo do Terreiro, na Quinta do Prazo, para ser mais preciso. Foi por lá que andei até aos meus 10 ou 11 anos.
Depois passei quatro anos no seminário, regressei, estive no Colégio de São Teotónio e no Dom João III. Mais tarde, apanhei o 25 de Abril ainda com o 12.º ano (antigo 7.º ano) e fui para a Faculdade de Direito. Isso nada tinha a ver com as artes, mas sucumbi às pressões familiares.
Acabei por abandonar o curso e fui para a indústria farmacêutica, onde trabalhei quase 26 anos e fiz carreira na área do marketing e das vendas. Também fui atleta da Académica, no futebol, e treinador de andebol. Mas, na verdade, as artes estiveram sempre na minha vida.
Quando ainda andava na escola primária, em 1966 ou 1967, propuseram um concurso para os alunos fazerem um desenho sobre autores portugueses. O meu professor achou que eu e um colega devíamos participar. Fiz um desenho a guache sobre Gil Vicente e acabei por receber o primeiro prémio. Fui com o meu professor recebê-lo a Coimbra: era uma autêntica mala de viagem recheada com material de pintura – óleo, carvão, aguarelas, guaches, pincéis…
No meu trabalho, inspirei-me sempre nas minhas origens, em Almalaguês.
Vítor Costa
Foi um fascínio para mim. Nunca mais parei. O meu pai, na altura, lá me ia comprando algumas coisas. Havia cursos por correspondência, e eu ia recebendo os fascículos, fazendo os exercícios e enviando-os pelo correio. Depois, com os VHS, surgiram as aulas à distância… Foi um processo de formação muito interessante. Mas tudo começou com aquela malinha.

Quando chegou a hora de escolher um curso, queria ir para Belas-Artes. Mas o meu pai e os meus padrinhos não acharam graça nenhuma. Achavam que eu tinha de ir para Direito, ter uma profissão séria. O certo é que histórias como a minha aconteceram a muita gente. Quando tive um ateliê na Pedrulha, uma percentagem elevada dos nossos alunos eram reformados, principalmente médicos e professores de áreas como Direito e Letras, que, quando jovens, tinham jeito para as artes, mas nunca puderam seguir Belas-Artes.
Para mim, a arte foi inicialmente um hobby. Mas também uma forma de intervir. Quando estive na tropa, na Figueira da Foz, dinamizei exposições de pintura, fiz caricaturas de todos os recrutas dos pelotões e participei num jornal universitário, A Cabra, com poesia e cartoons.
Nos primeiros anos do pós-25 de Abril, nas eleições para as associações de estudantes, fiz todos os cartazes. Olhando para trás, sinto nostalgia, porque vivi a fase mais interessante da História, do meu ponto de vista. Demos saltos enormes em conhecimento e comunicações, mas não os aproveitámos da melhor forma.
Nessa fase, fiz algumas exposições e trabalhei para uma galeria em Barcelona durante quase dez anos. Depois fui promovido e transferido para Lisboa, e os compromissos começaram a colidir. Suspendi essa parceria e segui o meu percurso, fazendo pontualmente algumas exposições. Certo é que, no meu trabalho, inspirei-me sempre nas minhas origens, em Almalaguês – nos trajes, nas tradições, nas atividades agrícolas.

Mesmo quando vivia fora, voltava sempre. Em Lisboa ou na Figueira da Foz, vinha todos os fins de semana. Havia um grupo da minha idade que se juntava para lanchar bacalhau na brasa, e eu fazia sempre questão de estar presente.
As pessoas são muito ligadas a esta terra. No passado, havia poucas vias de comunicação: ou apanhávamos o comboio da Lousã para Coimbra, ou uma camioneta que fazia dois horários por dia, numa estrada cheia de curvas até Ceira. Esse isolamento contribuiu para um forte sentimento de comunidade.
A Casa Grande teve um papel importante. O Dr. Álvaro, dono da maioria dos terrenos, preocupava-se em garantir trabalho para toda a gente. Lembro-me de ver, na casa, uma criada encarregada de fazer sopa à noite para os mendigos que vinham jantar, muitos vindos da cidade. Isso fez com que Almalaguês não fosse uma aldeia de grande emigração.
Fui criado na Quinta do Prazo porque o Dr. Álvaro era padrinho do meu pai. Quando ele nasceu, a minha avó morreu no parto, e ele foi criado ali. Quando casou e eu nasci, o Dr. Álvaro decidiu que eu devia ser criado na quinta. Uma das criadas tomou conta de mim, e, para toda a gente que ali trabalhava, eu era o puto da casa.
Os meus afetos familiares são muito alargados. Ainda há dias, um senhor de 80 anos dizia-me: “Ó rapaz, se soubesses quantos quilómetros fiz a pé, descalço, para ir buscar leite à Torre do Bera para o teu pequeno-almoço…”
A minha relação com a família mistura-se com a relação que tenho com a comunidade. A minha família não é só os meus pais e a minha irmã, são inúmeras pessoas, algumas ainda vivas, outras que já partiram.
Dos meus avós ficou-me esta casa e tudo o que ela representa. Quando a minha avó morreu e os meus pais e tios decidiram vendê-la, gastei o que tinha e o que não tinha para poder ficar aqui.
Nos últimos 20 anos, a minha vida tem sido só arte. E Almalaguês é a minha casa. Onde quer que vá, ao fim de uma semana já estou com saudades e tenho de regressar. Quem ama algo – seja físico ou emocional – cria mecanismos para o preservar. Tornei-me presidente da Junta, fui autarca mais de dez anos, sempre com esse objetivo.

O painel de azulejos da Fonte do Calvo foi pensado para ensinar as crianças sobre o passado da aldeia. Mostra como era viver aqui há 60 anos – um ambiente fechado, onde se namorava ao postigo.
Criámos o projeto Al-Malaki, que recupera as origens árabes da freguesia. Queremos que as pessoas percebam que podemos ter sangue árabe, alemão, seja o que for – mas isso não nos torna melhores nem piores. Faz-nos ser do mundo.

O que é o melhor de viver aqui? O facto de, ao passar por alguém, nos cumprimentarmos. Os meus netos vivem em Coimbra, mas ao fim de semana vêm para Almalaguês. Um dia, o meu afilhado viu o André a andar de bicicleta sozinho e perguntou se eu não achava perigoso. Respondi-lhe: “Se deixares o teu filho sozinho em Almalaguês, ninguém o conhece. Mas uma coisa te garanto: não há ninguém aqui que não conheça o André.”
Quando vivemos numa comunidade em que todos se conhecem, defendemo-nos uns aos outros.
Mais sobre Almalaguês
Almalaguês, a aldeia das tecedeiras
Fundada por um árabe há mais de mil anos, Almalaguês resistiu sempre, fiel às suas tradições. Uma das mais relevantes é aquela que põe as mulheres atrás de um tear, tear atrás de um postigo, a tecer, tecer, tecer. Tapetes e colchas. Foi por estar afastada do centro de Coimbra, isolada atrás de estradas pouco acessíveis, que se acredita que resistiu e persistiu. Com alguns desafios. Mas que têm vindo a ser superados pelo orgulho nas raízes e o gosto em se reinventar. A vida corre em Almalaguês, terra de tecedeiras, gaiteiros, nagalhos e arroz doce.
Maria Emília Pereira, a professora
É conhecida por Mila ou por professora. É, de facto, professora do Ensino Básico e, quando começou a dar aulas em Coimbra, acabou colocada em Anaguéis. Tem 66 anos, está reformada. Hoje em dia, numa das últimas escolas onde deu aulas, é a dinamizadora da Associação Herança do Passado. Mais do que um museu, é um ponto de encontro de novas e velhas tecedeiras, gente com sabedoria e experiência para partilhar e com vontade de aprender. Maria Emília nasceu e cresceu em Seia, mas apaixonou-se pela tecelagem de Almalaguês.
Benvinda Isidoro, a mestra
Com 90 anos acabados de fazer, Benvinda Isidoro diz que não se permite parar. Todos os dias, sempre que pode, volta a pôr-se de gatas para entrar no seu tear e tecer, tecer, tecer. Perdeu a conta às peças que fez e às senhoras que ensinou. Mas não se diz mestra: mestra era a sua avó, que ensinou 57 pessoas. Humilde, não deixa de sublinhar que conseguiu fazer coisas que mais ninguém fez, que preza muito o trabalho “fino” e “criativo”, e que agora continua a trabalhar para doar a pessoas da família.
Licínio Maurício, o gaiteiro
Professor de Matemática, nasceu em Almalaguês e habituou-se às festas da terra, em que o “gaiteiro” — um trio de músicos composto por gaita de foles, caixa e bombo — percorria as ruas da aldeia para avisar da festa. O pai foi o primeiro gaiteiro de Almalaguês. Licínio seguiu-lhe os passos e, hoje, anda com o afilhado-sobrinho e um amigo de infância a animar as festas de rua.
Cristina Fachada, a tecedeira
Tem 56 anos de vida, e mais de 49 passados atrás de um tear. Os trabalhos de Almalaguês são quem lhe leva a criatividade e o desafio, e de onde tira alento, e rendimento. Atualmente é a única tecedeira que tem a porta de casa aberta ao público para mostrar os seus trabalhos todos os dias da semana. Não quer que volte o tempo antigo, mas aprecia que a arte esteja de novo a revigorar. Começa a sentir-se cada vez menos sozinha.
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